Artigo de Alexandre Abreu.
Escrever uma vez por semana, dada a voragem do ciclo noticioso, tem destas coisas: nalguns casos, se não reagirmos imediatamente (ou se outros assuntos se impuserem), corremos o risco de já chegarmos tarde se apenas escrevermos sobre algum assunto uma semana depois de ele ter saltado para a ribalta.
Ao escrever agora sobre o plano elaborado pelo grupo de economistas próximos do PS coordenado por Mário Centeno que foi apresentado na semana passada, tenho a clara sensação que é esse o caso – e no entanto o assunto é demasiado importante para que não o retome aqui. É fortíssima a probabilidade do PS vir a formar governo daqui a alguns meses e é também elevada a probabilidade de que este documento venha a constituir a espinha dorsal do seu programa de governo para a área económica e financeira. Logo, é bastante provável que este pacote de medidas, com as alterações que o debate público e as dinâmicas políticas venham a impor, comece a passar do plano à realidade daqui a alguns meses. Debatamo-lo, pois.
O Bom
Deve começar por dizer-se que a “Agenda para a Década” é um documento abrangente, bem estruturado, com profundidade, propostas originais e uma tentativa séria de estimação dos impactos dessas propostas. Em suma, é um documento intelectualmente respeitável – o que em si mesmo poderá não parecer nada de especial até ao momento em que recordamos, por exemplo, o Guião da Reforma do Estado publicado no ano passado pelo actual governo. Há uma articulação entre diagnóstico, propostas e impactos que é feita de forma estruturada e abrangente: pode-se discutir se as propostas são consistentes com o diagnóstico e se os impactos esperados são plausíveis, mas é possível discuti-lo porque essa articulação é apresentada e sujeita a debate de forma detalhada.
Há também aspectos claramente positivos ao nível do enquadramento e diagnóstico. A sofisticação no entendimento das questões da inovação, da competitividade e do desenvolvimento territorial está a milhas da que é possível encontrar actualmente à mesa do Conselho de Ministros (embora, claro, não seja preciso muito para isso). E, neste plano do enquadramento e diagnóstico gerais, é a meu ver um documento claramente progressista, que denuncia explicitamente a austeridade, a precariedade, a desigualdade, a perda de progressividade do IRS, a promoção da competitividade assente nos salários baixos e a criação de quasi-monopólios privados através das privatizações. A este nível – e apesar das cedências ocasionais à novilíngua neoliberal (como os despedimentos que passam a “separações entre empresas e trabalhadores”) – sou menos crítico do que outros que antes de mim comentaram este documento (como Francisco Louçã ou João Rodrigues). Na minha opinião, e como explicarei em baixo, o problema não está tanto neste enquadramento e diagnóstico como na inconsistência entre esse mesmo enquadramento e diagnóstico e o pacote de medidas que é proposto.
E há também muitas propostas concretas que devem ser saudadas. A reintrodução do imposto sucessório, medida óbvia de mitigação da injustiça decorrente da lotaria do berço. A redução do IVA da restauração, cuja aumento pelo actual governo penalizou de forma despropositada um sector de actividade fortemente gerador de emprego, central para o turismo e em que predominam as micro-empresas. A penalização fiscal dos imóveis sem utilização. A penalização das empresas que mais despedem. O reforço do acesso e montantes do RSI, do Complemento Solidário para Idosos e do abono de família. E muitas das medidas propostas nos domínios da educação, da qualificação da administração pública, da simplificação administrativa ou da promoção do sistema cientifico e tecnológico nacional.
O Mau
Já muitos o disseram, mas deve ser dito mais uma vez. A mais funesta e perigosa proposta deste documento – realmente má por acção, que não apenas por omissão – é a proposta de redução das contribuições de empregadores e trabalhadores para a Segurança Social. É uma proposta profundamente inconsistente: reduzir receitas não é, seguramente, uma boa forma de enfrentar os problemas de sustentabilidade que o mesmo documento identifica, mesmo que venha a ser parcialmente compensada por um aumento da base de incidência decorrente de uma expansão do emprego que é do plano dos desejos mas seguramente não das certezas. É socialmente regressiva, constituindo uma forma de plafonamento (mal) encapotado. É perigosa, pois põe em causa um dos alicerces fundamentais do contrato social. E assenta num entendimento completamente errado da natureza dos problemas de procura que a economia portuguesa enfrenta, pois estes não são temporários, do foro da liquidez, mas sim estruturais, do foro da solvabilidade – algo que, no entanto, os economistas da área do PS não poderiam reconhecer abertamente sem se verem obrigados a enfrentar os elefantes no meio da sala que o documento não trata mas que sobre ele pairam com uma sombra esmagadora: as dívidas pública e externa e a sangria permanente de recursos que representam para a economia portuguesa.
O Ausente
E assim chegamos àquilo que, a meu ver, é realmente o aspecto mais preocupante deste documento: aquilo que dele está ausente. Não estou a falar de medidas que, por um ou outro motivo, gostaríamos eventualmente que o PS perfilhasse sem que seja esse o caso; estou a falar, isso sim, de medidas que permitissem enfrentar de forma consistente os problemas que o próprio documento identifica.
O documento denuncia a redução da progressividade do IRS como um problema, mas o que propõe como resposta a este problema é, tão somente, a eliminação da sobretaxa. Nem sequer, por exemplo, a reposição dos escalões que o actual governo eliminou, reduzindo a progressividade de forma desprezível. Ou o englobamento das mais-valias bolsistas no cálculo da taxa de imposto, que seria da mais elementar justiça fiscal mas continua à espera de um governo que a ponha em prática.
Identifica a penalização a que são sujeitos os falsos recibos verdes, mas pouco ou nada propõe para os erradicar ou para desagravar as imposições contributivas absurdas a que estes trabalhadores são sujeitos.
Critica as privatizações que deram origem a quasi-monopólios privados, mas em momento algum admite reverter as privatizações que possam ter prejudicado o interesse nacional – apenas se promete vagamente reavaliar as privatizações adicionais futuras.
Denuncia a promoção da competitividade assente nos baixos salários, mas em nenhum lado encontramos vestígios de medidas de valorização do trabalho e dos salários, nem sequer no sentido da reposição do que foi retirado pelo governo actual: nem nos feriados, nem no salário mínimo, nem na contratação colectiva, nem nos horários de trabalho. Pelo contrário: a aposta, tal como ressalta do cenário macroeconómico, é na manutenção dos salários baixos com o objectivo de permitir o aumento do emprego. As propostas socialistas para corrigir o desequilíbrio sem precedentes na repartição funcional do rendimento que o actual governo introduziu consistem, basicamente, em deixar tudo como está.
Defende uma maior segurança laboral e critica a precariedade, mas nem sequer propõe repor as indemnizações por despedimento nos níveis em vigor antes da actual legislatiura.
Critica a austeridade e os sacrifícios pro-cíclicos, mas propõe-se alcançar saldos primários entre 1,8% e os 3,2% do PIB entre 2016 e 2019. Claro está, não poderia deixar de fazê-lo sem pôr em causa o adesão incondicional aos dogmas da intocabilidade da dívida e do Tratado Orçamental. Esses são sacrossantos, mesmo que a conciliação de tais dogmas com a exequibilidade do cenário macroeconómico final que é proposto exija uma combinação de desenvolvimentos macroeconómicos que nunca foi alcançado na história da economia portuguesa, a par de uma fé pouco fundamentada na capacidade dos fundos europeus gerarem, por si só, a inversão da dinâmica do investimento privado. A este respeito, vale aliás a pena assinalar que é errada a ideia que neste documento os socialistas se proponham recuperar a economia pelo lado da procura, por contraste com as propostas do lado da oferta do PSD/CDS: na Agenda para a Década, a putativa recuperação do investimento e do produto advém maioritariamente – no plano da fé, pelo menos – da alteração das condições do lado da oferta, não da procura.
E depois há as outras ausências gritantes: a ausência de propostas para a regulação da banca. A dívida pública e a sangria que os juros representam. Uma das maiores dívidas externas do mundo. Ou a dependência dos cenários – inicial e final – face a uma baixa das taxas de juro que mais cedo ou mais tarde terá um fim.
Poder-se-á dizer que não é justo criticar este documento pelo que lá não está, visto que algumas omissões poderão vir a ser colmatadas. Se assim for, tanto melhor – mas pelo menos para já, é o próprio documento que convida a que o façamos quando afirma que deve ser avaliado e julgado pelo conjunto e não pelas medidas individualmente consideradas.
O polícia bom do neoliberalismo
O grande problema do pacote de medidas proposto pelo PS não é que o diagnóstico, em termos gerais, esteja fundamentalmente errado, nem que as medidas propostas, individualmente consideradas, sejam funestas como quase invariavelmente o têm sido na actual legislatura. O grande problema é que as medidas propostas são profundamente insuficientes para enfrentar, com um mínimo de eficácia, os problemas que o próprio documento identifica – quer ao nível da justiça social, quer ao nível da dinâmica macroeconómica.
Qual “polícia bom” do neoliberalismo português, o PS propõe-se repor ou restaurar uma parte relativamente menor do muito que foi destruído ou transformado perniciosamente pela direita. E isso, claramente, é muito pouco.
Artigo publicado no jornal Expresso de 29 de Abril de 2015.