Artigo de João Ramos de Almeida.
De cada vez o Parlamento discute alterações à legislação laboral ou que possam ferir interesses empresariais, os deputados à direita defendem invariavelmente que, antes, a comissão permanente da concertação social deve ser auscultada.
E mais: que o Parlamento deve adoptar legislativamente o que aí se julgar por bom.
O PS, por vezes, resiste a esta lógica de desparlamentarização (ou por outra, de corporativização do Parlamento), mas na prática acaba por seguir este argumento, porque – por razões diversas, nomeadamente comunitárias – não quer mexer muito na legislação laboral adoptada pela direita. E o diálogo social sempre representa… mais tempo.
Foi isso que aconteceu, também, há dias no Parlamento com os projectos de lei para mudar a legislação laboral. O Governo, depois de o PS ter chumbado com a direita as iniciativas à esquerda, anunciou que, a 23 deste mês, apresentaria um pacote de medidas laborais, que – presume-se – deverá depois baixar à concertação social.
Esta atitude revela três coisas:
A primeira, que esta lógica representa uma transferência de assuntos relevantes para o país de um Parlamento democraticamente eleito por mais de 56% do eleitorado de 9,6 milhões de eleitores, para uma instância não eleita, que representa apenas uma pequena parte desse país. Existem menos de 400 mil empresas e, dessas, as associações patronais apenas representam uns 19% das empresas nacionais, mas sobretudo grandes empresas (16% das micro-empresas, mas metade das grandes empresas). Reveja-se o Livro Verde das Relações Laborais (página 310). E, por acaso – claro está! – as forças mais à direita estão em maioria na concertação social. As confederações patronais tendem a alinhar estrategicamente com a CIP – Confederação Empresarial de Portugal, que marca o ritmo da posição patronal, e – dentre as confederação sindicais – a UGT tende a aceitar geralmente essa intervenção, mediante algumas concessões.
A segunda, que os deputados de direita até podem estar convencidos de que esse seguidismo do Parlamento é a melhor opção, porque – julgam eles – os empresários conhecem melhor os limites das empresas e, por isso, sabem o que é bom para o país. Mas ao fazê-lo estão a contribuir para uma lógica de corporativização do poder, que tem redundado numa governamentalização do diálogo social. Veja-se neste caderno do Observatório sobre Crises e Alternativas o capítulo dedicado às entorses desse diálogo.
A terceira, é que nada disto é novo. É mesmo muito velho. Releia-se Franco Nogueira, Marcello Caetano e o próprio Oliveira Salazar, para perceber como a Câmara Corporativa de então era gerida em prol do que fosse necessário. Forças hoje à direita herdam este tipo de pensamento com mais de 80 anos (!), sem se aperceber do que acabam por defender! Uma subtracção das duas funções, entregues sem luta, obedientemente, a outra câmara, a bem do que o Governo quer.
1950
Perante o avanço da oposição antifascista, António de Oliveira Salazar considera que, para que “a Constituição e o regime durem”, é necessário abrigar a ditadura de “golpes de Estado constitucionais”, através do reforço da Câmara de domínio patronal, a Câmara Corporativa: “Ora, sendo assim e paralelamente a toda a outra acção, inclusivamente a que tenda a evitar o que uma vez chamei a possibilidade de golpes de Estado constitucionais, entendo se devem rever alguns preceitos relativos à Câmara Corporativa” (Discursos e Notas Políticas, volume IV pag 381/411).
1951
Num parecer da Câmara Corporativa, cujo relator foi Marcello Caetano, essas alterações representavam “uma providência de legítima defesa constitucional e, ao mesmo tempo, um modo de impedir a apresentação de candidaturas fantasistas ou subversivas”. “Nos tempos presentes a Nação não pode ficar à mercê de golpes de Estado constitucionais“. (João Morais e Luís Violante, “Contribuição para uma Cronologia dos Factos Económicos e Sociais, Portugal 1926-1985, pag 160/65)
1952
E a Câmara Corporativa não era um “adversário”. Escrevia Marcello Caetano a Salazar, a 27/11/1952: “A Câmara está em todos os meios com o prestígio devido aos seus trabalhos e compostura. Não encontro voz discordante“. (Marcello Caetano, Minhas memórias de Salazar, pag 478/82). Caetano seria designado presidente da Câmara em Novembro de 1953.
1959
Em Junho, já no rescaldo das eleições para a presidência da República, em que o general Humberto Delgado foi o candidato da oposição, inicia-se finalmente a manobra para impedir os tais “golpes de Estado constitucionais”. A Assembleia Nacional aprova a lei 2100 que organiza um colégio eleitoral para eleição do chefe de Estado. (Franco Nogueira, Salazar – A resistência 1958/64, pag.84/90). E em finais de Agosto, é o promulgado o disposivo que impedirá os tais “golpes de Estado constitucionais“: o chefe de Estado é eleito, não por voto directo, mas indirectamente, por voto dos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corpotativa, representantes municipais de cada distrito ou províncias ultramarinas, mais os representantes dos conselhos legislativos e conselhos de província, num total de 602 membros (Salazar, Discursos e Notas Políticas, volume VI pag 55/74)
Artigo publicado no blogue Ladrões de Bicicletas