As pensões no colete-de-forças neoliberal da União Europeia

Artigo de Maria Clara Murteira


As reformas das pensões na agenda política da União Europeia

A questão das pensões entrou na agenda política da União Europeia em meados da década de noventa, quando se iniciou o debate europeu sobre a organização dos esquemas privados de protecção complementar. Com o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e a instituição da União Económica e Monetária, o debate sobre as pensões tornou-se central. As metas estabelecidas para o défice e a dívida públicos trouxeram para o primeiro plano a discussão sobre a sustentabilidade das finanças públicas e a necessidade de promover reformas nos sistemas públicos de pensões. Os sistemas públicos de pensões passam a estar sujeitos a uma atenta vigilância por parte das autoridades europeias encarregadas dos assuntos económicos e financeiros.

O processo de integração económica e monetária tem exercido uma influência decisiva no curso das políticas sociais nacionais, porque estas últimas têm sido impelidas a acomodar-se às exigências impostas pelo Tratado de Maastricht e, mais tarde, pela adopção do euro. Phillippe Pochet é um dos muitos autores que o reconhece: “Sem risco podemos afirmar que a união económica e monetária foi um catalisador das reformas nacionais”(1). Por um lado, as pressões para proceder a reformas dos sistemas públicos de pensões vieram da esfera política, pois os Estados membros foram directamente pressionados a proceder a um esforço continuado de consolidação orçamental que deveria incluir a estabilização ou redução da despesa em pensões. Por outro lado, o modelo instituído para a condução da política macroeconómica originou pressões indirectas para a reforma das pensões, ao produzir efeitos adversos no emprego e no crescimento económico, comprometendo dessa forma as receitas dos sistemas de segurança social.

De facto, a realização da união económica e monetária reduziu significativamente os instrumentos de política ao dispor dos governos. Por um lado, as políticas monetária e cambial deixaram de ser controláveis pelos governos. Por outro lado, as regras do PEC, juntamente com a dependência dos Estados em relação aos mercados de capitais para o seu financiamento, inviabilizaram a utilização do défice como instrumento de política económica. Uma política orçamental restritiva associada a uma política monetária centrada no controlo da inflação e a um euro forte (conveniente para evitar a inflação importada), num contexto de total exposição das economias ao comércio internacional, contribuíram para deprimir o crescimento e o emprego, sobretudo nas economias da periferia da Europa com estruturas produtivas mais frágeis.

Apesar da retórica dominante nos meios de comunicação social, aceite por grande parte dos actores políticos e bem enraizada na opinião pública, que atribui ao envelhecimento demográfico a responsabilidade pelos desequilíbrios financeiros dos sistemas públicos de segurança social, a realidade é que a tendência para a elevação do encargo das pensões em muitos países europeus é fruto essencialmente do disfuncionamento das economias. É o próprio modelo de condução da política económica na União Europeia que, ao provocar o avolumar do desemprego e um crescimento débil, origina a desestabilização financeira dos sistemas de segurança social. Neste sentido, já em 2004, Jean-Paul Fitoussi afirmava ser difícil entender a defesa activa do Pacto de Estabilidade e Crescimento, por tantos, tendo em conta a sua duvidosa fundamentação teórica e empírica. Segundo a sua interpretação:
“De facto, induz a suspeitar que o Pacto não é defendido por si, mas sim como um meio de forçar uma agenda “oculta” mais alargada. Restringir as finanças públicas, por vezes contra toda a lógica, pode de facto servir o propósito de reduzir o papel do Estado na economia. Deprimir o crescimento e o emprego torna o encargo dos sistemas de segurança social mais pesado, e assim faz parecer a reforma ainda mais inevitável e fácil de engolir pelo eleitorado” (2).

Entretanto, os critérios de “disciplina orçamental” que Fitoussi criticara radicalizaram‑se. O Tratado Orçamental tornou-se hard law, prevendo mecanismos automáticos de correcção dos défices excessivos e sanções para os países incumpridores.

O encargo das pensões e as variáveis que o determinam

Importa ter presente que o encargo das pensões não depende apenas da evolução da despesa em pensões, pois mede-se pelo valor da despesa em pensões em percentagem do PIB (Despesa em Pensões/PIB). Assim sendo, o crescimento económico é decisivo. Diferentes decomposições do encargo das pensões permitem analisar a influência das variáveis demográficas e económicas que afectam o indicador.

Sejam: R, a população idosa (com mais de 65 anos), admitindo-se, para simplificar, que equivale ao número de reformados; A, a população em idade activa (entre os 15 e os 64 anos); (Despesa em pensões/R), a pensão média; (R/A), o ratio de dependência dos idosos (população idosa/população em idade activa); (PIB/A), a relação entre o PIB e a população em idade activa que, impropriamente, se pode designar “produtividade média dos activos”.

  • Uma primeira decomposição permite examinar o efeito do aumento da dimensão da população idosa no encargo das pensões:
    (Despesa em pensões/PIB) = R x (Despesa em Pensões/R) / (PIB)

A despesa em pensões é equivalente ao produto do número de reformados pela pensão média. A elevação do número de reformados tende a elevar a despesa em pensões. No entanto, isso não significa que seja necessário reduzir a pensão média na economia para manter constante o encargo das pensões. O crescimento do PIB (em denominador) pode ser suficiente para compensar o aumento da despesa em pensões (em numerador).

  • Uma segunda decomposição revela a influência da variação do ratio de dependência dos idosos (população idosa/população em idade activa) no indicador em análise:
    (Despesa em Pensões/PIB) = ((R/A) x (Despesa em Pensões/R)) / (PIB/A)

A elevação do ratio de dependência dos idosos também não eleva necessariamente o encargo das pensões, pois pode ser compensado pela elevação da “produtividade média dos activos” (em denominador).

  • Uma terceira decomposição do encargo das pensões desagrega o termo que se encontra em denominador na expressão anterior (3). A desagregação do quociente entre o PIB e o número de pessoas em idade activa, impropriamente designado “produtividade média dos activos”, é indispensável porque a variável em denominador, A, é um indicador demográfico (população em idade activa). Ora, nem todas as pessoas em idade activa fazem parte da população activa e nem toda a população activa está empregada.
    (Despesa em Pensões/PIB) = ((R/A) x (Despesa em Pensões/R)) / ((Pop.Activa/A) x (Emprego/Pop. Activa) x (PIB/Emprego))

Em denominador encontram-se agora três termos:

  • (Pop. Activa/A) – o peso da população activa no conjunto da população em idade activa;
  • (Emprego/Pop. Activa) – a taxa de emprego, ou seja, a parte da população activa que se encontra empregada;
  • (PIB/Emprego) – a produtividade média do trabalho, traduzida pela relação entre o PIB e o emprego.

Conclui-se que só é possível analisar a evolução do encargo das pensões numa sociedade a envelhecer considerando, em simultâneo, o comportamento das variáveis demográficas e das variáveis económicas (o PIB, o emprego, a produtividade do trabalho) e que os efeitos do envelhecimento demográfico podem ser compensados por um bom desempenho da economia. Em consequência, a necessidade de reformar os sistemas públicos de pensões não é a consequência inevitável do envelhecimento demográfico. Essa ideia não passa de um mito, apesar de estar muito divulgada na opinião pública, de ser reproduzida reiteradamente pelos actores políticos e nos meios de comunicação social. Na realidade, o ritmo de crescimento económico é decisivo e pode ser suficiente para evitar a elevação do encargo das pensões. Portanto, é possível preservar o nível de vida relativo dos pensionistas numa sociedade a envelhecer, desde que seja seguida uma política económica centrada no pleno emprego e no crescimento. Como Massimo Pivetti observou, o recuo dos esquemas de repartição tradicionais de prestações definidas “não é a consequência inevitável do envelhecimento populacional; mas a consequência de os actores políticos terem desistido de elevados níveis de emprego e crescimento como objectivos políticos primários” (4).

O comportamento das variáveis que influenciam o encargo das pensões

Tem interesse verificar como evoluíram, num período longo, em Portugal, as variáveis demográficas e económicas que integram as duas primeiras decomposições do encargo das pensões. Na tabela seguinte estão inscritos os valores das taxas de crescimento médio anual das variáveis referidas, em diferentes subperíodos.

Tabela 1- PIB a preços de 2011, R, (PIB a preços de 2011/A) e (R/A) – crescimento médio anual
PeríodoPrimeira decomposição Segunda decomposição
PIB a preços de 2011R (PIB a preços de 2011/A) (R/A)
1960-1970 5.78% 1.63% 6.29% 2.12%
1970-1980 4.91% 2.87% 3.42% 1.41%
1980-1990 3.63% 1.94% 2.88% 1.20%
1990-2000 2.99% 2.21% 2.49% 1.70%
2000-2010 0.74% 1.61% 0.63% 1.50%
2010-2013 -2.17% 1.64% -1.49% 2.34%

Fonte: Pordata.

A análise comparada do ritmo de crescimento das variáveis em numerador e em denominador, em qualquer uma das duas primeiras decomposições, permite identificar uma alteração de tendência em 2000. Entre 1960 e 2000, tendo como referência a primeira decomposição, conclui-se que o crescimento do PIB real ultrapassou significativamente o crescimento da população idosa, em todos os subperíodos. Em alternativa, se se considerar a segunda decomposição, verifica-se que o crescimento da “produtividade média dos activos” ultrapassou largamente o crescimento do ratio de dependência dos idosos, em todos os subperíodos.
. Ou seja, no período longo compreendido entre 1960 e 2000, em todos os subperíodos considerados, o ritmo de crescimento económico compensou sempre largamente o efeito do envelhecimento demográfico.

Todavia, essa tendência foi revertida a partir de 2000, deixando o ritmo de crescimento económico de ser suficiente para compensar o efeito do envelhecimento demográfico. O problema agravou-se, de 2010 para 2013, período em que se regista um crescimento médio anual negativo do PIB real, o que significa que a evolução da economia passou a contribuir, por si só, para elevar o encargo das pensões.

O envelhecimento demográfico tem vindo a ocorrer de forma lenta e gradual na sociedade portuguesa. O que se alterou, a partir de 2000, foi o ritmo do crescimento económico. Porém, os debates sobre a sustentabilidade futura dos sistemas de pensões, em geral, omitem a referência à responsabilidade do modelo de condução da política económica na zona euro pelo agravamento das dificuldades de financiamento do sistema de segurança social (os seus efeitos adversos no emprego e no crescimento) passando a constituir, desse modo, fonte de pressão indirecta para a reforma do sistema. Após a assinatura do Memorando de Entendimento com a troika, a recessão induzida pelas políticas de austeridade causou um rápido avolumar do desemprego, contribuindo para deteriorar a situação orçamental da segurança social e agravar a situação demográfica (a partir de 2010, os saldos natural e migratório passaram a ser negativos). Em paralelo, a condicionalidade associada ao plano de assistência financeira passou a ser um factor de pressão política directa para a redução da despesa social.

O debate a que se assiste hoje sobre as reformas das pensões está completamente balizado: o único objecto de discussão são as diferentes estratégias que podem ser adoptadas para cortar pensões. As reformas são equacionadas sem questionar o modelo de condução da política económica da zona euro. Todavia, aceitar este enquadramento do debate (discutir as reformas dos sistemas de pensões sem discutir o modelo de condução da política económica que mina a sua sustentabilidade financeira), significa aceitar, sem explicitar, que o disfuncionamento da economia continue a exercer uma pressão permanente para o desmantelamento do sistema público de pensões.

O projecto sombrio da União Europeia para as Pensões

A estratégia europeia para as pensões concentra-se em promover a congruência das políticas de pensões com o modelo adoptado para a condução da política económica. Num contexto em que se restringiu significativamente o conjunto dos instrumentos de política económica ao dispor dos governos nacionais, a sua capacidade de influenciar o emprego e o crescimento económico ficou drasticamente reduzida. Segundo a corrente de pensamento dominante nas instituições europeias, o emprego e o crescimento devem resultar de políticas do lado da oferta, como as reformas estruturais do mercado trabalho e dos mecanismos de protecção social. O mercado de trabalho deveria ser flexibilizado para reduzir o desemprego (desregulamentar e reduzir os custos do trabalho, salariais e contribuições sociais). No que se refere aos sistemas públicos de pensões, a ideia dominante pode ser assim resumida: por um lado, são acusados de contribuir para aumentar a dimensão do Estado, originando ineficiência e elevados níveis de défices públicos e dívida; por outro lado, são analisados em função dos seus efeitos no funcionamento do mercado de trabalho (os incentivos que incorporam e os custos do trabalho). Note-se que, de acordo com esta visão, as contribuições sociais – a principal fonte de financiamento do sistema – representam um obstáculo ao emprego e ao crescimento.

Apesar de as políticas sociais nacionais permanecerem na esfera de competência dos Estados-membros, a influência da União Europeia exerce-se de forma menos visível do que noutros domínios mas tem sido significativa. A influência tem sido exercida através dos novos métodos que se difundiram no domínio da política social, como o “método aberto de coordenação” (MAC) que visa influenciar as reformas nacionais estabelecendo orientações gerais não vinculativas para a política (soft law). Na área das pensões, o MAC contribuiu para o estabelecimento de princípios e objectivos comuns, bem como para a definição de um conjunto de indicadores para avaliar a situação dos países e controlar os progressos realizados no sentido dos objectivos comuns. Não impõe a mesma orientação a todos os Estados membros, mas contribui para influenciar as decisões nacionais relativas às pensões ao criar uma “visão política comum” (5).

Ao contribuir para formar uma “visão política comum”, o MAC tem sido um meio de promover a congruência da política de pensões com a orientação da política económica. O relatório da Comissão Europeia intitulado Adequate and Sustainable Pensions (6) traduz de forma expressiva essa visão. Aí se explicita que a política de pensões se deve subordinar aos imperativos de consolidação orçamental e de promoção do emprego e da competitividade das economias. Por um lado, defende-se a contenção da despesa em pensões, para evitar a insustentabilidade financeira dos sistemas públicos, e recomenda-se um papel crescente para a provisão privada. Por outro lado, preconiza-se que as políticas de pensões se adaptem a políticas económicas orientadas para a oferta, devendo ser “favoráveis ao emprego”, definindo adequados incentivos à oferta e à procura de trabalho: as contribuições sociais, porque são uma componente do custo do trabalho, não devem crescer para evitar a redução da procura de trabalho; as pensões, por seu turno, não devem ser demasiado generosas para não desincentivarem a oferta de trabalho dos idosos (7). Além disso, a estratégia europeia atribui ênfase à permanência dos idosos no mercado de trabalho, recomendando diversas medidas de “activação”: o ajustamento da idade da reforma ao aumento da esperança de vida, os incentivos à manutenção no mercado de trabalho e os desincentivos à antecipação da reforma. No que se refere à organização dos esquemas públicos de repartição, a tónica é colocada na garantia de níveis mínimos e recomenda-se o reforço do carácter contributivo das pensões (um laço mais estreito entre contribuições e prestações).

Esta visão comum tem orientado os programas de reforma desenvolvidos em muitos Estados membros, desde 2003 (8). A reforma de 2007, em Portugal, inspirou‑se na “visão política comum” e nas recomendações da estratégia europeia. Com a introdução de medidas graduais, encobriram-se alterações profundamente transformadoras: as prestações futuras reduziram-se de forma expressiva, abandonou-se o objectivo de garantir a manutenção do rendimento; o sistema passou a organizar-se segundo novos princípios (9).

As recomendações europeias recentes insistem na redução da provisão pública e do reforço da privada. O Livro Verde sobre as pensões (10), publicado em 2010, desconsiderando os efeitos devastadores da crise financeira sobre o valor dos activos dos fundos de pensões, dedica o essencial das suas propostas aos planos de capitalização privada e ao modo como se devem organizar para melhorar o seu funcionamento futuro. O Livro Branco (11), publicado dois anos mais tarde, apesar de reconhecer que as reformas recentes dos regimes públicos de pensões causaram a redução das taxas de substituição, insiste na necessidade de prosseguir a política de cortes na despesa para promover a sustentabilidade financeira. De forma aparentemente contraditória, o discurso oficial continua a afirmar o objectivo da adequação das pensões. De facto, a realização deste objectivo é relegada para a esfera dos mercados. As alternativas recomendadas para compensar a perda de rendimento causada pelos cortes nas pensões passam, ou pela permanência dos idosos no mercado de trabalho (o aumento da idade da reforma), ou pelo recurso aos mercados financeiros (adesão a esquemas de poupança-reforma complementar privada cujo desenvolvimento deveria ser apoiado). Em relação às alternativas que podem ser utilizadas para manter os níveis de vida, para além de “pensões profissionais e individuais, seguros de vida e outras formas de acumulação de activos”, o documento menciona: “existem instrumentos (por exemplo contra‑hipotecas) que permitem às pessoas converter activos (em geral, a sua casa) em rendimentos de reforma adicionais” (12). O projecto de desmantelamento dos sistemas públicos de pensões não podia ser mais explícito!

Não é possível “salvar a segurança social” no colete-de-forças imposto pelas políticas neoliberais vigentes na União Europeia. Neste quadro, o desmantelamento dos sistemas públicos de pensões será inevitável, pois estes estão a ser pressionados por vários lados: por políticas macroeconómicas que desistiram dos objectivos do pleno emprego e do crescimento, aquelas que poderiam contribuir para aumentar as receitas do sistema e reduzir o encargo das pensões; pela visão da eficiência no mercado de trabalho que preconiza contribuições baixas, para não elevar os custos do trabalho, e pensões pouco generosas, para não desincentivar a oferta de trabalho; por uma agenda política favorável ao comércio livre e à perfeita mobilidade de capitais, exigindo que os sistemas de pensões se coloquem ao serviço da competitividade externa das economias; por uma ideologia que pretende reduzir a provisão pública ao mínimo para alargar a esfera dos mercados.

Um debate já delimitado

No quadro das políticas neoliberais vigentes na União Europeia, o debate sobre as reformas das pensões já está delimitado: discutem-se tão-somente as vias de reduzir a provisão pública.

A estratégia de substituição dos esquemas públicos de pensões por esquemas privados de contas individuais financiados por capitalização – que esteve no centro da anterior campanha do Banco Mundial a favor da privatização – não está hoje em causa. A transição para esquemas privados de capitalização origina elevados encargos para os orçamentos públicos, exigindo um aumento substancial da dívida pública a curto prazo. Como não é possível sujeitar os trabalhadores a um “duplo pagamento” – contribuir para financiar as pensões dos actuais reformados e contribuir para acumular activos nas suas contas individuais – nos processos de transição, os Estados assumem o pagamento das pensões correntes, para que os trabalhadores passem a contribuir para acumular activos nas suas contas individuais. Num tempo em que os orçamentos públicos se encontram sob grande pressão, a transição não é viável.

A redução da provisão pública tende a ocorrer através de duas estratégias principais: as reformas paramétricas ou a transição para um esquema de contas virtuais de contribuições definidas. Qualquer delas favorece o desenvolvimento da provisão privada. A redução da provisão pública associa-se, geralmente, à criação de esquemas complementares privados de capitalização. A imposição de cortes nas pensões motiva também a procura espontânea de fontes adicionais de rendimento na reforma (como a poupança individual ou os esquemas de pensões de adesão voluntária), a qual é muitas vezes favorecida através de benefícios fiscais.

A estratégia das “reformas paramétricas” concretiza a redução das pensões de diversas formas: alterando os parâmetros da fórmula de cálculo, os métodos de indexação, as condições de elegibilidade, etc.

A estratégia da conversão do esquema público de repartição num modelo de contas individuais virtuais foi concebida na Suécia. É considerada por muitos uma terceira via (13), entre a estratégia das reformas paramétricas e a transição para os esquemas privados de capitalização. Este modelo mantém o financiamento por repartição, evitando os custos de transição, mas estrutura-se à imagem dos esquemas de capitalização de contribuições definidas. Como o modelo é de contribuições definidas, as pensões desligam-se dos salários e o termo de referência para o cálculo da pensão passa a ser a soma das contribuições passadas. O valor da pensão não é conhecido nem garantido a priori: depende do valor das contribuições passadas, da longevidade esperada no momento da passagem reforma e da “taxa de rendimento virtual” das contribuições fixada pelo governo. A redução do valor das pensões em relação aos salários dos últimos anos tende a ser drástica. O modelo sueco inclui ainda um mecanismo de equilíbrio automático que reduz as pensões já em pagamento e os rendimentos das contas individuais, se a evolução demográfica ou a conjuntura económica forem desfavoráveis. O equilíbrio financeiro é garantido automaticamente; no reverso da medalha, encontra-se a insegurança de rendimento. Um estudo recente do Departamento de Protecção Social da OIT refere que a pobreza relativa dos reformados na Suécia, entre 2005 e 2012, aumentou de 10 para 18%, em resultado do mecanismo de equilíbrio automático (14). Segundo Karl-Gustav Scherman, Presidente Honorário da International Social Security Association, são previsíveis reduções drásticas das taxas de substituição na Suécia, em resultado do modo de funcionamento do modelo. O autor questiona se este sistema, financeiramente sustentável, pode ser politicamente sustentável no longo prazo quando se tornarem manifestos os seus efeitos (15).

Os Processos Políticos das Reformas das Pensões

As reformas das pensões têm-se caracterizado por uma imposição sistemática de políticas que não são validadas pelos eleitores. Os processos políticos das reformas tendem a violar as normas de transparência e da responsabilização. Esta questão está bem identificada na literatura de ciência política, desde que Paul Pierson desenvolveu uma tese inovadora, argumentando que os processos políticos que caracterizam o recuo do Estado de Bem-Estar seguem regras diferentes das que caracterizam a expansão (16). Ao contrário do que acontece na fase de expansão, em que os actores políticos podem reclamar créditos pelas medidas que introduzem (credit claiming), o recuo do Estado de Bem-estar é um exercício de evitamento de culpa (blame avoidance), porque as reformas regressivas não reúnem o apoio popular. Pierson salientou que, para introduzir reformas impopulares, os governos que executam os cortes tendem a seguir métodos de ofuscação e estratégias de “dividir para reinar”.

Na realidade, nos processos de reformas das pensões, os meios de confundir e dividir, a que Pierson se referiu, têm-se generalizado. A finalidade é enganar ou manipular a opinião pública para reduzir a oposição às reformas. Por um lado, os métodos de ofuscação fazem parte das estratégias de evitamento de culpa; visam desresponsabilizar os actores políticos que executam os cortes. Os métodos de ofuscação usados com maior frequência nas reformas das pensões são dois: o gradualismo, que diminui o impacto dos cortes disseminando-os no tempo, e os mecanismos de equilíbrio automático, que reduzem os níveis das pensões sem intervenção dos governos e evitando o debate político (os factores de sustentabilidade, que fazem depender o valor da pensão da evolução demográfica ou económica, os esquemas de contribuições definidas, que realizam o ajustamento do lado das pensões, o mecanismo de ajustamento automático do modelo sueco). Por outro lado, a estratégia de “dividir para reinar” passa por persuadir alguns para impor custos a outros. Nas reformas das pensões tem assumido sobretudo duas facetas: a compensação, mediante acordos negociados em troca de benefícios para os trabalhadores no activo mas que penalizam os reformados, e a aplicação desfasada dos cortes, que afecta a gerações futuras sem alterar a situação da geração presente.

No entanto, o recuo do Estado de Bem-estar nem sempre é um exercício de evitamento de culpa (17). A justificação atribuída às reformas regressivas permite, por vezes, reclamar créditos políticos (credit claiming). Isto acontece quando os cortes se justificam em nome de objectivos maiores: alegando “reformar para salvar o sistema”, para garantir a sustentabilidade financeira, para gerar emprego, etc. ou alegando “reformar para realizar aspirações de justiça social”, para reduzir os privilégios de uns, concentrar recursos nos mais desfavorecidos, etc. As reformas regressivas são, por vezes, viabilizadas por acordos políticos alargados entre partidos do governo e da oposição. O objectivo é ganhar cobertura política para legitimar as reformas; dessa forma, a oposição é silenciada.

Em síntese, os processos políticos das reformas das pensões tendem a violar a regra da transparência. Esses processos têm conduzido à imposição de políticas que, conhecidas as suas reais consequências, quando submetidas a escrutínio eleitoral, seriam certamente rejeitadas. Sem discussões públicas informadas e debates políticos abertos, não é possível mobilizar esforços no sentido da defesa do sistema público de pensões. A organização de um sistema que assegura direitos, dignidade e segurança de rendimento na reforma é demasiado importante para continuar a ser discutida e decidida em espaços fechados, por grupos de políticos e técnicos que não explicitam a sua agenda política.


Notas:

1          Phillippe Pochet, “Influence de l’Intégration Européenne sur les Reformes des Politiques Sociales dans les États Bismarckiens”, Revue Belge de Sécurité Sociale, 2011, 3, 511-541.

2         Jean-Paul Fitoussi, “Reform of the Stability and Growth Pact”, European Parliament, Briefing paper for the Committee for Economic and Monetary Affairs, nº 2, Abril 2004. Disponível em:   <https://halshs.archives-ouvertes.fr/hal-00972683/document>. Acesso em 6 de Maio de 2015.

3         Sobre esta decomposição, ver Massimo Pivetti, “The ‘principle of scarcity’, pension policy and growth”, Review of Political Economy, 2006, 18, 379-390.

4         Massimo Pivetti, “The ‘principle of scarcity’, pension policy and growth”, Review of Political Economy, 2006, 18, p. 387.

5         Ver Bruno Palier, “The Europeanisation of Welfare Reforms” Inequality Summer Institute, Harvard: Kennedy School of Government, 2006, p.8.

6        European Commission, Adequate and sustainable pensions. Synthesis report 2006. Brussels, European Commission, 2006.

7         Idem, ibidem, p.18.

8         European Commission, Joint Report from the European Commission and the Council on Adequate and Sustainable Pensions, Brussels, European Commission, 2003.

9         Este tema foi desenvolvido em Maria Clara Murteira, “La réforme des retraites au Portugal en 2007 : un changement structurel”, Revue française des affaires sociales, 2013, 3, 127-147.

10         Comissão Europeia, Livro Verde. Regimes Europeus de pensões adequados, sustentáveis e seguros, COM (2010) 365 final, Bruxelas, Comissão Europeia, 2010.

11         Comissão Europeia, Livro Branco. Uma agenda para pensões adequadas, seguras e sustentáveis, COM (2012) 55 final, Bruxelas, Comissão Europeia, 2012.

12         Idem, ibidem, p.6.

13         Sobre esta matéria, ver World Bank, “Notional Accounts. Notional Defined Contribution Plans as a pension reform strategy”, World Bank Reform Primer, Washington D.C., 2001.

14         International Labour Office, “Social protection for older persons: Key policy trends and statistics”, Social Protection Policy Papers, International Labour Office, Social Protection Department, Geneva, ILO, 2014, p. 24.

15         Karl-Gustav Scherman, “The Swedish public pension under financial stress”, Global Social Policy, 2012, 12, p.339.

16         Paul Pierson, Dismantling the welfare state? Reagan, Thatcher, and the Politics of Retrenchment, Cambridge, Cambridge University Press, 1994.

17         Sobre esta matéria, ver Jonah D. Levy, “Welfare Retrenchment”, in Francis G. Castles, Stephan Leibfried, Jane Lewis, Herbert Obinger, and Christopher Pierson (Ed.s), The Oxford Handbook of the Welfare State, 2010, p. 552-565.