Artigo de Ricardo Cabral.
Os Estados de Direito Democrático baseiam-se, em não pequena medida, numa conquista civilizacional única: a noção de que a “carne” que ocupa temporariamente o poder é “fraca”. E, consequentemente, o reconhecimento dessa natureza humana obriga à existência de limites e de controlos a esse poder.
Nas instituições de governo da União Europeia, movidos talvez pela noção de que licenciaturas, mestrados, doutoramentos e pós doutoramentos – a um nível de educação sem precedentes na História – tornavam esses controlos civilizacionais artefactos do passado, não se criaram controlos com a robustez e recursos necessários. Consequentemente, impera o poder quase absoluto dos homens, mas não das leis. Haverá talvez menos de 100 homens e mulheres – a maior parte dos quais tecnocratas – que, na prática, influenciam e em grande medida determinam as decisões das instituições de governo da União Europeia.
Vimos esse poder exercido em relação à Grécia, em que a posição das instituições europeias, qual enorme muralha de aço, parecia invencível, colocou a Grécia “de joelhos” sem qualquer esforço. Estamos agora a assistir a algo de similar com Portugal. Apesar do actual governo utilizar uma estratégia negocial de não confrontação, diametralmente diferente da do governo grego (o Primeiro Ministro Português, provavelmente, considera que a relação de forças é tal que um confronto teria um desfecho similar ao caso grego ou pior) as instituições de governo europeias (e também o FMI), na prática e em larga medida, determinam o que deve ocorrer em relação à banca, às empresas nacionais, ao orçamento de Estado, ao salário mínimo, às pensões e ao mercado laboral.
Só que me parece que o excesso de poder tem disto: excesso de confiança (“hubris em inglês”), a ideia do Titanic a navegar a toda a velocidade com a banda a tocar por um mar pejado de icebergs. Acabamos de viver dois momentos desses, primeiro com o Banif e depois com o Novo Banco.
E, tendo o conhecimento e a noção das consequências pessoais e humanas das decisões tomadas pelas “instituições”, é necessário e fundamental conhecer o momento da História em que nos encontramos. Porque creio que é a primeira vez (pelo menos desde a criação do euro) que as instituições de governo europeias, ou melhor, alguns dos homens e mulheres que detêm o poder nessas instituições, estão “em perigo”.
Senão vejamos. Adivinho uma certa preocupação em círculos de Bruxelas, Frankfurt e Madrid com a atenção mediática que estes casos estão a ter. O “passa culpas” e os enredos com histórias alternativas que são apresentados nos média, são disso sinal. Ao pânico reage-se por vezes “criando confusão”; procurando tornar a imagem menos nítida; abandonando o navio que se afunda à sua sorte (neste caso o Conselho de Administração do Banco de Portugal).
Porém, os homens e as mulheres, desconhecidos, que determinaram os contornos destes dois casos cometeram erros:
1. Muito provavelmente violaram leis europeias e regras das suas próprias instituições;
2. Abriram várias frentes de guerra ao mesmo tempo:
– mandando intervencionar dois bancos em meros 10 dias;
– exigindo ajudas públicas de enorme dimensão no caso Banif;
– mandando pagar para “vender” o Banif ao Santander – um banco espanhol – por “dois tostões”;
– impondo perdas de 100% a grandes credores internacionais.
Em consequência, a relação de forças nas negociações entre as instituições de governo europeias e o governo nacional alteraram-se:
– Não obstante a passividade do governo português com o que ocorreu entre 19 e 29 de Dezembro, aguardando tranquilamente os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito;
– As instituições europeias estão a ser atacadas pelos credores internacionais e estão a defender-se mal, jogando à defesa e revelando fragilidades;
– A opinião pública portuguesa parece estar agora muito crítica em relação às intervenções, responsabilizando o Banco de Portugal;
– Alguns dos homens e mulheres que detêm o poder nas instituições europeias, correm o risco de “cair em desgraça” e, para se protegerem, estarão dispostos a muito.
– Os casos existentes têm o potencial para se tornar escândalos, potenciando alterações no modo de funcionamento e no controlo das instituições.
Resta desejar que o Governo Português seja capaz de saber utilizar a força negocial que ganhou, com os erros desses senhores e senhoras desconhecidos…
Artigo publicado no blogue Tudo Menos Economia.