Artigo de António Bagão Félix.
Entalado entre oito (!) planos de reestruturação não aceites pela Comissão Europeia, a breves dias de entrar em vigor a directiva de resolução bancária pelo mecanismo de resgate interno (bail-in), entre informações e contra-informações que fizeram voar quase 1.000 milhões de depósitos e transformar a cotação das suas acções numa montanha russa sem a imediata suspensão pela CMVM, eis que, num domingo outonal, nos é apresentada a factura violenta do fim do BANIF, ainda que imprecisa, e que vai ser debitada aos actuais e futuros contribuintes. Com um paradoxo inusitado: um banco público (o Estado detinha 60% do capital) entregue a uma gestão privada, ainda que com administradores por parte do Estado (não executivos) que, em tese, fazem lembrar aqueles árbitros-múmia que, nos jogos europeus, estão na linha de cabeceira.
Por outro lado, a pressa nunca foi boa conselheira. Sobretudo para quem vende. E a irracionalidade aí está em todo o seu esplendor: os portugueses contribuirão com mais 2.000 milhões de euros para o banco comprador ficar com o “filet mignon”!
Entretanto, assistimos aos habituais passa-culpas, à confusão de responsabilidades políticas, institucionais e gestionárias e à tomada de posições partidárias prenhes de solenidade algo postiça. Os números, ainda que esparsos, dão-nos a dimensão de mais um “desfalque sem rosto”. Um banco com 4% do mercado vai-nos custar, em versão conservadora, não menos do que 3.000 milhões de euros. Um “assalto à mão armada” a quem paga honradamente os seus impostos, vistos sempre como primeiro e único recurso. Para os contribuintes a solução é sempre TINA (There Is No Alternative).
O Governo entendeu tomar a decisão que, obviamente, é respeitável no difícil contexto em que foi deliberada. É certamente a decisão mais popular no sentido de trocar problemas directos e imediatos por soluções diluídas nos impostos e na criação de dívida. E felizmente a Comissão Europeia recusou a integração na CGD que seria simpática aos olhos do cidadão comum, mas contaminaria a frágil saúde do banco do Estado. Aliás, sobre as várias alternativas em tese, Ricardo Cabral sumariou-as exaustivamente no seu último post.
Mas, nós — os pagadores — precisamos de saber tudo ao detalhe. A Comissão de Inquérito que vai ser constituída é, nesse contexto, bem-vinda. Como é que em 3 anos um apoio em capital e obrigações convertíveis de 1.100 milhões se “transforma”, por alquimia, em, pelo menos, 3.000 milhões de buracos? Como foi possível este “milagre” da multiplicação dos danos? Para além do Banco de Portugal regulador e supervisor (que nunca teve cultura transaccional e negocial que agora sobre ele impende), como foi a relação, por via da governação, entre o Estado accionista (mais de 60%) e o Banco? Quais as consequências para o sistema bancário de um Fundo de Resolução que vai obrigar os bancos a pendências e custos futuros que podem comprometer a sua saúde económica? Quem nos faz este balanço a prazo e geracional para vermos para além do dia seguinte? Quem é responsável por quê? Como se pode garantir que esta é uma situação excepcional não repetível, como antes sempre nos foi afirmado peremptoriamente o mesmo com o BPN, BPP e BES? Quem pode acreditar em testes de resistência, em auditorias troikianas, em certificações a la minute, em ratings?
Também precisamos de saber porquê esta opção, a dias de entrar em vigor o bail-in. Vale a pena sumariar as regras do resgate interno da União Bancária a partir de 1 de Janeiro de 2016:
A recapitalização através da redução do valor contabilístico do passivo e/ou da sua conversão em capital próprio deverá permitir que a instituição assegure a continuidade das actividades. Deverá evitar a perturbação do sistema financeiro que seria provocada pela cessação ou interrupção dos seus serviços essenciais e dar às autoridades tempo para a reorganizar ou liquidar partes da sua actividade de forma disciplinada.
Em síntese: se um banco tem de recorrer ao resgate interno, as autoridades terão de apelar em primeiro lugar a todos os accionistas, seguindo em seguida uma ordem pré-estabelecida para o resgate interno dos passivos. Os accionistas e outros detentores de instrumentos financeiros, como por exemplo obrigações convertíveis e obrigações não prioritárias, seriam os primeiros a suportar as perdas.
Os depósitos inferiores a 100 000 euros nunca seriam afectados. Tanto quanto possível, a responsabilidade pela cobertura das perdas do sector bancário é colocada sobre os investidores privados nos bancos e sobre o sector bancário no seu conjunto, e não sobre os contribuintes.
Tenho lido que há 2.000 milhões de euros em depósitos no BANIF acima de 100.000 euros. É muito, reconheço. Mas, pergunto o que é mais justo (ou menos injusto)? Fazer recair sobre os (fiscalmente ricos) contribuintes de baixos e medianos rendimentos e sobre pensionistas o custo deste sério problema ou fazê-lo suportar pelos accionistas (aqui seria inevitável a factura fiscal pelo facto de o Estado ser accionista maioritário, uma espécie de resolução pelo Estado a si próprio…), obrigacionistas e depositantes na parte acima do valor garantido de 100.000 euros? Bem sei que a solução adoptada é mais anestesiada, mas os clientes bancários têm que saber olhar para o mercado não de uma maneira indiferenciada, mas sabendo que o risco não é igual. Daí a necessidade de uma mais contínua e fidedigna informação ao mercado sobre a situação do sistema bancário. Tenho consciência de quão difícil é dar resposta a esta questão que oscila entre o benefício do infractor e a injustiça do pagador.
No seu conjunto, o Tribunal de Contas estimou o apoio (líquido) à banca entre 2008 e 2014 em cerca de 12.000 milhões de euros (BPN, BPP, BES, BANIF e CGD). Valor que corresponde a um ano de pensões contributivas da Segurança Social.
Têm-nos sido dito e redito que o principal problema do País são os velhos, pensionistas e aposentados, quase grupos de elevada toxicidade. Porque os problemas bancários, tóxicos ou não, resolvem-se de uma “penada”. Como se tem visto. Em parte significativa recorrendo aos tais reformados. E não só. Entretanto, a banca nacional, para além da CGD, já foi.
Artigo publicado no blogue Tudo Menos Economia