Cimeira do Euro: “um grande passo em frente”?

Artigo de Ricardo Cabral.


Volta-se de novo às questões da reforma da zona euro a propósito dos resultados da Cimeira do Euro de sexta-feira da última semana. São quase sempre áridos e muito pouco inteligíveis os textos dos acordos europeus, embora inevitavelmente acompanhados pelas palavras “optimistas” de responsáveis políticos que tendem a salientar os aspectos positivos e a ignorar os negativos. Contudo, duas décadas de estagnação económica e, em parte deste período, de recessão, de emigração em massa e de queda dos salários reais e nominais obrigam a um olhar mais realista e crítico sobre o teor do acordo obtido nesta cimeira.

Não está sequer em causa que se seja a favor ou contra o projecto de maior integração europeia. O que importa é que, mesmo sendo favorável a esse desiderato, é importante estar atento aos detalhes dessas negociações em particular quando, como agora, se debatem questões com enorme impacto para a vida dos portugueses nas próximas décadas.

De que se tratava, afinal, nesta Cimeira do Euro?

Comece-se por salientar que uma parte importante das reformas implementadas nos últimos anos em resposta à crise do euro de 2010-2012, bem como do pacote de reformas “aprovado” nesta cimeira, tem como consequência – se não mesmo o objectivo – o aumento dos custos quer de uma reestruturação de dívida pública soberana quer da saída do euro por parte de um ou mais países membros.

Com efeito, essas reformas podem mesmo ser interpretadas como um trabalho metódico e incremental, por países membros credores da Zona Euro para, através de alterações às leis europeias, posteriormente transcritas para leis nacionais, restringirem as opções de política económica dos países devedores.

Esta Cimeira do Euro consistiu, essencialmente, na ratificação pelo Conselho Europeu da carta do Presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, ao “Presidente da Cimeira do Euro”, Donald Tusk, bem como na definição de um calendário para a especificação e a implementação de algumas das reformas propostas nessa carta.

O valor económico dos temas abordados na referida carta do Presidente do Eurogrupo que, refira-se, é quase um “copy-paste” da declaração Merkel-Macron em Meseberg, é muito significativo. As medidas propostas que beneficiam de maior consenso têm efeitos redistributivos profundos a médio e a longo prazo. Nomeadamente, afectam negativamente o nível e qualidade de vida de milhões de pessoas ao longo de décadas.

Nessa carta constam, entre outros, os seguintes temas com forte impacto, em particular, na economia portuguesa:

1. – A proposta de impor um limite ao crédito malparado (fala-se em 5% do crédito total) resultará em perdas muito significativas para o sistema bancário e para os contribuintes de países com elevado nível de crédito malparado, como Portugal e Itália. O crédito malparado (NPL) representa cerca de 19% do PIB português, o equivalente a 37 mil milhões de euros, ou 13,3% do volume da carteira de crédito da banca a operar no nosso país. Não existe mercado capaz de absorver tais volumes de crédito pelo que a venda desses créditos se faria a preços muito baixos e teria igualmente repercussões no tecido produtivo português. Os compradores desses créditos, provavelmente investidores e bancos não residentes, realizariam elevadas mais-valias.

2. – Sobre a União Bancária, pretende-se aparentemente eliminar o instrumento de recapitalização directa de bancos que no presente consta da directiva europeia sobre recuperação e resolução bancária. Se assim for, passariam a existir, na prática, somente dois instrumentos de política económica para responder a crises de confiança e de solvabilidade em bancos de média ou grande dimensão: ou resolução bancária (“a cenoura”) ou liquidação desordeira (“a vergasta”).

É uma reforma que incentiva corridas e ataques especulativos a bancos e que fragiliza o sistema bancário europeu. Quase se pode falar de nova “TINA” (de “There Is No Alternative”), agora, para bancos.

3. – A harmonização da lei de insolvências, proposta no âmbito da União dos Mercados de Capitais, irá impedir países membros de promoverem reestruturações de dívida privadas e/ou públicas através de alterações às leis de insolvência, ainda essencialmente nacionais, possibilidade sugerida, entre outros, por Joseph Stiglitz em artigo recente, onde analisa como poderia a Itália sair do euro. Com efeito, as leis de insolvência ainda não tinham sido objecto de substantiva harmonização europeia através de directivas europeias ou de acordos intergovernamentais, o que significa que nesta matéria ainda prevalece sobretudo o direito nacional e não o europeu.

4. – São propostos novos poderes para o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), organismo que deverá passar a acompanhar os orçamentos dos países membros, a realizar análises de sustentabilidade das dívidas públicas soberanas e a supervisionar a sua reestruturação, “facilitando” o diálogo entre governos soberanos e investidores (credores) privados. Ou seja, o MEE ganha poderes e assume funções não só de outras instituições europeias, como a Comissão Europeia e o BCE. Ainda mais preocupante: retira mais poderes aos governos e parlamentos nacionais.

5. – É ainda proposta uma nova cláusula europeia que deverá ser incluída em todos os contratos de dívida pública dos países membros (“collective action clause) que complementa e reforça uma cláusula introduzida em 2012 e em vigor desde 2013. Essa nova cláusula previsivelmente tornará ilegais e sujeitas a litígio em tribunais europeus, as reestruturações de dívida pública soberana realizadas recorrendo a alterações à lei nacional, sem o consentimento de uma maioria dos credores.

6. – Sobre a proposta, muito gravosa para os países devedores, de diferenciar o risco da dívida pública dos países membros, persistem ainda” as perspectivas mais divergentes” no seio do Eurogrupo. Se essa proposta viesse a ser aprovada, resultaria num aumento das taxas de juro da dívida pública e privada dos países devedores e numa redução das taxas de juro da dívida pública e privada dos países credores. Alteraria radicalmente os fluxos financeiros internos das economias dos países devedores. De facto, uma parte da poupança dos países devedores passaria a ter de ser canalizada para dívida de países credores, o que é um contra-senso. Poderia até levar vários países da zona euro à bancarrota.

Em suma, estes detalhes pouco perceptíveis para o público têm, no seu conjunto, impactos de algumas centenas de milhares de milhões de euros para países como Portugal. Tornam ilegais reestruturações de dívida privadas e públicas, têm efeitos redistributivos muito significativos em prejuízo essencialmente dos países devedores e oneram os países que no futuro se afoitem a sair do euro.

É, em parte, compreensível que países credores tentem precaver-se de uma saída do euro, ou de uma reestruturação de dívida soberana por parte de um país membro, com o objectivo de salvaguardar as respectivas poupanças externas acumuladas desde a introdução do euro. Mas as medidas que têm vindo a ser adoptadas pelas autoridades europeias “escravizam” os países devedores durante décadas a uma dívida que estes não conseguem pagar. E, como se sabe, as economias dos países credores beneficiaram imenso com a introdução do euro.

Algum distanciamento permite perceber que, nos bastidores, nos detalhes tecnocráticos das reformas em curso, entre sorrisos de contentamento, ocorre já um conflito fratricida entre países membros: parece que se preparam para uma eventual desintegração do euro.

Se isto é a paz, como será a guerra?

Por conseguinte, pelas razões acima, o acordo da Cimeira do Euro a que chegaram na sexta feira em Bruxelas os representantes dos países da Zona Euro, entre eles os nossos representantes, não merece aplauso… não parece ser um “grande passo em frente”!


Artigo publicado no jornal Público, 2 julho 2018.