Artigo de Ana Sofia Fernandes.
A Constituição da República é a lei suprema do país. Consagra os direitos fundamentais, os princípios essenciais por que se rege o Estado português e as grandes orientações políticas a que os seus órgãos de soberania – Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais – devem obedecer. Ela estabelece também as regras de organização do poder político e de relacionamento entre os diferentes poderes.
A Constituição reconhece a existência da desigualdade entre mulheres e homens, ou seja, a existência de uma situação de discriminação estrutural que afeta as mulheres em geral e que acresce a qualquer eventual discriminação de outro tipo – nomeadamente em função da idade, da classe ou origem social ou geográfica, da orientação sexual ou da deficiência – de que possam vir a ser alvo. Por esta razão, a nossa Constituição inclui normas explícitas sobre a igualdade de direitos e de responsabilidades entre mulheres e homens, designadamente no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais, do trabalho e da família e da participação política. De entre as disposições constitucionais com incidência na igualdade e na não-discriminação entre mulheres e homens, destacam-se os artigos 9º (Tarefas fundamentais do Estado), 13º (Princípio da igualdade), 26º (Outros direitos pessoais), 58º (Direito ao trabalho), 59º (Direitos dos trabalhadores), 67º (Família), 68º (Paternidade e Maternidade) e 109º (Participação política dos cidadãos).
Por aplicação dos comandos constitucionais e em consonância com estes, vigora ainda legislação que visa combater a discriminação em função do sexo e promover a igualdade entre mulheres e homens, com especial relevo para o Código Civil, Código do Trabalho – que, designadamente, garante a igualdade entre mulheres e homens em matéria de trabalho, emprego, formação profissional e, em princípio, no que se refere à participação equilibrada na atividade profissional e na vida familiar – e para a chamada Lei da Paridade(1) – que obriga a um mínimo de representação de 33,3% de cada sexo na composição de todas as listas para as eleições(2).
A/O Presidente da República tem a função de defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa e garantir o regular funcionamento das instituições democráticas. O ordenamento constitucional português não lhe confere poderes executivos, pelo que uma intervenção direta na governação está-lhe vedada; pode, porém, recorrer a um “uso político particularmente intenso dos atributos simbólicos do seu cargo e dos importantes poderes informais que detém”(3) – ou seja, exercer o chamado “magistério de influência”, junto dos restantes poderes e forças sociais, desde o governo até às organizações da sociedade civil.
Neste contexto, e nas vésperas das eleições para a Presidência da República, que reflexões quanto ao modo como a/o titular do cargo deve exercer o seu dever de cumprir e fazer cumprir a Constituição, designadamente as disposições constitucionais com incidências na igualdade e na não-discriminação entre mulheres e homens acima referidas?
Desde logo, uma constatação relativamente à (não) participação das mulheres: em 42 anos de democracia nunca uma mulher foi Presidente da República em Portugal e apenas 3 mulheres concorreram à Presidência da República, duas delas neste ano de 2016 – e após 30 anos de interregno desde a primeira, Maria de Lourdes Pintasilgo (1986)(4).
É, assim, imperativo conhecer as ideias de quem agora se candidata à Presidência da República sobre questões como as seguintes:
- Como promover a promoção da participação das mulheres – que constituem, recorde-se, mais de metade da população portuguesa(5) – na esfera pública, numa sociedade que valoriza ainda assimetricamente o trabalho produtivo (ligado à esfera pública e remunerado) e o trabalho reprodutivo (ligado à esfera privada, ao cuidado familiar e comunitário e não remunerado)? O primeiro continua ainda largamente associado aos homens e o segundo às mulheres, com todas as consequentes disparidades(6) – desde logo na invisibilidade do real contributo das mulheres para a riqueza comum e na sua discriminação no emprego e progressão profissional, bem como na escassa participação das mulheres no espaço público e dos homens no espaço privado.
- Que papel devem ter as organizações de defesa dos direitos das mulheres enquanto partes interessadas da sociedade civil organizada?
- Como promover o mainstreaming da igualdade entre mulheres e homens em todos os aspetos da vida em sociedade?
A democracia, como lembrava Maria de Lourdes Pintasilgo, apenas pode ser paritária. E a democracia paritária exige uma igualdade perfeita: não apenas na lei e nas normas, mas na vida toda. A estratégia da paridade permitiria às mulheres o usufruto pleno da sua cidadania; como tal, a democracia paritária deveria ser uma dimensão essencial da vida em democracia, tão importante como o primado da lei, ou a separação de poderes. Seria o reconhecimento de modo igual do valor das pessoas de ambos os sexos; a visibilidade da igual dignidade das mulheres e dos homens; a renovação da organização social de modo a que mulheres e homens partilhem, de facto, direitos e responsabilidades, não sendo confinados a espaços e funções pré-determinados por hábitos e preconceitos decorrentes de um paradigma de organização social injusto e anacrónico que sobrevaloriza os homens e subvaloriza as mulheres; seria, em suma, o usufruto pleno da igualdade e liberdade de participação a todos os níveis e em todas as esferas.
Numa altura em que já existem alguns instrumentos, nomeadamente de ordem jurídica, que fundamentam, em parte, esta visão da sociedade, há ainda, contudo, muito a fazer para que esta visão seja uma parte adquirida do nosso quotidiano, para que passemos da igualdade de jure para a igualdade de facto. Tal foi evidenciado muito recentemente (23 de Novembro de 2015) quando o Comité da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) apresentou as suas recomendações resultantes do exame do 8º e 9º relatórios governamentais, depois de ouvir as/os representantes do Estado Português e das Organizações Não Governamentais de Direitos das Mulheres (ONGDM).
Estas recomendações, às quais o Estado Português deve dar resposta o mais tardar até 2019 (algumas já em 2017), refletem uma preocupação com o aumento das desigualdade entre mulheres e homens nestes últimos anos de restrições orçamentais e crise económica, referindo que, mesmo nestas circunstâncias, devem ser realizados esforços especiais para respeitar os direitos humanos das mulheres, manter e aumentar o investimento social e a proteção social e para aplicar uma abordagem sensível ao género, dando prioridade às mulheres em situações vulneráveis.
As recomendações CEDAW instigam ainda Portugal a promover um estudo exaustivo sobre as consequências das medidas de austeridade nas mulheres e a definir um plano de ação para mitigar os efeitos adversos destas medidas. Indicam, ainda, que Portugal deve tomar medidas para reduzir o impacto adverso das medidas de austeridade nas organizações não-governamentais que trabalham pelos direitos das mulheres e para a igualdade de género. Em particular, é recomendado ao Estado português que providencie apoio adequado, incluindo assistência financeira, a estas organizações não-governamentais e que as consulte sistematicamente sobre todas as matérias relativas aos direitos das mulheres e à igualdade de género, entre outras medidas.
A posição de subordinação das mulheres em relação aos homens, decorrente de mecanismos sociais mais persistentes do que as leis, leva a que nem as mulheres nem os homens tenham tido, de facto, as mesmas oportunidades, o mesmo tratamento ou os mesmos resultados no respetivo desenvolvimento pessoal, social, económico, político e cultural. Daí que, para as mulheres, qualquer que seja a sua circunstância e situação, as consequências deste facto se traduzam em maior vulnerabilidade, em menor autonomia, em menor mobilidade, em escolhas profissionais mais limitadas, em menor acesso direto ao dinheiro, ao crédito e à propriedade, em menor valorização do trabalho não remunerado que executam, em violências de género perpetradas contra as mulheres e em menor acesso à participação nos processos de decisão económica e política.
Como conjunto de pessoas com interesses e necessidades próprias, muitas destas decorrentes da referida desigualdade estrutural, as mulheres devem ter visibilidade, e peso bastante para serem tidas em consideração em todas as políticas, legislação e atos processuais e administrativos, e contarem de modo decisivo como destinatárias das opções e dos investimentos inerentes à organização social. Estes são temas fundamentais que não têm feito parte da agenda política dos últimos anos e que nenhum/a candidata/o à Presidência da República se deveria demitir de abordar, nem durante a campanha, nem durante o exercício da Presidência, sob pena de defraudar os interesses de mais de metade do povo cujos direitos constitucionais deve proteger e promover.
Notas:
1— Designação algo imprópria, pois considera-se que a verdadeira paridade existe quando se verifica uma representação perfeitamente equitativa de ambos os sexos (cf. FERNANDES et al (2015))
2 — Exceção prevista na Lei quanto à composição das listas para os órgãos das freguesias com 750 ou menos eleitoras/es e para os órgãos dos municípios com 7500 ou menos eleitoras/es.
3 — Presidência da República, http://www.presidencia.pt/?idc=1 As funções do Presidente, disponível em http://www.presidencia.pt/?idc=1, consultado em 3 de janeiro de 2016.
4 — Outras cinco mulheres apresentaram as suas candidaturas mas não conseguiram concluir o respetivo processo de formalização perante o Tribunal Constitucional. Foram elas Carmelinda Pereira, Manuela Magno e Teresa Lameira – todas em 2006 – e Graça Castanho e Manuela Gonzaga já em 2015.
5 — Segundo o censo de 2011 as mulheres constituíam mais de metade da população, excedendo os homens em cerca de meio milhão: 5.515.578 mulheres para 5.046.600 homens – https://www.pordata.pt/Portugal/Popula%c3%a7%c3%a3o+residente+segundo+os+Censos+total+e+por+sexo-1, consultado em 3 de janeiro de 2016.
6 — Esta parece ser, de resto, uma tendência geral das nossas sociedades: como lembra o antropólogo David Graeber, quanto mais um
trabalho consiste em ajudar os outros, pior remunerado tende a ser.
Referências:
- COUCELLO, A. et al (2015), Afinal, o que é a democracia paritária? A participação de mulheres e de homens na organização social, 4ª edição, Lisboa: Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (no prelo).
- Constituição da República Portuguesa, disponível em http://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/constpt2005.pdf, consultado em 3 de janeiro de 2016;
- FERNANDES, ANA S. et al (2015), “Women in political decision making, a case study on Portugal”, in Women in the Mediterranean, First Monitoring Report of the Euro-Mediterranean Women’s Foundation of the Ministerial Conferences, Barcelona: Euromediterranean Women’s Foundation / Icaria Editorial, p. 99-112 na versão inglesa e 279-294 na versão francesa;
- FERNANDES, ANA S. et al (2011), “Os Direitos Humanos das Mulheres”, in Fátima Grácio (org.), Cuidar a Democracia, Cuidar o Futuro, Lisboa: Fundação Cuidar o Futuro, p.27-36;
- GREABER, D. Spotlight on the financial sector did make apparent just how bizarrely skewed our economy is in terms of who gets rewarded, disponível em https://www.salon.com/2014/06/01/help_us_thomas_piketty_the_1s_sick_and_twisted_new_scheme/, junho de 2014, consultado em 3 de Janeiro de 2016
- Presidência da República, As funções do Presidente, disponível em http://www.presidencia.pt/?idc=1, consultado em 3 de janeiro de 2016.
- UN Committee on the Elimination of Discrimination Against Women (CEDAW) Recomendações finais do Comité para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres: Portugal, 20 de novembro de 2015, CEDAW/C/PRT/CO/8-9. Versão portuguesa da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres disponível em http://plataformamulheres.org.pt/projectos/cedaw/, consultado em 3 de Janeiro de 2016;