Propostas sensatas para uma Europa pouco sensata

Artigo de Alexandre Abreu.

Comentário aos artigos de Viriato Soromenho-Marques e Ricardo Cabral


Há dois tipos de atitudes lúcidas possíveis em relação às disfuncionalidades da União Económica e Monetária. A primeira consiste em identificar as transformações necessárias à viabilização da UEM e apelar a que estas, ainda que reconhecidas como imensas, sejam atempadamente realizadas, de alguma forma esperando que a racionalidade colectiva prevaleça. A segunda consiste em identificar as transformações necessárias à viabilização da UEM e, reconhecendo-as como imensas, concluir pela impossibilidade da sua realização, independentemente da maior ou menor racionalidade do desenlace. Neste conjunto de seis ensaios para a Fundação Heinrich Böll, Ricardo Cabral e Viriato Soromenho Marques (RC e VSM), a quem não faltam lucidez e um conhecimento detalhado das disfuncionalidades da UEM, adoptam a primeira destas duas atitudes.

Nestes textos, os autores demonstram uma vez mais, mas com especial clareza, a inviabilidade fundamental de uma união monetária constituída por economias com níveis de produtividade e padrões de especialização muito distintos à qual falta tanto o respaldo político como, mais especificamente, a correspondente união orçamental (transferências compensatórias). Explicam também claramente o carácter insuficiente ou mesmo contra-producente das principais reformas da zona euro que têm estado em cima da mesa nos últimos meses, do aprofundamento da União Bancária à transformação do Mecanismo de Estabilidade Europeu num Fundo Monetário Europeu incumbido de zelar pela aplicação mais rigorosa da ortodoxia. E identificam ainda um amplo conjunto de factores, principalmente políticos, que, no curto prazo, justificam uma moderação adicional das expectativas.

Apesar de tudo isto, não deixam de considerar possível que a racionalidade impere, no sentido de que os passos necessários sejam enfim tomados para que a zona euro, e eventualmente o projecto europeu de forma mais ampla, sejam salvos de uma derrocada catastrófica que implique um colapso político, económico e social generalizado: no curto prazo, importa não persistir nos erros ou, pior, regredir relativamente aos escassos avanços realizados (como sucederá no caso de um eventual regresso do BCE à ortodoxia ordoliberal); no médio prazo, há que introduzir os elementos em falta para a viabilização da UEM, à cabeça dos quais está um orçamento federal consentâneo com a natureza federal do projecto europeu. A análise das insuficiências é lúcida e pedagógica; a resposta e o caminho apontados são mais voluntaristas e mais federalistas do que me parece ser avisado.

No último destes seis textos, VSM e RC apresentam a versão mais desenvolvida do mecanismo de transferências orçamentais que propõem. Esta ‘modesta proposta’ (que pisca o olho a Varoufakis, Holland e Galbraith, os quais já o haviam feito a Jonathan Swift) é engenhosa e sensata: vinculando as contribuições dos estados para um futuro orçamento federal mais significativo à magnitude do superavite externo de cada um, simultaneamente expõe-se, desincentiva-se e compensa-se a assimetria fundamental entre devedores e credores que está no âmago dos desequilíbrios da zona euro.

Estamos aqui em plena tradição keynesiana – aliás tal como explicitamente reconhecido pelos autores, que num dos textos recordam o confronto em Bretton Woods entre as delegações britânica (liderada por Keynes) e norte-americana (Dexter White) e as consequências que advieram para o sistema financeiro internacional de ter por fim prevalecido a visão defensora dos credores. Estamos, também, numa nova versão do “euro bom” (“the good euro”), a expressão utilizada por Lapavitsas et al (2012)1 para designar as reformas necessárias à viabilização da UEM, incluindo a alteração do mandato do BCE, a atenuação das restrições à política orçamental dos estados-membros, a introdução de transferências orçamentais significativas e a adopção de mecanismos como um salário mínimo ou apoios sociais à escala europeia.

O problema, claro está, é político – como Keynes, apesar da qualidade técnica e maior sensatez da sua proposta, também verificou em Bretton Woods. A questão está no facto destas reformas, a serem suficientemente profundas para alterarem fundamentalmente o carácter da UEM, irem, por esse mesmo motivo, “contra relações económicas e sociais que estão no coração da moeda única” (para citar novamente Lapavitsas e colegas, 2012). A análise da viabilidade de uma eventual transformação benigna da UEM tem de partir da consideração que esta articula e reforça dois pólos de interesses fundamentalmente opostos – credores e devedores – aos quais estão associadas lentes ideológicas particularmente potentes: é de tal forma inconcebível para a visão credora ordoliberal que os desequilíbrios tenham uma natureza sistémica que chegamos ao absurdo de ver prosperar visões anti-UEM nos países credores que são movidas, não por solidariedade internacionalista, mas por uma visão particular e enviesada do interesse próprio. Não basta por isso que os credores e os seus representantes nas instâncias decisórias europeias sejam persuadidos do risco de derrocada da UEM e levados a trocar a prossecução estreita dos seus interesses por um “interesse próprio iluminado” de mais longo prazo; trata-se, em última instância, de levá-los a mudar toda a sua visão do mundo.

Dito isto, não é a mesma coisa ter esta discussão em 2010 e em 2019. Sabemos hoje que algumas coisas na zona euro que pareciam impossíveis, nomeadamente em termos legais, tornam-se subitamente possíveis se a necessidade política apertar suficientemente – como sucedeu com a intervenção do BCE de 2012 em diante. Mais do que encarar a arquitectura da UEM como rígida e inamovível, parece-me hoje útil pensar nela como obedecendo ao princípio da mínima cedência indispensável no momento estritamente inadiável. Claramente, este não é um contexto político favorável à mobilização em torno de um projecto de ruptura, impossibilitado de justificar uma decisão inevitavelmente turbulenta e incerta com a intransigência do outro lado e a consequência ausência total de alternativa. Mas também não é um contexto conducente à adopção de soluções racionais, mas voluntaristas, que permitissem ultrapassar definitivamente o problema.

Esta conjugação de factores gera um equilíbrio dinâmico instável que provavelmente persistirá, gerando descontentamento, até que nalgum momento este descontentamento emerja num paroxismo demasiado súbito ou intenso para a capacidade acomodatícia das autoridades europeias. Infelizmente, parece hoje bem mais provável do que há alguns anos que um tal paroxismo venha a ser protagonizado por actores políticos reaccionários e perigosos.