Artigo de António Carlos dos Santos.
Estado de Crise | Carlo Bordoni & Zygmunt Bauman Relógio de Água, 2016
Em boa hora a Relógio d’Água publicou na sua excelente coleção Antropos o livro Estado de Crise, uma espécie de monólogo dialógico (“um ensaio a quatro mãos”), induzido por um entrevistador imaginário ou oculto e subscrito por dois eminentes sociólogos, um italiano, outro polaco, respetivamente, Carlo Bordoni e Zygmunt Bauman (infelizmente falecido no passado dia 9), que já haviam encetado uma experiência similar em 2012 com a obra La società insicura. Conversazione con Zygmunt Bauman, editada pela Aliberti. O primeiro autor, menos conhecido entre nós, para além de jornalista e escritor tem-se ocupado sobretudo da sociologia da literatura e da arte; o segundo, depois de ter publicado um dos mais interessantes livros sobre a sociologia marxista (Fundamentos de Sociologia Marxista, Alberto Editor, 1975), tornou-se mundialmente famoso com o tema pós-moderno da liquidez (modernidade líquida, amor líquido, vida líquida, medo líquido, etc.).
O livro Estado de Crise está estruturado em torno de três tópicos (Crise do Estado, Modernidade em crise, Democracia em crise) cada um subdividido em vários subtópicos. Quanto ao primeiro tópico, são sucessivamente discutidos os temas da definição de crise, de um estatismo sem Estado, da relação entre Estado e nação e do contributo de Hobbes e da sua obra Leviatã para a composição do Estado moderno. Quanto ao segundo tópico, a atenção dos autores incide sobre as promessas (da modernidade) retiradas, a saída traumática da modernidade, o percurso da pós-modernidade, a desconstrução, a negação e o fim da história e das grandes narrativas. Quanto ao terceiro, analisam os dois sociólogos o tema da relação entre ética de progresso e democracia, para, em seguida explorarem as questões do excesso de democracia, da pós-democracia da “desdemocratização” e, finalmente se aventurarem na luta por uma nova ordem global. Os dois autores dissertam, sem rede (de forma livre, aberta e problematizante), sobre cada subtópico, quase sempre pela mesma ordem: primeiro Carlo Bordoni (CB), depois Zygmunt Bauman (ZB).
Dada a estrutura do livro e a abundância de temas questionados e analisados de modo fragmentário, que evoca o método de exposição gramsciano, não é fácil retirar conclusões desta leitura fascinante e em permanente ebulição.
Mesmo sabendo que qualquer (pretensa) síntese é um projeto votado ao fracasso dado estarmos perante um pensamento construído (aparentemente) sem sistema, vou aventurar-me nessa direção pois é talvez o que se esperará da recensão desta obra. Proponho-me assim eleger alguns fios condutores que procuram captar, no essencial, o fluído pensamento dos autores. Fios provisórios, sujeitos a contraditório, aprofundamentos e correções, próprios de um “texto aberto” e “líquido”.
1. O conceito de crise tem várias fontes e comporta vários sentidos, que ultrapassam largamente a perspetiva económica. O seu sentido originário mais comum é o médico, ao traduzir a ideia de diagnóstico sobre a doença do paciente (estado crítico) e um apelo à ação (o tratamento), um e outro, de incerto destino (ZB). Este facto fora, aliás, já sublinhado, nos anos 70, por James O’Connor. Hoje, o recurso à noção de crise tende a substituir o conceito de conjuntura e mesmo o de depressão (CB), de forma a exprimir também algo de “positivo, criativo e otimista”, uma abertura para um “renascimento após uma rutura”. A crise, em princípio, supera-se, pois seria temporária. Na realidade, porém, o atual tratamento (por exemplo, as políticas deflacionárias) tem-se revelado pior do que a doença, pois a (pseudo)-cura é mais “visível na pele das pessoas”. Além disso, hoje a crise, com raízes nos anos 2000, surge potenciada largamente pela eclosão do terrorismo e parece que não vai acabar nunca. Vive-se em estado permanente de crise, o que nos obriga a aprender a viver em crise (CB). A crise, na linguagem de El-Arian, seria o “novo normal”. Ou numa visão mais pessimista, diria eu, uma doença crónica degenerativa.
2. Se nos cingirmos agora à dimensão económica (em sentido lato) da crise, importa, mais do que atender às semelhanças entre a crise atual e a crise de 1929, como o desemprego maciço e as desigualdades galopantes, sublinhar as diferenças: “a crise em curso é financeira, ao passo que a crise de 1929 foi industrial” (CB); na crise do final dos anos 20 havia uma perceção de que a cura deveria ser entregue a um Estado forte, pois neste coincidiam o poder (a capacidade de levar as coisas a cabo) e a política (a habilidade de decidir como as coisas devem ser feitas). Hoje esta esperança já não existe. O modelo do Estado pós-westfaliano esboroou-se com a construção da “aldeia global” (McLuhan). De facto, com a crise do Estado social (forma política que, desde o fim da 2ª guerra, tinha possibilitado a emergência dos chamados “trinta anos gloriosos”), visível desde a década de 1970, o Estado passou, na perceção popular, a ser rebaixado à condição do “obstáculo mais odioso, pérfido e prejudicial ao progresso económico” e a confiança do público (muito induzida pelos formadores de opinião) foi investida na “mão invisível” dos mercados, apresentados ou reconhecidos como espaços sem política, como não-lugares (Augé). Com a filosofia neoliberal, mais pragmática do que ideológica, a economia é erigida em forma de dominação. Os anos seguintes são também conhecidos como os “trinta anos opulentos”, mas basearam-se num crescimento e numa “orgia consumista”, alimentada pela descoberta do cartão de crédito (vidas vividas a crédito). A soberania dos mercados (o soft power dos mercados) sobrepôs-se à soberania dos Estados. Só que a crise atual veio pôr fim à crença na mão invisível dos mercados. Como afirma ZB, “estamos dolorosamente conscientes de que, se deixados aos seus próprios mecanismos, os mercados voltados para o lucro levam a catástrofes económicas e sociais”. O problema, porém, é que hoje o Estado já não consegue ser o curador da doença. Sofre de um défice de recursos e de coerção e já não tem poder para agir. Deste modo, as políticas estatais de resposta à crise arriscam-se a permanecer num impasse. Há um divórcio (uma fissura) entre o poder, apropriado por forças globais, grupos financeiros, elites poderosas, holdings, multinacionais, lobbies, poderes supranacionais, politicamente incontroláveis e irresponsáveis, que agem, fora da democracia, no “espaço de fluxos” (Castells) – e que, de algum modo, se exprime na chamada governança neoliberal – e a política, deixada para os agentes locais (governos de Estados e cidades), sob a forma de gestão administrativa de rotina e de resolução dos problemas criados e não solucionados pelos poderes globais, como, por exemplo, as migrações. Cresce assim um “estatismo sem Estado” (Balibar), sem direção nem controlo políticos (uma política “antipolítica”), rumo ao qual nos “encaminhamos com ingénua indiferença”.
3. O Estado moderno, uma criação artificial (Leviatã), antidemocrática na sua origem, ancorada em conceitos teológicos secularizados (Schmitt), visa impor a lei e a ordem em permanente luta contra as forças da anarquia e da rebelião (Beemot), mas viu encolhida, mesmo na forma de Estado republicano e de democracia representativa, a prerrogativa de escolha, ao contrário do que ocorre com as corporações de negócios que se movem num espaço sem fronteiras e que tendem a ancorar o seu poder na sedução e na estimulação do desejo (Bourdieu) e na substituição da vigilância incessante (o panótico de Bentham e Foucault) e da hierarquia burocrática weberiana (uniformidade, conformidade, estabilidade, rotinas) pelo apogeu da individualidade, da “iniciativa, imaginação, novidade e ousadia”, fórmulas quiçá capturadas (reaproveitadas) do já longínquo Maio de 68. Mesmo a grande mestra dos segredos e subterfúgios da política, Merkiavel (designação cunhada por Beck), cujo poder assenta na “hesitação como meio de coerção” (nomeadamente na ameaça de retirar, atrasar ou negar crédito) não consegue (diferentemente dos movimentos de capital) quebrar unilateralmente a relação de dependência recíproca entre dominante (a grande Alemanha) e dominados (com gradações várias, os restantes países europeus). Ou, para usar outra linguagem: não consegue superar a dialética hegeliana do senhor e do escravo, tão bem captada no excelente filme de Joseph Losey, “O criado”. A política de procrastinação não pode ser estendida ad infinitum, sob pena da incapacitação total dos intervenientes (estatais) e da colocação em risco dos interesses empresariais que estes protegem e promovem.
4. A modernidade tinha uma ambição bem expressa na premonitória “Oração” de Pico della Mirandolla (1486), sintetizada na ideia de que “ao homem é permitido ser tudo o que ele próprio escolha”, ou seja, na “liberdade humana de se criar e afirmar” (ZB). Os modernistas (na época de Hobbes, Locke e Espinoza) escolheram reivindicar “estabilidade, reconhecimento da propriedade privada e fronteiras nacionais seguras” de forma a garantirem a prosperidade da indústria (objetivo fundamental) e o comércio necessário à distribuição e implantação da produção (CB). Neste sentido, a promessa moderna passou a centrar-se, “em primeiro lugar, numa segurança coletivamente proporcionada e guardada, e depois na liberdade, com lamentável frequência num distante segundo lugar”, ou seja, na pretensão de “substituir o caos pela ordem, a incerteza pela autoconfiança, a complexidade pela simplicidade, a opacidade pela transparência” (ZB). Erradicado o risco e a incerteza pelas grandes certezas da tecnologia, estava aberto o caminho para a “marcha incessante do progresso”, medido quantitativamente “pela acumulação de produção, riqueza, consumo e conhecimento”. A reforma protestante consolidou a fortuna e a capacidade de produzir rendimento como os valores fundamentais, pois a “graça de Deus é reconhecida em negócios bem-sucedidos” (CB). Mais tarde, este projeto abandona a âncora religiosa, que prometia a felicidade para a vida após a morte para abraçar a busca da felicidade na terra ao alcance de todos os que tivessem uma “conduta honesta, trabalhadora, humilde e parcimoniosa” (CB). No plano cultural, a essência do moderno é sustentada pela ideologia, essa filha do Iluminismo, em nome da qual foram cometidos os piores crimes da modernidade. Com efeito, a ideologia, ao fornecer estabilidade, “facilita a interpretação da realidade de maneira acrítica” (CB). A transição para a modernidade foi tudo menos fácil. Os que a viveram sentiram-na como tempos terríveis (basta pensarmos nas consequências sociais da revolução industrial), não percebiam o porquê das suas vidas terem sido tão profundamente alteradas.
5. Aqui chegados, há que sublinhar que os caminhos de CB e de ZB se separam quanto ao tema da crise da modernidade. CB fala, a propósito, das promessas não cumpridas, falhadas ou retiradas, da modernidade. Primeira, a ideia iluminista de segurança, propiciada pela perspetiva de dominar a Natureza e submeter o acaso e os desastres naturais ao controlo e previsibilidade humanos. Esta ideia foi abalada pelo terramoto de Lisboa. Segunda, a promessa suprema (mas por certo, bem mais tardia) de existência de “um fiador social”, o Estado como rede de proteção dos cidadãos, com capacidade para “salvaguardar a sua saúde, o seu direito ao trabalho, serviços essenciais, segurança social, reforma e velhice”.
CB fala então de fim da modernidade, ocorrida nos anos 1970 e revelada pela obra de Lyotard, e de fim da própria pós-modernidade, que teve o seu apogeu entre 1979 e o 11 de setembro de 2001. A pós-modernidade é vista como um período necessariamente transitório (um “rito de passagem”) que, com origens na arquitetura, se estendeu pela cultura e filosofia e por outros domínios da vida social. Vivemos hoje num presente até agora não nomeado. Ao contrário da modernidade que assumiu uma forte componente racional, a pós-modernidade assenta num subjetivismo (de origem kantiana) – no sujeito como centro da existência humana, independente das suas qualidades, que se exibe ou vende no mercado da aceitação pública (“ser visível significa existir”), transformando tudo em espetáculo mediático – e nas correntes irracionalistas que desaguam em Nietzsche, Husserl e Heidegger. A sua preocupação é com o “desmantelamento”, a “desconstrução” (Derrida), a “destruição”, a “desmassificação”. A pós-modernidade mostra a face de uma sociedade ancorada na lei de sobrevivência do mais apto, do mais esperto, do mais ávido, no consumismo cego, perdendo-se nela a certeza dos direitos. O que fica deste “interregno” pós-moderno, mais ou menos longo, acrescenta ZB, é a desconfiança de toda e qualquer ordem, o culto da flexibilidade e da inovação acima da “estabilidade” e da “continuidade” na hierarquia de valores”. CB vê, porém, um ponto positivo decorrente da pós-modernidade no regresso, sob várias formas, das multidões, por definição, difíceis de controlar, que estão na base da sociedade oculta, feita de pessoas sem pontos de referência fixos, obrigadas a resistir e a desenvolver uma capacidade de adaptação a condições adversas (um quotidiano feito de aumentos de preços, de impostos, de falta de empregos, etc.). Sintonia com Negri e Hardt para quem “a ação política voltada para a transformação e a libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”?
6. Já ZB defende que as reais promessas da modernidade continuam de pé. Aquilo que CB designa de promessas são antes estratégias encetadas para o cumprimento das promessas. Enquanto a promessa original da modernidade (a da liberdade humana de se criar e afirmar, a liberdade de escolher o seu destino) se mantem viva (“ressuscitada, reinventada, reencarnada, espanada e vestida com um traje reciclado e atualizado, ou novinho em folha”), aquelas estratégias alteraram-se profundamente. Abandonou-se, por estar fora de moda, a busca do modelo de “boa sociedade” (Paz Ferreira diria da “sociedade decente”) e superaram-se as ilusões juvenis da modernidade (o que era percecionado como verdadeiro revelou-se afinal ilusório, no sentido freudiano do termo, isto é, algo que não é necessariamente um erro, mas que é indemonstrável e irrefutável). Surgiram, porém, novas estratégias, já não tão abrangentes (dado o descrédito das grandes narrativas) mas concentradas no indivíduo (a nova utopia), em que o progresso é representado já não como algo linear, “unidirecional”, mas como algo “fragmentado” e pendular, extraindo a sua energia de uma dialética entre liberdade e segurança. O atual impasse, se bem interpreto ZB, advém do facto da liberdade ser vista como uma fonte de injustiças e horrores, de inadequação, impotência e humilhação (nela se baseia a ostentação pública da desigualdade exorbitante do 1% mais ricos) e do facto da segurança já não ser buscada nas elites políticas do Estado, vistas como “indiferentes, descomprometidas e omissas”. Abre-se então um espaço para a intervenção de demagogos “que sejam suficientemente ocos, iludidos e arrogantes para prometerem um atalho para a felicidade”, para a segurança perdida, em nome da renúncia às liberdades odiadas e mal recebidas pelos seus possuidores (ZB escreve premonitoriamente estas palavras antes de Trump ganhar as recentes eleições americanas). Por outro lado, ZB defende igualmente que a modernidade não terminou (a notícia da sua morte seria manifestamente prematura), mas mudou de configuração, transformando-se no que designa de “modernidade líquida”, uma forma degradada de modernidade, na qual tudo se tornou “instável, precário, temporário e incerto”. A flexibilidade, “marca registada da modernidade líquida (…) é a nova estratégia de dominação” e a mobilidade é “o principal elemento de estratificação na sociedade líquido-moderna”. A chamada “pós-modernidade” seria assim um “evento interno dentro da história da era moderna”. Hoje, “sabemos de onde estamos a fugir, mas não temos a menor ideia de para onde vamos”. Entretanto esperamos colher os frutos das promessas da modernidade (“conforto, conveniência, segurança, alívio da dor e do sofrimento”). A nova ideologia da “felicidade pelo consumo” tende a prevalecer sobre todas as outras. O “sacrossanto crescimento económico” é difundido pela “Igreja do Crescimento Económico”, a única que pode realmente aspirar a um estatuto ecuménico. A nova narrativa da modernidade – “a do progresso do controlo humano sobre a Terra, guiado pela santíssima Trindade da Economia, Ciência e Tecnologia – parece “mais saudável que nunca”. Em contrapartida, vivem-se tempos de impotência e inaptidão da “maquinaria política”, de fragilidade dos executivos, de falta de “qualidade dos líderes políticos e da liderança política em si”, líderes desprovidos das armas da liderança (esperança, coragem e obstinação). ZB é mais cético em relação ao papel político das multidões. Estas (por exemplo, o movimento dos indignados, o “povo nas ruas”, as chamadas redes sociais) podem limpar o terreno (mormente em contextos não-democráticos, como ocorreu com as primaveras árabes), mas não conseguiram até hoje mostrar a sua utilidade nas tarefas de construção, isto é, “não sabem o que precisa de ser feito em vez de…” Mesmo que fosse possível definir os contornos de “uma boa sociedade”, a grande questão que parece não ter resposta é a de saber quem iria construí-la. Há uma clara crise de agência: não são, por certo, os mercados, mas também não o será o Estado, “privatizado” e “ausente”. Serão as “pessoas mobilizadas”? Muitas dúvidas. “A recusa de ter esperança nas instituições políticas sobreviventes talvez seja o seu único fator invariável e integrante”.
7. O fim das grandes narrativas (deplorado por Habermas), em especial as que buscam um sentido para a história, está ligado ao “fim da história” (Fukuyama), uma narrativa apocalíptica de substituição. O pensamento pós-moderno desconfia da história, pois esta é sempre escrita pelos vencedores (Vattimo, apoiando-se em Benjamim) e, como tal, manipulável. Seria uma “impostura” que serve de “legitimação documental” do poder vitorioso e não “uma memória de verdade”. O pós-modernismo substituiu-a pelo evento, “mas o conjunto dos eventos não faz história, porque estão desligados uns dos outros”(CB). Os eventos são efémeros, imediatos, únicos e impossíveis de se repetir. Não têm memória e são desprovidos de qualquer visão estruturada (tranquilizadora) e, como tal, não faz qualquer sentido evocar o passado para evitar a repetição de erros. O registo dos eventos é hoje, com as novas tecnologias, infinito. A “memória coletiva” foi substituída por “uma pista digital que percorre todo o planeta e grava todas as expressões humanas, indiferente à importância social do seu emissor”, que regista “”o rasto da nossa passagem pelo mundo” (CB). Talvez hoje haja condições para se escrever a história dos vencidos. Mas à custa do nascimento do “Panótico universal” que escrutina não só o nosso presente mas também o nosso passado.
A pós-modernidade solapou as bases da modernidade, a ideologia, a história e a ética de trabalho, sem nada oferecer em troca. ” A sociedade de amanhã emerge como uma sociedade sem memória”. “Somos habitantes de um mundo que está a mudar, e chamamos a essa mudança crise” (CB).
Por sua vez, Bauman critica acidamente a ideia de “fim eminente” da história, múltiplas vezes proclamado. Como critica a outra asserção de Fukuyama, segundo a qual nada há de errado na intenção de se criar um “homem novo”, ou seja, uma raça humana “nova e melhorada”. Para este último autor, o erro estava na inadequação dos instrumentos usados anteriormente para o efeito (“educação, propaganda e lavagem cerebral”). Mas com a engenharia genética, hoje a chegada do “homem novo” estaria perfeitamente ao nosso alcance. Bauman avisa que essa afirmação (correndo o risco de se transformar numa espécie de profecia autoexecutável) dividiria os seres humanos em espécies da exposição de flores de Chelsea (“o homem purificado das deficiências que tanto tempo infestaram homens e mulheres”) e as ervas daninhas (a outra humanidade). Se bem interpreto, isto significa nada aprender com “o horrível passado” que a história nos recorda. Mesmo que esta seja um produto do “braço de ferro conhecido sob o nome de luta pelo poder”.
8. O que foi dito até agora serve, pretensão minha, para despertar o interesse e a curiosidade do leitor pelo livro e, em especial, pela última (e imperdível) terceira parte, dedicada ao tema da democracia em crise. Sobre ela não me vou alongar, até porque penso mais tarde regressar ao tema. Ficam contudo algumas interrogações à espera de resposta. Será a crise da democracia a sua condição normal (Josef Fischer)? Pode existir democracia sem burguesia (Barrington Moore Jr)? Poderá ser a democracia a concretização da fórmula de Lincoln “o governo do povo” (pelo povo e para o povo)? Pode haver democracia num Estado em crise, num Estado em que o poder está dissociado da política? Há um processo em curso de “desdemocratização” (Charles Tilly)? Ou vivemos já em “pós-democracia” (Colin Crouch)? E as interrogações poderiam continuar…
Ficam, por fim, dois alertas. Um de Bauman: de todas as crises, “aquela que afeta as instituições herdadas da democracia é a mais séria, na medida em que atinge os únicos instrumentos de ação coletiva agora ao nosso dispor”. Outro de Bordoni: “Toda e qualquer renúncia à democracia representativa seria na verdade o fim do mundo tal como nós o conhecemos: mais que um retorno aos princípios básicos, seria um salto no escuro cujas consequências somos incapazes de prever”.