Artigo de Nuno Serra.
Não por acaso, é no âmbito das políticas de combate à pobreza e à exclusão social urbana que o «paradigma do empreendedorismo» se começou a instalar entre nós, há mais de uma década. Aclamado como sinal da emergência de uma nova cultura de intervenção social e de um novo quadro de políticas públicas, o empreendedorismo foi apresentado como uma abordagem inovadora, capaz de superar simultaneamente as limitações do assistencialismo (caridade) e do providencialismo estatal (direitos sociais), sublinhando-se o seu potencial no «empoderamento» dos indivíduos, na «activação» das suas «competências» e na sua «capacitação».
Esta focalização no indivíduo, enquanto agente primordial dos processos de inclusão, apenas na aparência perspectivava um potencial alinhamento com as culturas de intervenção social de recorte emancipatório(1). Do que se tratava, na verdade, para lá da retórica empreendedora, era de preparar o caminho para desinvestir em políticas públicas de combate à pobreza e exclusão e, simultaneamente, culpabilizar de forma sub-reptícia os pobres pela sua própria situação e condição. Isto é, desprezando o peso das trajectórias de vida, a natureza cíclica e geracional da reprodução da pobreza ou a adversidade dos contextos socio-espaciais. Bastava de pieguices. Era chegado o momento de caber aos próprios pobres, e às comunidades a que pertencem, safar-se. Era chegado o momento de começar a pôr cobro aos apoios e prestações sociais (como o RSI), à «subsidiodependência», à «fraude» (imaginária) e à suposta «rigidez e ineficiência» das políticas sociais públicas (nunca demonstrada).
Como todas as narrativas neoliberais fraudulentas, o paradigma do «empreende» dispôs de condições propícias para vingar na opinião pública. Bastou amplificar conversas de café e dar corda à ideia de que os portugueses são incapazes «de ir à luta», de «criar o seu próprio posto de trabalho» e de «produzir riqueza», antes preferindo «esperar que alguém (…) lhes arranje emprego» e assim viver «à sombra de direitos adquiridos (…), enfronhados numa atitude resignada e fatalista» (para recuperar aqui, e homenagear, a fina ironia do saudoso João Pinto e Castro, num dos textos mais eloquentes e certeiros de crítica ao empreendedorismo como política pública)(2).
De facto, à semelhança da falsa ideia de senso comum sobre os «preguiçosos do sul», também neste caso os números desmentem a tese de um suposto «défice empreendedor» português: em 2013, de acordo com a OCDE, Portugal encontrava-se entre os países com maior taxa de emprego por conta própria (22%), acima portanto da média europeia (17%) e a par de países como a Grécia, a Itália, a Irlanda ou a Espanha (Gráfico 1).
Gráfico 1
Emprego por conta própria (2013) (em percentagem do emprego total)
FONTE: OCDE
Sendo esta a realidade portuguesa, não é contudo de estranhar que, ao longo dos últimos quatro anos de governação de direita, a proclamada «mudança estrutural da economia» tenha consagrado o empreendedorismo como política oficial de emprego e como solução mágica para o crescimento da economia. De facto, sob a retórica épica em torno do «empreender» esconde-se também aqui a determinação ideológica em esvaziar o papel do Estado e das políticas públicas, seja na vertente sectorial mais ampla (como a aposta em educação e ciência ou o investimento em planos integrados de desenvolvimento, à escala regional e local), seja ao nível de políticas estatais mais específicas, como o emprego ou o combate à pobreza e exclusão social.
Partindo da ideia, tão propagandeada quanto falsa, de que «o Estado asfixia a economia» (como se o Estado não fosse ele próprio economia e suporte decisivo dos processos de desenvolvimento económico), a aposta na «iniciativa privada» e na «inovação» – formuladas neste contexto à «escala» do indivíduo – transporta consigo o esteio moralista que interpreta o desemprego como consequência do défice de «espírito empreendedor» dos desempregados, a quem se culpa pela «preguiça» em activar competências e capacidades. Isto é, o mote necessário para justificar e reivindicar as tais políticas de «fomento do empreender», que incentivem e forcem pobres e desempregados a sair da sua suposta viciosa «zona de conforto» e a fazer-se à vida, com os seus próprios recursos.
Os resultados desta aposta obsessiva no novo paradigma do «empreender» estão já hoje à vista. Como demonstrou recentemente Gonçalo Brás, em doutoramento apresentado à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra(3): «a maioria do empreendedorismo em Portugal é [hoje] de necessidade, gera turbulência no tecido empresarial e contribui para o crescimento “anémico” da economia». Acrescentando a este balanço a circunstância de ter sido o próprio governo, nos últimos anos, a alimentar a lógica do «empreendedorismo de necessidade», compulsivo, que assume o desemprego como «condição ‘sine qua non’ para haver apoio». Ou seja, sendo o próprio governo a empurrar as pessoas «para o mercado, muitas vezes impreparadas», gerando frequentemente situações de endividamento.
No mesmo trabalho, Gonçalo Brás trata aliás de sublinhar o impacto que a «diminuição no investimento em inovação e desenvolvimento (I&D) e em educação» tem – a par da desvalorização das estratégias «de crescimento endógeno» das empresas (assente na qualificação de recursos humanos e no desenvolvimento tecnológico) – na afirmação política e ideológica do «empreendedorismo de necessidade», em detrimento de um «empreendedorismo de oportunidade». Ou seja, a desvinculação deliberada das políticas e estratégias de investimento público em relação ao que se pretende sejam as dinâmicas do «empreender», focalizadas na aposta pela competitividade através de baixos custos, designadamente salariais(4).
Mas não é apenas na esfera da competitividade e da reconfiguração do modelo de desenvolvimento económico do país que encontramos este repúdio pelo Estado e pelas políticas públicas. Como segunda face de uma mesma moeda, esta lógica de desinvestimento público e de responsabilização dos cidadãos norteia igualmente as medidas de política social. Com a agravante de esta nova textura ideológica das políticas sociais permitir, de uma forma que é aliás pouco discreta, a transferência de abundantes recursos orçamentais para as organizações ditas do Terceiro Sector, designadamente as IPSS.
As alterações introduzidas no Rendimento Social de Inserção (RSI) e a sua gradual substituição pelas «cantinas sociais», no âmbito do Plano de Emergência Social (PES) criado pelo governo de direita são talvez o melhor exemplo deste processo de privatização camuflada da protecção social, que se embrulha num quadro argumentativo em que sobressai um moralismo serôdio e o regresso a formulações retrógradas de caridade e assistencialismo.
De facto, em manifesto contraciclo com a degradação progressiva da situação social em Portugal, desde 2011, as políticas sociais públicas foram sendo enfraquecidas e desmanteladas de forma tão gradual quanto determinada. Perante o agravamento da Taxa de Risco de Pobreza entre 2010 e 2014, por exemplo, de 43 para 48%, o governo reduziu o número de beneficiários de RSI em cerca de 205 mil (menos 39%). Concomitantemente, aumentou o número de beneficiários da «sopa» como nova política social(5), como ilustram os dados mais recentes do Banco Alimentar contra a Fome (Gráfico 2).
Gráfico 2
Evolução do número de beneficiários de RSI e do número de pessoas assistidas pelo Banco Alimentar contra a Fome (2010 = 100)
FONTE: MSESS e BACF
Não se pense, portanto, que as razões em que assentam os cortes em medidas de política social pública decorrem dos objectivos de mera consolidação orçamental e redução do défice, face aos quais o «assistencialismo alimentar» seria apenas uma «inevitabilidade colateral» do processo de ajustamento. Do que se trata na verdade, entre outros aspectos, é da criação e robustecimento de um Estado paralelo nas áreas sociais, como oportunamente assinalou Pedro Adão e Silva, assente na estratégia de «contratualização de serviços públicos, assegurando privilégios a negócios privados», através de contratos «que não resistiriam ao mais elementar escrutínio» do cumprimento de princípios basilares de política social pública (igualdade no acesso, critérios objectivos de priorização das situações sociais, etc.)(6).
A contabilidade orçamental desta operação de transferência de recursos públicos para o privado estima-se com relativa facilidade. Como demonstrou Cláudia Joaquim, num relatório de leitura imprescindível(7), o Estado paga cerca de 600€ por mês a uma IPSS que sirva refeições a um agregado familiar constituído por um casal e dois filhos, quando esse mesmo agregado apenas pode receber, no máximo, uma prestação de 374€ mensais de RSI, da qual poderá ter ainda que deduzir a comparticipação das refeições à respectiva IPSS (Gráfico 3).
Mas para além do recuo deliberado das políticas sociais públicas e do papel do Estado, tendo em vista financiar o assistencialismo caritativo privado, o que está também em causa é uma profunda regressão nos próprios mecanismos de combate à pobreza. De um paradigma centrado no acompanhamento e trabalho social com as famílias e indivíduos, tendo em vista a sua autonomização e emancipação – que o espírito do RMG/RSI concretiza aliás de forma particularmente eloquente – regressa-se a um modelo de política e acção social que assenta no entendimento de que aos pobres basta que não morram de fome. Isto é, ignorando que medidas como o RMG/RSI são sobretudo instrumentos de intervenção com as famílias e os indivíduos e não fins em si mesmos.
Talvez fosse por isso oportuno que os que defendem, como Isabel Jonet (presidente do Banco Alimentar contra a Fome), que o Estado se mete «demais em coisas em que não deve», para reivindicar o papel hegemónico das organizações da «sociedade civil» no combate à pobreza, reflectissem sobre duas coisas. Desde logo, que a ajuda alimentar não chega para promover rupturas na reprodução geracional da pobreza(8), sobretudo quando o moralismo, a discricionariedade, a ausência de critérios objectivos e a «empatia de geometria variável» constituem o traço identitário dominante de uma parte muito significativa das IPSS, numa sociedade como a portuguesa. Depois, porque o julgamento moral da pobreza, quando exercido em contexto de intervenção social profissional, condiciona e limita, por natureza, uma acção integradora e emancipatória. De facto, ao privilegiar a avaliação de normas e padrões de conduta, o moralismo assistencialista debilita a capacidade de compreensão dos factores subjacentes aos processos de exclusão e, desse modo, a própria identificação de respostas susceptíveis de promover a capacitação e a autonomia de indivíduos e famílias. Quando é este o quadro mental que orienta os agentes da intervenção social, percebe-se mais facilmente por que razão se entende que a saída da pobreza passa essencialmente por culpabilizar, doutrinar e empreender.
(publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) – Dezembro de 2015, )
Notas:
1 — Cf. Viana, Ana; Nunes, Natália; Serra, Nuno; Amaro, Rogério Roque (2013), «Culturas de intervenção social e de participação: Os desafios do Desenvolvimento Comunitário». Revista Cidade Solidária, n.º 29/30. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
2 — João Pinto e Castro, «Histórias da carochinha para graúdos», Jornal de Negócios, 7 de Maio de 2012 [http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/histoacuterias_da_carochinha_para_grauacutedos.html]
3 — Brás, Gonçalo (2015), O Empreendedorismo ao nível do país e a nível da empresa: o papel do “intrapreneurship” na internacionalização de empresas portuguesas. Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
4 — Cf. «Empreendedorismo português é “por necessidade” e não contribui para o crescimento da economia» (Público, 10 de Setembro de 2015) [http://p3.publico.pt/actualidade/economia/ 18445/empreendedorismo-portugues-e-por-necessidade-e-nao-contribui-para-o-cresc]
5 — Entre 2012 e 2014 aumentou em 33% o número de refeições servidas nas «Cantinas Sociais» criadas no âmbito do «Programa de Emergência Social» (PES), através de protocolos firmados entre o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS) e as IPSS, estimando-se que em meados de 2014 estivessem a ser diariamente servidas cerca de 50 mil refeições nestas estruturas [cf. http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/cantinas_sociais_servem_quase_50_mil_refeicoes_por_dia.html]
6 — Pedro Adão e Silva, «Ainda o Estado paralelo», Expresso, 12 de Abril de 2014 [http://expresso.sapo.pt/ opiniao/opiniao_pedro_adao_e_silva/ainda-o-estado-paralelo=f865223].
7 — Joaquim, Cláudia (2015), «Protecção social, terceiro sector e equipamentos sociais: Que modelo para Portugal?», Cadernos do Observatório, n.º 3, Observatório sobre Crises e Alternativas. Lisboa: Centro de Estudos Sociais.
8 — Do mesmo modo que é redutor pensar-se que a pobreza resulta apenas de falta de recursos financeiros (como se pressupõe, de certa forma, nas propostas associadas à ideia de um Rendimento Básico Incondicional).