Artigo de João Ramos de Almeida.
“Os que sobrevivem do chamado partido democrático, monárquicos liberais ou integristas desgarrados, socialistas, elementos da Seara Nova, o directório democrata-social, vestígios dos partidos republicanos moderados, alguns novos, sedentos de mudança, e os comunistas – todos poderiam unir-se, como fizeram, mas só poderiam unir-se para o esforço da subversão, não para obra construtiva”. A “impossível vitória” “das oposições” que nunca seriam uma “alternativa”, significaria “cair-se no caos, abrindo-se novo capítulo da desordem nacional”
Esta antevisão do “caos” não é visivelmente recente. Mas é reveladora da forma como se arrumam as ideias do pensamento conservador, quando se trata de cercear o acesso ao poder. A frase é de António de Oliveira Salazar e foi proferida a 1 de Julho de 1958, numa alocução ao país na sede da União Nacional (Caminho do Futuro). E no entanto, ela parece adequar-se ao que se diz sobre… um possível governo de esquerda nos nossos dias.
Os nossos comentadores de direita e directores de jornais não conseguem interiorizar essa nova realidade. Mas olhando para trás pouco ligaram à brutalidade com que o governo PSD/CDS entrou no país. Não sentiram na pele a sua arrogância. Não pressentiram os riscos sociais – e políticos – de um programa radical de direita. Pior: até alinharam com ele. Apoiaram tudo até perceber, em 2013, que o Governo PSD/CDS desistira de reformar o Estado, de reformar o tecido económico e deixara a austeridade atenuar-se, com os olhos nas eleições. Sentiram-se decepcionados e desiludidos. Queriam mais!
Mas esta cegueira social cola-se a outra. Depois de tudo, os mesmos comentadores estranham agora que haja já um milhão de portugueses dispostos a afastar de imediato a coligação de direita, mesmo pondo de lado, tacticamente – veja-se lá o ódio gerado! – as ideias fortes do seu pensamento. E ainda os acusam de tacticismo!
Agora, quando a esquerda quer ser poder, fala-se de “fraude eleitoral”. Democracia é apenas quando a direita ganha. Ou que qualquer ideia de esquerda terá de ser de direita (porque as propostas do PS são de direita). E até já se interpreta o sentido de voto dos socialistas (Durão Barroso: “Os eleitores socialistas não votaram no PS para um Governo com PCP e BE. Toda a gente sabe que não foi esse o sentido de voto dos eleitores socialistas.”) A entrada do PCP e do BE no governo só pode ser “abrupta” ou “uma golpada”. A austeridade – estúpida e, sobretudo, ineficaz – foi um aproveitamente legítimo por parte da coligação de direita, já o do PS é uma subversão às regras da UE. Uma aliança à esquerda só é própria de um desespero de um arrivista. Nem sequer é sincero… Até a igreja sente a necessidade de considerar “mais natural” uma aliança da classe média, repartida por dois partidos.
Decidamente, a nossa direita não aprendeu nada com a social-democracia e mantém todos os traços do conservadorismo agressivo. O regime salazarista estava em nós, não foi um acaso, nem uma ditadura de um só homem. Como nunca é. Era a forma policial de um sentimento muito claro que ora se vive em Portugal: o “arco da governação” é um cinto de aço, de uma ideia retrógrada, que visa impedir certas forças da sociedade – aquelas que querem mudá-la – de chegar ao poder.
Na ditadura, podia ser-se de esquerda em pensamento. Podia procurar-se livros proibidos. Em 1972, Marx, Engels e Lenine eram vendidos em certas livrarias, cooperativas. Comprei muitos. O regime fechava os olhos a essas coisas. Pressionava, mas deixava. “Podes viver, mas não tocar; podes tocar, mas não sentir; podes sentir, mas não provar.” A repressão actuava precisamente quando se pensava em derrubar o regime. Quando se mexia um dedo e se pensava em ser poder. Isso estava vedado. Protegido a certas forças. Violentamente.
E tudo isso explodiu em liberdade. Como não podia deixar de ser. O fascismo forjou várias gerações de militantes anti-fascistas e anti-capitalistas que se mantêm ainda hoje no terreno.
Há uma ideia de classe em todo o pensamento actual. Nota-se na vida actual que as pessoas de certas classes já recuperaram certas posições. Até no rendimento. Não estão dispostas a voltar atrás. O pensamento refina-se. Mas a ideia subjacente é bruta: manter tudo como está.
Até o simples indicador de “competitividade”, agitado tantas vezes na comunicação social e que serviu de base ao emnpobrecimento geral, é uma forma social que o conservadorismo económico inventou para impedir a repartição do rendimento com o pessoal trabalhador. Os ditos custos do trabalho por unidade produzida (CTUP) comparam as remunerações por trabalhador com o valor da produto per capita. A leitura é tão simples como a ideia que passa: só se pode aumentar os salários na proporção dos aumentos da produtividade do trabalho. Na realidade, o que se está a dizer é simplesmente isto: o peso dos salários no rendimento nunca pode subir. O rendimento do capital está salvaguardado para sempre.
E assim se faz Portugal. 40 anos não é nada na História das mentalidades.
Publicado no blogue Ladrões de Bicicletas.