Artigo de João Semedo.
O Tribunal de Contas não homologou as contas de 2013 da ADSE. No relatório divulgado no início de Maio, além do registo das irregularidades que conduziram ao chumbo daquelas contas, o TdC recomenda ao ministro da Saúde que intervenha no sentido de “alterar o estatuto jurídico-administrativo e financeiro da ADSE-DG, por forma a que o poder decisional seja atribuído a quem financia o sistema, ou seja, os quotizados da ADSE” .
Já em 2015, outro relatório do TdC sublinhava a necessidade de “promover a alteração do estatuto jurídico-administrativo e financeiro da ADSE-DG considerando que a sua principal fonte de financiamento é, desde 2014, o desconto dos quotizados [receita própria] e os constrangimentos que o mesmo tem provocado na gestão do sistema de benefícios.”
Ainda em 2015, o TdC registava que “desde 2010 que a ADSE vem perdendo as características de subsistema de saúde, devendo ser assumida como um sistema complementar de saúde, semelhante ao oferecido por mutualidades e, embora com diferenças mais acentuadas, pelos seguros de saúde”.
Estas recomendações do TdC não devem ser ignoradas, aliás, são particularmente oportunas no momento em que o governo se prepara para mudar o estatuto da ADSE, tendo nomeado com essa finalidade um grupo de trabalho liderado pelo professor Pita Barros, cujas conclusões deverão ser conhecidas até 30 de junho.
Defendo que a ADSE deve assumir o modelo de instituto público, sob a tutela do ministério da Saúde, por ser o único que permite, no futuro, evoluir em função do estado do SNS
O crescimento da capacidade de resposta e a requalificação do SNS, um SNS cada vez mais geral e universal, tem como consequência natural o esvaziamento progressivo da ADSE e a prazo sentenciará a sua extinção. Mais SNS é menos ADSE, como um sistema de vasos comunicantes. O objetivo é a progressiva convergência entre os dois sistemas e, progressivamente, o fim da dupla cobertura.
A sua administração deve ser assegurada por representantes do estado e dos trabalhadores, as suas receitas exclusivamente provenientes das contribuições dos seus beneficiários, sem qualquer financiamento público, e a sua gestão deve introduzir regras de controlo administrativo e clínico das despesas efectuadas pelos beneficiários.
Considero ainda que uma mudança tão substancial deve resultar da vontade dos funcionários públicos, consultada e apurada por referendo.
Ver para além do senso comum
Enquanto o SNS se mantiver como serviço público de saúde geral, universal e financiado pelo OE, isto é, ao serviço de todos os cidadãos em igualdade de condições e pago por todos os cidadãos através dos seus impostos, não é aceitável que o estado disponha e pague qualquer outro serviço prestador (tipo SAMS) ou finaciador de cuidados como é o caso da ADSE (tipo seguro de saúde), destinados a um ou mais grupos de beneficiários, podendo admitir-se a excepção das FFAA e forças de segurança que, em geral, dispõem de serviços próprios.
O SNS deve ser o único serviço de saúde suportado pelo estado. A existência da ADSE como sub-sistema público de saúde não faz qualquer sentido. Sim, tudo isso é verdade mas sucede que o problema não é assim tão simples. Por muitas razões:
– a ADSE existe desde 1963 e há uma coisa a que se chama “direitos adquiridos” que não podem deixar de ser tidos em conta.
– a ADSE não traz qualquer despesa para o estado pois é hoje suportada exclusivamente pelas contribuições dos seus beneficiários (é assim, desde 2014).
– o SNS no contexto das dificuldades que atravessa, não está em condições de absorver cerca de 1.300.000 novos utilizadores.
– a ADSE não é “integrável” no SNS porque não é possível “misturar” um sistema que presta cuidados de saúde com um sistema que os financia, apesar da natureza pública de ambos.
Para muitos é necessário acabar com a ADSE para acabar com a “engorda” dos privados. Vejamos.
O serviço público de saúde tem sido vítima de um prolongado sub-financiamento, mais acentuado nos anos da troika. O que a ADSE paga aos privados faz falta ao SNS. É certo que a ADSE é uma das principais fontes de financiamento dos grupos privados da saúde. Estima-se que represente cerca de 1/3 das suas receitas regulares. Mas não é só a ADSE a recorrer e financiar a medicina privada, o próprio SNS transfere anualmente muitos milhões de euros para os privados através dos contratos de prestação de serviços e dos acordos de convenção. O que o SNS não faz, compra aos privados.
As transferências anuais do SNS para o sector privado são, em média, quatro vezes superiores ao valor pago anualmente pela ADSE aos grupos privados. O SNS é um contribuinte líquido dos grupos privados bem mais generoso do que a ADSE.
Mas não é acertado tentar resolver o problema causado ao SNS pelo boom privado à custa da ADSE e dos seus beneficiários. Acabar com a ADSE para acabar com o fluxo financeiro para os grupos privados não é uma ideia aceitável, é confundir os problemas. Até porque isso seria um efeito temporário e portanto uma medida ilusória: extinta a ADSE, boa parte dos seus beneficiários iria contratar um seguro de saúde, mais benefícios para os privados.
Não tem qualquer coerência pretender acabar com a ADSE para não alimentar os privados e fechar os olhos aos múltiplos compromissos e acordos do SNS com os privados. Isso não é castigar os privados, é castigar os funcionários públicos.
Condições de sustentabilidade da ADSE
Hoje, há uma razoável evidência que a ADSE é sustentável por um período de tempo alargado (várias décadas) e sem qualquer esforço financeiro do Estado como, aliás, já acontece desde 2014 (estudo da Porto Business School, Março 2015, Auditoria do Tribunal de Contas, 2014/2015). Em 2015 acabou a contribuição da entidade empregadora (organismos do estado) para a ADSE.
Como resultado das sucessivas alterações legislativas, a ADSE passou de um subsistema deficitário, que obrigava a compensações financeiras do Orçamento de Estado, para um sistema com um excedente de exploração e que é exclusivamente financiado pelas contribuições dos aderentes. Em 2014, esse excedente foi de cerca de 201 milhões de euros.
As características da ADSE permitem múltiplas possibilidades de intervenção para consolidar a sua sustentabilidade.
Pode actuar-se do lado da receita – sobre os co-pagamentos dos actos clínicos, os descontos sobre o vencimento e o próprio universo de beneficiários – como pode actuar-se sobre o lado da despesa – pagamentos aos prestadores e fornecedores dos cuidados de saúde recebidos pelos beneficiários quer no regime convencionado quer no regime livre. O equilíbrio económico e financeiro da ADSE não é propriamente um exercício muito difícil. Aliás, a melhor prova disso é a rapidez com que o governo de PPC conseguiu por a ADSE a produzir excedentes e a ter saldos positivos de exploração.
Esta auto sutentabilidade – autonomia financeira – exige a preservação de algumas características atuais da ADSE e de certas condições da sua exploração:
a) Permitir benefícios que complementam os serviços prestados pelo SNS e justificam a contribuição sobre os vencimentos
b) Continuar a apresentar vantagens face aos seguros de saúde privados
c) A manutenção de um elevado universo de beneficiários para reduzir os riscos de seleção adversa que são muito superiores nos seguros de saúde tradicionais. Em 2015 o número de beneficiários era 1 269 267. Em 1986, eram 1 700 000 (esta redução resulta de diversas alterações legislativas: inscrição facultativa em 2006, livre renúncia em 2011, etc…).
d) Equilíbrio na evolução do valor da contribuição dos beneficiários para evitar a saída dos que recebem vencimentos mais elevados. Entre 2011 e 2014 houve 4009 renúncias, 74% em 2014. Ainda assim, é um número insignificante face ao total de beneficiários.
Para além destas condições que é necessário manter ou consolidar, há outro tipo de alterações – do lado da despesa – que, a serem introduzidas, vão facilitar uma exploração equlibrada da ADSE:
e) introduzir mecanismos de controlo dos gastos dos beneficiários como acontece nos seguros de saúde (só a ADSE não o faz)
f) reavaliar valor da comparticipação da ADSE nas despesas de saúde dos beneficiários
g) reduzir o acesso ao regime livre e reformular a rede de convencionados
h) isentar totalmente a ADSE de pagamentos ao SNS por serviços prestados aos seus beneficiários (os beneficiários da ADSE têm direito ao SNS como qq outro português porque também pagam impostos)
Para que modelos pode evoluir a ADSE?
Como pode evoluir esta ADSE sem encargos para o estado, finaceiramente autónoma por um longo período de tempo?
ADSE: os SAMS da função pública
Em termos teóricos é uma possibilidade, a ADSE pode organizar-se como os atuais SAMS que, além de comparticiparem financeiramente encargos com prestações de saúde, são eles próprios prestadores de cuidados de saúde. Mas havendo um SNS geral e universal não se justifica estar a cria um mini SNS público para o funcionalismo: exige um investimento inicial muito significativo e a sua exploração seria certamente muito deficitária. Nem mesmo em regime privado isso seria possível: nenhum dos grandes grupos privados da saúde está em condições de oferecer um serviço geral e universal para todos os funcionários públicos, é totalmente impossível.
A ADSE como uma mutualidade
É a solução do programa do PS: uma grande mútua, totalmente autónoma do estado (administrativa e financeiramente), que gere uma rede de prestadores convencionados e assegura comparticipações financeiras nos encargos de saúde dos seus associados, estando obrigada a garantir o equilíbrio de exploração.
Julgo que se fala de forma muito leviana nesta possibilidade por duas razões. A primeira é que na transição para a mútua – que não pode deixar de ser voluntária – se vão perder muitos milhares de aderentes o que coloca em risco o seu equilíbrio financeiro ou, para o atingir, ser necessário aumentar as quotizações tendo como consequência tornar desinteressante e pouco concorrencial a adesão à mútua. E a segunda razão, de muito difícil superação, é a imposição legal de quotizações de igual valor para os associados de uma mesma mútua, exatamente o contrário do que se verifica com a ADSE, impondo uma quota demasiado elevada para muitos funcionários públicos ou, em alternativa, a redução dos benefícios.
A transformação da ADSE em seguro privado de saúde
Pode assumir duas modalidades: uma, o estado faz um concurso e entrega a gestão e exploração da ADSE a uma seguradora, por um determinado de tempo, mais ou menos prolongado; outra, o estado vende, também, por concurso, a carteira de beneficiários da ADSE a uma seguradora. Ambas as soluções exigem uma decisão favorável por parte do universo dos funcionários públicos e a decisão de cada um dos atuais beneficiários de subscrever um contrato de seguro.
A ADSE como seguro público de saúde
O processo é muito semelhante ao anterior do ponto de vista processual mas levanta um obstáculo muito sério: não dispondo o estado de nenhuma empresa seguradora, a constituição de uma seguradora para o universo dos beneficiários da ADSE implica um financiamento inicial elevado e tem diversos condicionalismos legais.
Qualquer um destes modelos seria presa fácil dos interesses privados e a prazo a ADSE acabaria privatizada direta ou indiretamente. Para blindar a privatização da ADSE é indispensável que ela permaneça no domínio público (administração indireta do estado), única solução para viabilizar a prazo a progressiva convergência entre os dois sistemas e o fim da dupla cobertura.
Conclusão: a ADSE como instituto público
Por isso defendo que o governo decrete a extinção da ADSE como direção geral e a sua passagem a instituto público (lei nº 3/2004), na tutela do Ministério da Saúde, dotado de plena autonomia administrativa e financeira, sem recurso a qualquer financiamento público.
A inscrição na ADSE deve ser voluntária, podendo inscrever-se os funcionários com contrato de trabalho celebrado com a administração central, regional e local, e ainda o cônjugue ou equivalente, os filhos até aos 30 anos que integrem o agregado familiar do beneficiário e os ascendentes que residam com o beneficiário.
(*) atualizado a partir de um texto publicado no Monde Diplomatique