O banco mau italiano

Artigo de Ricardo Cabral.


Na Itália, a medida mais lata de crédito mal parado – que se considera não será integralmente pago – ascende a 360 mil milhões de euros ( duas vezes o PIB de Portugal ). O crédito mal parado concedido a credores já considerados insolventes atinge os 200 mil milhões de euros. Ou seja, esse crédito terá de ser reestruturado. A banca italiana já reconheceu uma parte significativa das perdas nesses empréstimos (57,5%), valorizando-os a 42,5% do seu valor inicial. Mas será que chega? Provavelmente não: em Novembro de 2015, a Comissão Europeia obrigou 4 pequenos bancos a valorizar esse crédito mal parado a 18% do seu valor inicial.

Para fazer face a este problema o governo italiano negociou com a Comissão Europeia a criação de um novo fundo “privado” designado Atlante. Esse fundo privado compraria cerca de 70 mil milhões de euros de crédito mal parado aos bancos italianos e depois iria “reformatá-los” (securitização) de forma a criar dois ou três tipos de dívida: júnior, mezzanine e sénior.

A dívida júnior e mezzanine seria vendida a investidores privados. Após a venda de 50% da dívida júnior, o Estado italiano concederia uma garantia pública sobre a dívida sénior emitida por esse fundo privado – que pode representar até 80% do crédito mal parado, ou seja, possivelmente até cerca de 24 mil milhões de euros de garantias públicas (=0,8*0,425*70) –, contra o pagamento de uma taxa anual.

A Direcção Geral da Concorrência (DGComp) da Comissão Europeia, em Fevereiro de 2016, considerou que o fundo privado e a carta de compromisso do governo italiano asseguravam que o mecanismo proposto (e, em particular, as garantias públicas) estariam “livres de ajuda estatal na acepção das regras da UE relativas aos auxílios estatais”, autorizando o seu funcionamento durante 18 meses. É difícil compreender mais este veredicto da DGComp …

Afigura-se-me que existem problemas com a solução proposta pelo governo italiano e com o papel da DGComp nesta medida. Saliento alguns:

Primeiro a proposta, essencialmente, faz com o crédito mal parado da banca italiana o que os bancos de investimento americanos fizeram (com ajuda das agências de rating)  com o crédito subprime, nos anos que precederam a crise financeira em 2007-2009. Ou seja, pura reengenharia financeira.

Segundo, a securitização parece-me uma forma de baralhar as cartas tornando mais complexo algo que é simples. O objectivo parece ser criar instrumentos de dívida com rating de “investimento” (“investment grade”), garantidos pelo Estado italiano, que posteriormente poderiam ser adquiridos por investidores privados, mas também ser aceites como colateral nas operações de cedência de liquidez do Eurosistema, ou mesmo possivelmente adquiridos pelo Eurosistema no seu programa de compra de dívida pública e privada (“OMT”).

Em vez da reformatação dos instrumentos de dívida (“securitização”), que gera enormes custos, seria possível obter resultados equivalentes, de forma mais simples, transparente e económica, se o fundo mantivesse todos os créditos em carteira adquirindo-os com um desconto (“haircut”) mínimo de 20%. E, posteriormente, emitisse dívida garantida pelo Estado italiano.

Por último, o Estado italiano confia o processo de atribuição de garantias públicas a um fundo privado, a agências de rating privadas e ainda a empresas privadas que farão a gestão do crédito mal parado. Afigura-se que, além de enormes custos, tal cria incentivos perversos, porque quem toma as decisões sobre os instrumentos de dívida não é responsável pelos seus custos.

Em suma: o esquema italiano parece pior e mais perigoso para o erário público do que o banco mau espanhol, ou o banco mau irlandês, porque nesses casos o “haircut” inicial foi muito superior (54% e 57%) e porque uma empresa pública, mal ou bem, controla a gestão dos créditos adquiridos.

As políticas públicas europeias parecem-se progressivamente mais com grandes transacções financeiras. O objectivo quase parece ser tornar menos perceptível e transparente – e menos sujeita a escrutínio de Parlamentos e de Tribunais de Contas – os ganhos e perdas das medidas de política económica.

Mal anda a Europa, por conseguinte…


Artigo publicado no blogue Tudo Menos Economia.