O Nobel para uma pobre economia do desenvolvimento

Artigo de Alexandre Abreu.


Todos os anos por esta altura são anunciados os vencedores do Prémio do Banco da Suécia para as Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel e todos os anos alguns comentadores assinalam que não se trata de um verdadeiro Prémio Nobel, pois não estava previsto no testamento original de Alfred Nobel e só foi atribuído pela primeira vez em 1969. Esta chamada de atenção tem principalmente um propósito de humildade: recordar que a Economia é uma ciência social e não uma ciência natural como a Física, a Química e a Medicina, o que tem consequências ao nível das abordagens e da validade das inferências – algo que este ano vem a propósito recordar.

Este ano os galardoados foram Abhijit Banerjee e Esther Duflo (ambos do MIT) e Michael Kremer (de Harvard) por, segundo afirma o press release, terem desenvolvido ‘uma nova abordagem para obter respostas fiáveis sobre as melhores formas de combater a pobreza’. Sendo a economia do desenvolvimento a minha própria área, fico naturalmente satisfeito com esta chamada de atenção para os problemas da pobreza e do desenvolvimento, 21 anos depois de Amartya Sen e quatro anos depois de Angus Deaton. Seguramente, este galardão premeia este ano trabalhos socialmente mais relevantes e menos nocivos do que, por exemplo, as teorias sobre a capacidade autoregulatória dos mercados financeiros de um Eugene Fama, premiado em 2013.

Em todo o caso, a comparação com Amartya Sen e Angus Deaton, autores de trabalhos de enorme fôlego em termos teóricos e empíricos, é ela própria ilustrativa do estreitamento que a economia do desenvolvimento dominante tem vindo a sofrer, muito por culpa da crescente dominação dos Randomised Controlled Trials (RCTs), que poderemos traduzir por algo como ‘ensaios clínicos randomizados’ e que são precisamente a abordagem que valeu a Benerjee, Duflo e Kremer o prémio agora atribuído. Em boa parte das instituições de investigação em economia do desenvolvimento, os RCTs são uma enorme porção do que se faz hoje em dia, em detrimento da atenção às muito mais importantes questões estruturais, como a industrialização, as políticas macroeconómicas, a estrutura e dinâmicas dos mercados ou as relações de propriedade, que anteriormente dominavam este campo e que, como argumento mais à frente, são as que realmente importam para as questões do desenvolvimento e da redução da pobreza.

Entretanto, claro que os RCTs não são uma abordagem nova, nem foram introduzidos por estes investigadores; os ensaios clínicos randomizados, com o estabelecimento aleatório de um grupo de tratamento e um grupo de controlo para testar a eficácia de um tratamento, são há muito a abordagem consagrada para os ensaios clínicos em medicina. O que é novo e muito deve a estes três economistas é a sua generalização na microeconomia do desenvolvimento, isto é, a sua aplicação ao estudo das escolhas individuais e à análise da eficácia de diferentes intervenções em contextos caracterizados pela pobreza em países em desenvolvimento.

Será preferível distribuir redes mosquiteiras de graça ou mediante um preço reduzido? Quais as melhores formas de incentivar a assiduidade e prestação dos professores primários? É melhor que certos apoios sociais sejam condicionais à adoção de determinados comportamentos ou incondicionais? Este é o tipo de perguntas a que procuram responder os RCTs no domínio do desenvolvimento, estabelecendo aldeias ou grupos de pessoas a quem o ‘tratamento’ é aplicado e os seus resultados comparados com os do grupo de controlo. Se a amostra for suficientemente grande e (condição crítica mas muitas vezes ignorada) se a resposta ao tratamento por parte da população for relativamente estável e determinística, então o próprio processo aleatório seguido no estabelecimento da amostra permite inferências estatísticas bastante poderosas e rigorosas quanto à eficácia da intervenção. É precisamente por isso, aliás, que em geral confiamos nos medicamentos que foram sujeitos a ensaios clínicos.

O problema, porém, é que ao contrário das respostas biológicas humanas, que são relativamente invariantes de organismo para organismo, os comportamentos e respostas sociais são muito mais complexos e dependentes do contexto. A ‘melhor’ intervenção num determinado contexto (questão que aliás nunca é apenas técnica mas tem sempre uma dimensão politica) pode produzir resultados muito distintos noutro contexto por uma infinidade de razões. Por isso mesmo, a presunção de retirar conclusões gerais sobre as ‘melhores’ intervenções num qualquer domínio a partir de uma amostra particular numa região particular do Quénia ou da Bolívia (ou de Portugal…) assenta numa visão mecanicista e sofre de enormes problemas em termos daquilo a que chamamos ‘validade externa’: a aplicabilidade das conclusões a outros contextos. E é precisamente por causa disso que mesmo ao nível do estudo dos microcomportamentos individuais a economia da pobreza não pode limitar-se a uma análise estatística mecanicista de quais as intervenções que ‘funcionam’ e deve procurar compreender o porquê dessas intervenções funcionarem (ou não funcionarem), nomeadamente com recurso a uma bateria muito mais ampla de métodos, incluindo métodos qualitativos.

Em todo o caso, o maior problema da dominação da economia do desenvolvimento por parte desta abordagem é mesmo o facto de, em última instância, ela ter muito pouca relevância para dar respostas ‘sobre as melhores formas de combater a pobreza’ nos países em desenvolvimento. O exemplo da China, onde 850 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema entre 1981 e 2015, é esclarecedor, já que esta redução da pobreza sem precedentes na história da humanidade não aconteceu por via de micro-intervenções em torno das escolhas dos indivíduos mas da transformação estrutural da sociedade e de políticas de grande amplitude. Para quem queira realmente responder aos problemas da pobreza e do desenvolvimento, é por isso indispensável estudar as transformações estruturais e as políticas que com elas estão relacionadas (bem como, no caso da China e outros, os problemas e consequências sociais, ambientais e políticos que lhe estão associados), recusando o estreitamento da disciplina de que os RCTs são uma causa e um símbolo maior.

É claro que a aplicação dos RCTs nestes contextos, e o trabalho destes três investigadores em particular, têm muitos méritos. O problema está no facto de terem sido alcandorados à condição de metodologia-rainha para o estudo da pobreza e do desenvolvimento, ignorando que a validade externa é fundamental, que as sociedades humanas são complexas e não determinísticas, que a compreensão é muitas vezes mais importante do que a avaliação da eficácia e que as questões mais importantes da pobreza e do desenvolvimento são estruturais e não individuais.

Publicado no site do Expresso, 17/10/2019