Artigo de Carlos Gaivoto.
Prólogo
“The geography and history of capitalism intersect in a complex social process which creates a constantly evolving historical sequence of spatialities, a spatio-temporal structuration of social life which gives form to and situates not only great movements of societal development but also the recursive practices of day-to-day activity – even in the least capitalist of contemporary societies.
…
Social and spatial structures are dialectically intertwined in social life, not just mapped one onto the other as categorical projections. And from this vital connection comes the theoretical keystone for the materialist interpretation of spatiality, the realization that social life is materially constituted in its historical geography, that spatial structures and relations are the concrete manifestations of social structures and relations evolving over time, whatever the mode of production…The constitution of society is spatial and temporal, social existence is made concrete in geography and history.” Edward Soja, pág. 127, cap.5 “Reassertions: Towards a Spatilized Ontology” – In “The Reassertion of Space in Critical Social Theory”, Ed.Verso, 1989.
A intervenção política, nas áreas do social, do económico e do institucional, tem tido participação diversa dos partidos e das organizações autónomas numa sociedade cada vez mais urbanizada, onde as ilusões urbanísticas vão moldando a nossa vida quotidiana, onde o atomismo paralisa e substitui a cidadania mas, onde os movimentos sociais desiguais e combinados vão a par das diferentes geografias do capitalismo. Em períodos de refluxo, esse atomismo reduz respostas políticas de alternativa ao actual sistema, acentua mesmo recuos que explicam, em parte, o prolongamento das “vitórias” da gestão capitalista.
Por cá, a “fraca” atenção, leia-se, o “fraco” combate ideológico dado às políticas públicas de como se faz cidade ou região, ou seja, do planeamento da ocupação e usos do solo, dos equipamentos colectivos aos serviços, ao contrário doutros; traz-nos o debate que Lefebvre introduzia em 1970 no seu livro “La Révolution Urbaine”, a preocupação de como responder ao modo de vida introduzido nas cidades e sobretudo, como responder à: – “extraordinary passivity of the people most directly involved, those who are affected by projects, influenced by strategies. Why the uncertain mutterings about aspirations – assuming anyone even bothers to consider them? What exactly is behind this strange situation?…The political reasons for passitivity need to be taken seriously…Ideologically, technically, and politically, the quantitative has become rule, norm, and value. How can we escape the quantifiable”.
À reflexão e apreensão de Lefebvre naquele tempo e às similitudes do que se passa hoje, em particular, quando “movimentos sociais” são seguidos de períodos de refluxo, há hoje um maior enriquecimento no reforço deste debate, através de contributos, entre outros, de Harvey, Soja e Castells em que a Geografia Humana é colocada perante a dinâmica das lutas sociais dentro das cidades, a par das lutas pela procura duma maior justiça social, territorial, ambiental e energética: “At that time, a balanced socio-spatial and geo-historical dialetic was almost inconceivable on the Marxist left, and for various other reasons, Lefebvre’s ideas remained buried for more than two decades. While Lefebvre’s spatial explanation of the survival of the capitalism was muted in its impact, Harvey came forward with his very similar idea that capitalism seeks a spatial fix when faced with crisis.”.
Associado ao direito à cidade, este debate da sobrevivência do capitalismo na reprodução social da ocupação e usos do solo deve, por isso, aprofundar-se à esquerda, num período em que o modo de vida do Estado Social é posto em causa pelo neo-liberalismo e num período em que a ecologia urbana não é, como muitas vezes se confunde, associado às questões ambientais ou ao capitalismo verde.
Por outro lado, trata-se também de questionar a forma e os planos do(s) Governo(s) do Estado e das Vereações Municipais eleitas que têm expandido território urbano duma forma cíclica com as crises do capitalismo, dando-lhe aquela oportunidade de sobrevivência. Este é um debate pouco aprofundado e, por vezes, limitado aos períodos eleitorais das autarquias, portanto, pouco trabalhado com as populações e a sociedade.
Por cá essa praxis pelo direito à cidade e a procura de justiça social tem tido uma grande diversidade e na maior parte das vezes muito reactiva, o que evidencia ainda as fragilidades políticas de intervenção desses movimentos sociais e políticos.
Por isso, no texto seguinte elaborado em 2013, fruto de experiência de trabalho local desde 74 e mais recentemente com os movimentos da CRIL (2002), “Salvem Caxias” (2004) ou ainda mais recente, o movimento de “Cidadãos por Alcântara” (2012); coloquei o lema da “cidadania, ecologia, democracia” com a perspectiva de se criar uma agenda local que permita ser um reforço do combate ideológico para futuros movimentos sociais e ao mesmo tempo um apelo à sua autonomia através da criação, por exemplo, de Fórum Social por município.
É também um documento que em 2013, entendido como base programática para um manifesto autárquico, já colocava no debate político da necessidade da Convergência de Esquerda, o contexto da necessidade de aprofundar, por exemplo, os Planos de Ordenamento do Território e Transportes e a Conta Pública do Sistema de Deslocações mas, enquadrados por políticas públicas para uma sociedade que se oriente pelos princípios e objectivos do eco-socialismo, admitindo que a Democracia e República são indissociáveis, em particular, no combate à barbárie do capitalismo. É, portanto, um texto de balanço e perspectivas, a saber:
- “República e Democracia da(s) Cidade(s) Eco-Socialista”
A República reforça-se com a Democracia na cidade eco-socialista mas, os contornos burgueses do “desenvolvimento” democrático, como por exemplo, a ausência de justiça social e territorial no governo da cidade e da região, atrasam-na e acentuam as desigualdades e as assimetrias da vida das populações e da economia desses territórios.
No encontro de balanços económicos e sociais, fora do parlamento, de cada uma das regiões e cidades do país, poderemos evidenciar o contraste entre o que seriam as opções de desenvolvimento sustentável duma sociedade com justiça social, territorial e ambiental e aquela que é controlada por leis e regulamentos que têm permitido projectos capitalistas especulativos. Estes projectos que nos trazem elevados custos sociais directos e indirectos e a que não é alheia a irracionalidade da exploração dos recursos materiais e humanos e os custos provocados pelos impactes, por exemplo, duma difusão urbana com consequente aumento das externalidades negativas nos transportes, na saúde, no ambiente e na energia.
Na Europa, a partir dos anos 70/80, depressa se fez crer que esses impactes deveriam ser geridos através das orientações liberais e neo-liberais que consagraram a privatização da República: – os serviços públicos dos transportes, da saúde, do ambiente e da energia e que passaram a fazer parte do léxico da economia privada contra a economia pública.
Foi assim em Inglaterra e em Portugal com grande incidência pois, depressa também se foi consolidando toda uma construção legislativa a consagrar o direito privado sobre o direito público, deixando para trás toda a construção duma sustentabilidade a basear em códigos civis, de urbanismo, de transportes, de racionalização do ar e da energia, como já era recomendado pelo relatório Brundtland em 1987 e mais tarde consagrado no Protocolo de Quioto e Agenda Local XXI, em que se exigia o cumprimento do princípio de precaução e a justiça social, territorial e ambiental. Em Inglaterra algum caminho foi arrepiado depois do desastre Thatcher mas, em Portugal, os governos e os bancos empreenderam essas políticas e ampliaram os usos e costumes na privatização das “utilities” da economia pública e social. Perdeu a República e perdeu a Democracia.
Dentro deste espectro político, não só verificável ao nível europeu, nem todos os Estados, e por demais, as Repúblicas, se deixaram dominar exclusivamente por essa lógica especulativa, ou seja, existem algumas “boas práticas” de enquadramento ecológico, desenvolvidas em cidades e regiões de países capitalistas avançados.
Seja pelo elevado nível político da democracia participativa ou de grandes movimentos sociais ecológicos, seja pelo próprio estádio de desenvolvimento das suas forças produtivas, nestes países fizeram-se consagrar princípios e objectivos de ecologia urbana de desenvolvimento sustentável e que aplicaram as raízes da Democracia Participativa nos seus programas de Economia Verde (ex: Grenelle Environnement). Ao romper com o modo de produção capitalista, estes programas poderão ter, na sua génese, as raízes da democracia socialista, uma vez que a discussão do modo de produção, seria debatido, planeado e organizado pela sociedade em geral.
Neste contexto, a ampliação da aplicação de conceitos de ecologia urbana e desenvolvimento sustentável desses países só está a confirmar a teoria do desenvolvimento desigual e combinado e coloca no centro do debate da governação urbana, a questão da cidade que queremos no plano da ecologia urbana e de desenvolvimento sustentável, sabendo que a ideologia dominante está já a fazer a sua incursão “inteligente” nestes domínios, aos quais devemos saber responder.
Portanto, o primeiro cuidado/desafio que se coloca hoje em dia é como se deve combater a instrumentalização política das orientações liberais e neo-liberais sobre a ecologia urbana e o desenvolvimento sustentável, como já o pretende fazer o Governo PSD/CDS, ou ainda, como fazer a governação urbana de esquerda pelas cidades eco-socialistas e de rotura com o sistema capitalista, com PS, PC e movimentos autónomos de cidadãos; e o segundo desafio é o combate por uma descentralização institucional (local e regional), nas atribuições de competências, por exemplo, às CIM, como forma de aumentar a Democracia da República, sendo certo que a discussão desta descentralização institucional só pode visar a justiça social, territorial, ambiental e económica.
Ou seja, trata-se, portanto, de discutirmos primeiro, o programa de governação urbana e depois, discutirmos a forma institucional da administração do território da cidade ou da região. Ora, neste encontro de perspectivas sobre programa de governo local, devemos ou não antecipar o nosso esforço político na defesa da ecologia urbana e desenvolvimento sustentável, por consequência, na Democracia que defenda a República da cidade eco-socialista com justiça social, territorial e ambiental?
Claro que sim! Qual (ais) é (são) a (s) prioridade (s), então, no trabalho local?
- A sustentabilidade do eco-socialismo nas cidades e regiões e a proposta “Por uma Convergência de Esquerda”.
Falar de República das cidades (e das regiões) é ir muito além do Parlamento, é clarificar princípios, objectivos e metas contra o desperdício dos recursos naturais, materiais e humanos causados por políticas e agentes da especulação e de privatização dos serviços públicos; ao mesmo tempo em que o ordenamento do território, das infraestruturas e equipamentos colectivos são planeados com maior integração e coerência de acordo com as necessidades sociais, com justiça social e territorial em que os critérios de ecologia urbana são aplicados no desenvolvimento sustentável e em que o controlo democrático sobre o financiamento de projectos de cidade eco-socialista, combate as políticas de austeridade, cria mais emprego e aumenta a riqueza dessas cidades e regiões. Por exemplo, estudos recentes demonstram que o investimento no transporte público não só gera actividade económica e aumenta a produtividade da economia urbana, como também, gera um valor entre 3 a 4 vezes o investimento inicial e diminui todo um conjunto de externalidades nocivas à sociedade.
Neste contexto, a concretização de programa estratégico de sustentabilidade para cidade e região não trata só de racionalizar a economia, como pretendem algumas correntes verdes – ver nota da UITP (União Internacional do Transporte Público) – mas, antes deve basear-se numa excelência de qualidade de vida e do ambiente urbano, em que a reabilitação urbana se articule, por exemplo, com a acessibilidade sustentável, com projectos de Transporte Colectivo em Sítio Próprio (TCSP) e vida sustentável em bairros ecológicos promovendo a integração coerente com a justiça social, territorial e ambiental em planos sociais e económicos de pleno emprego.
Esta estratégia vai para além das leis económicas e financeiras baseadas em planos de austeridade capitalista e irá, também, combater os Planos de Urbanização e os Planos Directores Municipais (e os planos especulativos de infraestruturas e equipamentos) actuais pois, terá de corrigir o desperdício gerado pela difusão urbana entretanto acentuada nos últimos 30 anos quer ao nível dos balanços energéticos quer ao nível das externalidades negativas com impacto no aumento dos custos sociais, cuja responsabilidade tem perpassado pelas governações de esquerda (PS e PCP).
É também uma estratégia e programa que dimensionam a qualidade da cidade orientando-a para a escala humana de proximidade, de densidade e diversidade que permita coerentemente uma completa integração social, territorial e ambiental, por exemplo, promova a mobilidade sustentável, ou seja, uma maior utilização dos modos alternativos ao automóvel, como os modos suaves e o TC.
Ora, este programa terá de planear e organizar a(s) cidade(s) e a(s) região(ões) com prioridade aos modos alternativos, às energias renováveis e minimizar as externalidades negativas e os impactos dos seus custos sociais. É também um programa que permite sustentar a ecologia urbana ao nível dos municípios e em que as diversas cidades aí existentes saibam articular os bairros nas relações de solidariedade e justiça social e territorial, de qualidade das escolas e centros de saúde, da diversidade de etnias e culturas, de reforço do desporto e do lazer.
- É possível a Convergência de Esquerda com esta rotura estratégica e associar este programa de ecologia urbana e desenvolvimento sustentável contra a lógica capitalista?
Os programas de habitação, de transportes, de equipamentos colectivos de ensino e saúde aplicados pelos governos de cidade nunca foram aplicados segundo critérios de sustentabilidade e muito menos de ecologia urbana: promoveu-se a dispersão urbana com os Planos de Urbanização adaptados à iniciativa privada, ao mesmo tempo que se acentuam a “ghetização” e a gentrificação e se abandonava a integração social e económica que não foram realizadas em práticas de boa vizinhança e de proximidade que se exigia ter sido realizadas através de políticas de diversidade, densidade e design e que consagrassem cidades baseadas em eco-bairros.
A agravar esta situação, sempre que a administração central intervinha nos projectos de grandes infra-estruturas e equipamentos, como os pacotes de acessibilidade em redes rodoviárias ou em redes de saneamento ou até de equipamento social (escolas e centros de saúde, desporto ou lazer), nunca foram realizadas tendo em conta a análise custo-benefício social ou quando o foram, foi sempre numa lógica de ocupação e usos do solo especulativos e, portanto, sem qualquer esquema de coerência territorial e sem qualquer Conta Pública, como por exemplo, do sistema de deslocações que sustentasse a decisão.
Em todos estes anos, a consulta pública foi sempre instrumentalizada, limitada e manipulada, veja-se o exemplo recente da CRIL, ou da localização de hospitais como o de Cascais e Loures, para não falar da Amadora, em que a acessibilidade se faz por modo rodoviário e transporte individual.
No sector dos transportes, só da AML, terão sido gastos mais de 75 mil milhões de euros nos últimos 35 anos, entre construções, ampliações, renovações e remodelações das infra-estruturas e equipamentos colectivos terrestres, desde o marítimo, aéreo, ferroviário e rodoviário. Noutros sectores, como o da saúde e do ensino, haverá com certeza outros números. Mas, sabendo ao estado de dependência energética e efeitos negativos do sistema de transportes, de redução de serviços e o respectivo encarecimento das políticas neo-liberias, trata-se, agora de romper com esta lógica e apresentar soluções alternativas à privatização destes serviços em três domínios que afectam as necessidades individuais e colectivas das pessoas e das empresas. Como se faz o programa, o planeamento e a gestão da coisa pública?
Em primeiro lugar, suspender o programa de austeridade da TROIKA e suspender o PET que dita a suspensão do investimento e financiamento público do sistema de transportes. Noutros sectores, provavelmente o mesmo. No caso dos transportes, há a oportunidade de cerca de 1/3 do QREN 2014-2020 poder financiar e ser utilizado em projectos de TCSP para se promover a cidade ou a região ecológica, tornando-a menos dependente energeticamente e com menos custos sociais. Neste programa, a atender as conclusões dum estudo feito para a APTA, por cada bilião de USD aplicado, espera-se criar em média 36 mil postos de trabalho e a riqueza poder aumentar a prazo em cerca de 3,5 biliões de USD. Ou seja, os investimentos públicos serão orientados para o pleno emprego e ampliação de emprego qualificado.
Em segundo lugar, aplicar um programa de ordenamento dos usos do solo e dos transportes e tendo como objectivo duplicar o uso dos modos alternativos (TP e modos suaves), como por exemplo, duplicar a procura actual do TP, corrigir-se-ão os níveis de serviço de oferta, melhorando a regularidade, frequência, segurança e conforto, aplicando o princípio da tarifa única a um PTU (Perímetro de Transporte Urbano) fazendo uma integração e simplificação tarifária, diminuindo os preços e colocar regras de subsidiação à exploração das várias empresas com base em contratos de OSP (Obrigações de Serviço Público) planeados e organizados pelas autarquias nas autoridades de transporte. Será elaborada uma Conta Pública do Sistema de Deslocações em Planos de Deslocações Urbanas (PDU) Sustentáveis e as populações serão chamadas a consulta pública para se tomar decisões que respeitem ao TP (Transporte Público), uma vez que se propõe que a cidade ou município sejam orientados para o uso dos modos alternativos, modos suaves e TP de qualidade, diminuindo-se as despesas com o TI.
Todos estes PDU deverão permitir elaborar o Esquema de Coerência Territorial com as infraestruturas e equipamentos colectivos planeados e organizados com critérios de rendibilidade social, rompendo-se com a prática actual de inflação e da pouca qualidade dos mesmos, uma vez que só têm sido orientados para a consecução de PPPs e não têm obedecido a critérios de desenvolvimento e financiamento sustentável.
Em terceiro lugar, com esta mudança de orientações estratégicas na aplicação de dinheiros públicos e de cidades viradas para o eco-socialismo, as governações de esquerda terão de ser assumidas de modo que a gestão da coisa pública tenha em consideração a defesa dos princípios e objectivos do Estado Social, justiça social, territorial e ambiental. Estes governos devem, por isso, acentuar a sua actuação nos Fóruns Sociais de participação cidadã na construção da cidade eco-socialista. Serão estes Fóruns Sociais que ao nível dum concelho, agregando e reunindo anualmente os movimentos de cidadãos, partidos, sindicatos, ONG, e outros movimentos associativos, poderão romper com a actual instrumentalização por parte das instituições e a falta de participação nas deliberações que a comunidade local deve ter.
Os recursos naturais são hoje desequilibradamente e irracionalmente consumidos face à lógica do modo de produção capitalista. Os programas de exploração desses recursos são conduzidos com base na inflação de preços, tarifas e juros, garantindo as margens às empresas e ao sistema bancário que os financia. O exemplo do consumo de combustível fóssil é dos mais ilustrativos: em 2007, cerca de 10, 1 biliões de viagens realizadas em TP pouparam nos EUA um consumo de 1,4 biliões de galões de gasolina, o equivalente ao abastecimento em cada 11 dias de um petroleiro supertanque. Por outro lado, a biodiversidade do planeta é colocada em causa e as populações são concentradas em cidades, cuja economia é inflacionada face aos enormes recursos materiais e humanos requeridos.
É neste contexto que toda a programação eco-socialista deve denunciar esta lógica e contrapor um conjunto de alternativas que se baseiem na ecologia urbana e desenvolvimento sustentável. É neste contexto que a Convergência de Esquerda é desejável e possível com base num programa de Objectivos e Contas Públicas que evidenciem uma Governação apostada na completa justiça social, territorial e ambiental.
- A reforma institucional e administrativa do território (urbano e regional) e o desafio da descentralização e da democracia da República, pela ecologia urbana e desenvolvimento sustentável.
O modelo neo-liberal de reforma administrativa do PSD/CDS prescreve uma diminuição do número global das freguesias e dos municípios, porque há que reduzir custos com os encargos administrativos e políticos, e propõe assim que nas estruturas intermunicipais haja mais competências. Para alguns, dir-se-á que se trata de diminuir a “democracia” e para outros, a “República” sai diminuída. Nem num caso, nem noutro, os conceitos de República e da Democracia se definem pelo número de municípios e de freguesias, uma vez que a representatividade, das necessidades sociais e económicas das populações, não se mede no contorno duma assembleia municipal e/ou de freguesia. A democracia participativa será mais que uma alternativa à representatividade, ela contribuirá para a defesa do Estado Social da República, ajudando a construção social da mesma. O Fórum Social é parte dessa agenda local.
Portanto, aquela gestão neo-liberal da estrutura administrativa do território não é inócua; acompanha tão só, a ideologia da Troika de diminuição dos serviços públicos de proximidade e da privatização dos mesmos ou concessionados pelas autarquias ao nível das CIM ou comunidades urbanas, enquadrada na lei fiscal do OE2013. Porém, ao tentar atribuir mais competências às CIM (lei 75/2013), não deixa de colocar em debate a questão da descentralização política e, logo, pronunciar outro enquadramento teórico acerca da articulação das necessidades das populações da cidade e da região, o que nos traz novamente ao programa eco-socialista.
Para além da batalha política imediata de denúncia e derrota da ideologia neo-liberal, convém, no entanto, relembrar que durante os últimos 35 anos de administração/intervenção nos territórios urbanos, dum modo geral, foi-se acentuando uma completa subversão do que deveria ter sido um programa de desenvolvimento sustentável, tal como era recomendado no relatório Bruntdland em 1987 à comissão do ambiente da ONU onde se defendia o princípio da precaução, ou ainda o protocolo de Quioto assinado em 1992 e que Portugal subscreveu.
De facto, nestes 35 anos foram produzidas demasiadas infraestruturas e equipamentos sem uma avaliação coerente com a qualidade e justiça territorial e social. Atrás da “inflação urbanística” evidenciada na dispersão urbana dos territórios, foi-se consumindo espaço, tempo e energia em elevados volumes de deslocações motorizadas como nunca antes, em que os meios aplicados geraram mais desperdício e custos, do que benefícios.
E nestes 35 anos, a Governação por partidos de Esquerda (PS e PCP) não se distinguiu do modelo de favorecimento privado, iniciado nos anos 80 (cúmplice da escola neo-liberal quando Thatcher lançava a privatização dos serviços sociais – as “utilities” – e/ou desregulava o crédito na venda/compra das casas abandonando as políticas sociais de habitação…). Pelo contrário, como já se referiu, coincidiu com o início na Europa, de todo um processo acentuado de desregulação da economia urbana levado até aos dias de hoje, com todos os efeitos negativos acumulados e que acabaram por “explodir” na “bolha” especulativa em 2007, após algumas recessões pelo meio.
Neste contexto, é preciso que a leitura acerca da reforma administrativa troikana, enunciada e aplicada por força de lei fiscal orçamental, seja denunciada e derrotada. Mas, também, é preciso romper com essa administração e gestão da ocupação e usos do solo e entender que a descentralização é necessária, se for compatível com a maior justiça social, territorial e ambiental, e realizada com coerência e integração do território quer urbano quer ao nível da região em que a cidade se insere. Isto significa, de facto, uma maior articulação entre municípios e, por isso, mais democracia participativa, mais fóruns sociais, mais consultas públicas, mais cidadania, o que invariavelmente vai contra a actual ideologia dominante.
- Como mudar então este paradigma do PSD/CDS e como entrar rapidamente no caminho da ecologia e sustentabilidade urbana que devolva a qualidade de vida e de trabalho às pessoas e às empresas? Pela defesa do Estado Social e da cidade eco-socialista!
Começar uma política programática coerente e consequente com a ecologia e sustentabilidade urbana, torna-se por isto, o denominador comum da nossa intervenção política e institucional já para 2013 e nas próximas eleições autárquicas.
Muitas cidades portuguesas comprometem-se em Protocolos internacionais em defesa da qualidade do ambiente urbano, como por exemplo o Pacto dos Autarcas (Convenant of Mayors), outras candidatam-se a fundos estruturais e outras ainda compreendem a sua actividade na participação em projectos europeus. O QREN 2014-2020 vai possibilitar o reforço do Investimento Público em 21,5 mil milhões de € e mais uma vez a discussão pública e a cidadania ficam omissos, enquanto as administrações dos municípios já se preparam para essas candidaturas sem qualquer estratégia. Ora, há que mudar o paradigma seguido até aqui e também há aqui uma oportunidade de afirmar como é que a Governação Urbana em defesa do Eco-Socialismo entende o Investimento Público seja no reforço tecnológico e criação de emprego qualificado seja no desenvolvimento sustentável.
Neste sentido, o apelo a um Programa de Ecologia e Sustentabilidade Urbana deve ser lançado…, para ser elaborado com a urgência da participação cidadã, organizações sociais e políticas, em Fóruns Sociais, dinamizando-o para construção de cidades eco-socialistas nos seguintes objectivos, metas e eixos de intervenção com a seguinte agenda:
…, aumentar a eficiência institucional e legislativa preparando as seguintes propostas:
Anulação de parte da dívida e reestruturação dos prazos e juros de pagamento, através da necessidade de financiamento ao investimento público de projectos consentâneos com o desenvolvimento sustentável da economia urbana;
Afirmação do princípio de descentralização e responsabilização em economia local/regional, pela consolidação da eleição directa da Comunidade Urbana ou CIM por regiões…(?), com competências no ordenamento, planeamento e gestão dos sistemas sociais e territoriais de habitação; transportes urbanos e regionais; educação; saúde e desporto; e no ordenamento e planeamento fiscal de consecução dos Planos Estratégicos e Operacionais que respeitem os princípios de desenvolvimento sustentável baseados nos critérios e objectivos da ecologia urbana;
Proposta de lei com programa social de pleno emprego com base na escala móvel de horário (30 horas semanais) e de salários (mín.1000 €) nos serviços públicos de transporte, saúde e educação, da energia e das águas; simplificação de carreiras profissionais;
Criação dum Instituto de Urbanismo de apoio ao Estado Social e de Agências de Urbanismo às Comunidades Urbanas e Municípios para revisão e/ou elaboração imediata dos Planos de Urbanização e PDM e apoio aos PDU e respectiva Proposta de lei de Organização Institucional do Sistema do Território e Código do Urbanismo;
Criação das AOTU e mecanismos de contratação e financiamento do transporte público urbano pelos municípios, promovendo o Reforço do Sistema de Transporte Público aumentando a sua cobertura territorial e temporal, os serviços multimodais e diminuindo a dependência do automóvel através de políticas tarifárias e fiscais;
Regulamentação das Leis Base do Ordenamento do Território e dos Transportes, passando pela revisão da lei do arrendamento habitacional, da lei de criação dos eco – bairros, da lei do financiamento dos transportes e, particularmente, do transporte público de passageiros com recurso a fundos estruturais europeus e/ou do BEI;
Proposta duma Lei da Racionalização do Ar e da Energia que defenda a elaboração e consolidação dos PDU pelas AOTU com metas ambientais e energéticas, de repartição modal favorável à prioridade do uso do TP urbano e sustentabilidade da economia local;
Proposta de lei de defesa e reforço da Escola Pública e o fim do financiamento das GPS do ensino privado;
Proposta de lei de defesa e de reforço do SNS, e o fim do financiamento às GPS de saúde privada;
Proposta de lei do ordenamento fiscal descentralizado, pelo reforço dos serviços sociais de proximidade e consequente estratégia de reocupação do território urbano, condensado no PTU e elaboração dos Orçamentos Municipais com base 0.
…, aumentar a capacidade de ordenamento e regulação através de:
Revisão dos PU, PDM e PROT em Fóruns Sociais de acordo com as orientações dos PDU que promovem a mobilidade e acessibilidade sustentável de âmbito local/concelhio ou regional;
Reabilitação Urbana promovendo os eco-bairros e articulando políticas 3Ds (Diversidade, Densidade e Design) com os projectos de Transporte Colectivo em Sítio Próprio (TCSP) e aumento do uso dos modos suaves, diminuindo a dependência dos combustíveis fósseis;
Elaboração do Esquema de Coerência e Justiça Territorial e Social e do Contrato Plano Estado-Região para a consecução do PROT e respectivo orçamento e financiamento através, por exemplo, do QREN (VII? QCA);
Consolidação das entidades públicas de regulação regional e comunitária baseada nos respectivos instrumentos de gestão e planos de actividade.
Reestruturação da dívida, dos prazos e juros com a administração central do Estado;
Até finais de 2015, repor os mecanismos sociais, económicos e fiscais do Estado Social através de:
Elaboração de programa estratégico, económico e social de desenvolvimento sustentável através de políticas de crédito público (e privado) controladas de acordo com as necessidades sociais e económicas colectivas e através do apoio a programas de investigação aplicada que articulem Universidade, Autarquia e Empresa, seja no domínio dos transportes, da biotecnologia e biomédicas, da indústria de energia renováveis, etc., mas, sempre com base no desempenho para a economia local/regional e socialmente úteis;
Elaboração de programa económico de pleno emprego com base na prioridade aos projectos de reabilitação urbana dentro das áreas dos PTU (Perímetro de Transporte Urbano) articulada com o reforço dos serviços públicos, nomeadamente dos transportes, da educação e da saúde e sua articulação com pequenas e médias empresas no apoio a diferentes sectores quer na vertente de investigação aplicada, quer na vertente de desenvolvimento de indústria de construção e desenvolvimento tecnológico de sistemas de informação, comunicação, transporte e comércio.
Esta é uma agenda não acabada, haverá com certeza camaradas doutros sectores de intervenção local que podem colocar propostas mais concretas de solução e/ou de alternativa/rotura com as práticas e os modelos actuais neo-liberais. Pegar num sector é muito mais que um exercício de crítica, de avaliação e de apresentação de propostas alternativas. No sector do ordenamento do território, urbanismo e transportes há diversos níveis daquele exercício e afinar um programa que vá contra o actual PET (Plano Estratégico de Transportes), exige compreender como funciona todo o sector dos transportes nas suas diferentes áreas, níveis de intervenção com os diversos actores.
Uma coisa é certa, o que se propõe são apenas eixos que vão contra o programa neo-liberal de desregulação, de privatização e de concessões, portanto, planeadas e deliberadas e com objectivos ideológicos que se está a fazer nos diferentes sectores (aéreo, ferroviário, marítimo e rodoviário). Não se pode ficar na mão do capital financeiro e muito menos de inviabilizar projectos que hoje são reprovados sem sequer estudados sob o argumento de que o dinheiro é caro (claro, se for com as taxas de juro destes bancos).
Esta é também uma Carta anti neo-liberal !!! Estas são algumas pistas desta Carta anti neo-liberal, do que se pode discutir e reforçar o que deve ser a Governação Urbana de Esquerda, ou seja, também servirá para se elaborar um Programa de Governo de Esquerda.
Mas, esta é a tarefa central que … abrindo este debate à sociedade através do trabalho local assente nos Fóruns Sociais e de preparação dum novo Congresso Democrático das Alternativas de combate à ideologia neo-liberal e ao capitalismo. Por isso é que se defende um trabalho local que ultrapassa as questões meramente autárquicas, e o Fórum Social é o apelo imediato à mobilização da sociedade pelo eco-socialismo.”
Desde a elaboração deste documento, muitos acontecimentos, entretanto, sucederam em 2014 e 2015, como a situação dos movimentos sociais e políticos na Grécia e em Espanha, para além dos mais recentes acontecimentos dos movimentos de refugiados à guerra da Síria e do norte de África que colocarão a Europa perante o cenário da barbárie capitalista. Estes acontecimentos terão impacto em Portugal, num país com uma economia fragilizada e um endividamento colossal (em 2014, 486% do PIB – Estado:129%; Famílias:120% e Sector Privado:237%) contra 364% da Grécia ou os 321% da zona Euro e em que a dívida do Estado, com a acção da troika, passou de 111% do PIB em 2011 para 129% em 2014 e onde Portugal, tal como a Grécia, terá necessidade duma política de investimento massiva e dum perdão de dívida para que haja uma recuperação efectiva da economia.
Neste contexto político, económico e social, os movimentos sociais continuam fracos e não têm surgido no combate à política de crescimento e de reprodução social das cidades. Os Orçamentos Participativos limitam essa intervenção e a discussão da Utilidade Pública dos Planos e Projectos que estão associados ao investimento público para as cidades, são praticamente do domínio dos partidos que se fazem representar nas Assembleias Municipais, com toda a prática regulamentar (anti-democrática) que lhes é conhecida a que está associada a falta de democracia participativa. Por isso, a necessidade de “Fórum Social” como forma de combater a exclusão social e territorial e a luta por uma maior justiça social e direito à cidade. Trata-se agora da esquerda convergir nessa dinâmica social e política, na construção duma alternativa ao capitalismo com a eventual ajuda dum CDA (Congresso Democrático das Alternativas).
Referências Bibliográficas:
Harvey, David, 2006, “Spaces of Global Capitalism – Towards a theory of uneven geographical development”, ed. Verso, London
Harvey, David, 2009, “Social Justice and the City”, revised edition University of Georgia Press – “The Right to the City” (Sept. 2008, New Left Review)
Lefebvre, Henri, 2003, “The Urban Revolution”, ed. University of Minnesota Press
“Le Portugal, élève modèle” – in “Alternatives Économiques” nº 349, Sept.2015
Soja, Edward, 1989, “The reassertion of Space in Critical Social Theory”, ed. Verso, London
Soja, Edward, 2010, “Seeking Spatial Justice”, ed. University of Minnesota Press
Weisbrod, Glen and Reno, Arlee – “Economic Impact of Public Transportation Investment”, Oct. 2009, American Public Transport Association