“Termites of the State. Why Complexity Leads to Inequality”, de Vito Tanzi

Recensão de A. Carlos dos Santos e A. Cristina Lino Marques


Tanzi, Vito (2018), Termites of the State. Why Complexity Leads to Inequality, New York: Cambridge University Press.

O Autor e o Livro

Vito Tanzi é um economista italiano formado nas Universidades de George Washington (1959-1961) e de  Harvard (1963-1967) e um reputado especialista em temas de Finanças Públicas e de Fiscalidade, bem conhecido do mundo académico, profissional e político português.  A ele (e a Olivera) se deve a enunciação do chamado efeito Tanzi, um conceito que analisa a relação entre a arrecadação fiscal e as taxas de inflação ao longo do tempo, ou seja da influência da inflação sobre o valor das receitas fiscais. Segundo ele, existe um desfasamento entre o facto gerador de um imposto e o momento em que ele é efetivamente arrecadado pelo Estado, daí decorrendo que, tendo em conta a desvalorização da moeda em que os impostos são pagos, quanto maior for a inflação nesse período menor será a arrecadação real do governo.[1]

A sua carreira profissional tem sido muito diversificada, da academia (1967-1974), a dirigente da Tax Policy Division e do Fiscal Affairs Department do Fundo Monetário Internacional (postos que exerceu durante cerca de 16 anos). Foi ainda presidente do Instituto Internacional de Finanças Públicas (1990-1994) e consultor  sénior de vários governos e de diversas instituições internacionais (como o  Banco Mundial, a ONU, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o Banco Asiático para o Desenvolvimento, o Banco de Desenvolvimento Interamericano, a Comissão Económica para a América Latina e a Organização dos Estados Americanos). Como político, foi  Secretário de Estado para a Economia e Finanças (2001-2003) do governo de Sílvio Berlusconi. É autor ou editor de cerca de 20 livros, publicados em vários países, bem como de centenas de artigos em revistas da especialidade.

Nesta obra, Vito Tanzi analisa o que considera ser  “o tópico mais importante da Economia”, ou seja, o papel económico do Estado (governo, setor público) nos países democráticos com economias de mercado, com maior ênfase nos Estados Unidos da América (EUA), tendo em conta diversas dimensões desse papel (teórica, prática, evolução e respetivas consequências).

O livro está estruturado em três partes. A primeira parte intitulada “Alterações no papel económico do Estado no século XX” aborda a evolução da intervenção pública na economia durante o século passado. A segunda parte – “Complexidade e a ascensão das térmitas”- descreve como o controlo e a monitorização do papel crescente do Estado na economia se tem tornado cada vez mais difícil. A terceira parte – “Foco na equidade” está centrada na questão da distribuição do rendimento que, em muitos países, se tornou cada vez mais desigual, sendo avançados alguns dos fatores que contribuíram para essa situação, bem como referidas as formas de atuação que os governos deveriam adotar para a corrigir.

A obra oscila entre um tom mais descritivo, factual, e um tom mais normativo e procura tomar em consideração não apenas ensinamentos da Economia pura, mas igualmente  ensinamentos de outras disciplinas sociais e humanas. Neste sentido, Tanzi retoma uma tradição não positivista inerente à Economia Política. E fá-lo revelando um certo sentido de humor, quando, por exemplo, cita (a p. 302) uma frase do dramaturgo e romancista sueco August Strindberg, segundo o qual “Economics is the science by which elite remains the economic elite“.

Procuramos, de seguida, efetuar uma breve síntese das principais ideias explanadas pelo Autor nos diversos capítulos das três partes que integram a obra. Escusado será dizer que esta síntese não substitui a sua leitura, até porque um dos motivos de maior interesse para o seu estudo é o facto de ela conter inúmeros exemplos e dados relevantes para o aprofundamento da compreensão da questão da intervenção do Estado na economia.

Parte I: Alterações no papel económico do Estado no século XX

A primeira parte da obra é constituída por nove capítulos, ao longo dos quais Vito Tanzi explica o modo como as correntes económicas dominantes no século XX influenciaram a evolução da intervenção do Estado na economia. A sua análise inicia-se na segunda metade do século XIX, em que para a maioria das economias de mercado vigorava a filosofia do laissez-faire. Apesar da globalização crescente da atividade económica, o período que decorre entre o início do século XX até à primeira guerra mundial na Europa (1914-8) e até à Grande Depressão (1929-32) nos EUA e em alguns outros países, permanece para Vito Tanzi ligado à filosofia do laissez-faire, na medida em que o Estado tem um limitado papel direto “nas atividades dos mercados e na vida dos cidadãos” (p. 16). Este facto traduz-se em níveis baixos de despesa pública e de receita fiscal, apesar de se ter começado a dar mais atenção aos direitos dos trabalhadores face ao poder excessivo dos donos das empresas.

Entre as duas grandes guerras, Tanzi deteta uma alteração no pensamento e nas políticas económicas, que originaram uma maior intervenção direta dos governos nas respetivas economias, sem que existisse um correspondente aumento dos gastos públicos e dos impostos. Nestas duas décadas, em especial na Europa, a ideia de que alguma forma de planeamento económico por parte dos executivos poderia ajudar a melhorar o desempenho económico e  aumentar o bem-estar dos cidadãos, influenciou muitos governos no sentido da sua adoção. O planeamento económico (leia-se: a planificação obrigatória) havia tido o seu apogeu na experiência russa em 1920 e em países autoritários ou fascistas, assumindo facetas do que se designa hoje por “capitalismo de conivência” (crony capitalism, p. 27). Segundo o Autor, a economia americana foi menos permeável à experiência russa, podendo em 1925 provavelmente ser considerada a economia mais influenciada pelo laissez-faire entre os países desenvolvidos, mas também com uma distribuição de rendimento cada vez mais desigual. Foi nesta altura que Keynes escreveu um ensaio onde manifestava preocupação sobre a forma assumida pelo sistema capitalista. Para Tanzi, os anos 1920 marcam a entrada no sistema capitalista daquilo que vem designando por térmitas.

Na segunda metade do século XX, Tanzi identifica dois períodos distintos quanto à conceção da intervenção do Estado nas economias de mercado: os anos 1950 e 1960 que se caracterizaram como pró-governo e as décadas 1980 e 1990 como pró-mercado.

Nas três décadas que se seguiram à segunda guerra mundial, o Autor refere a alteração significativa da intervenção do Estado nas economias de mercado desenvolvidas, uma versão do Estado-providência moderno, “com elevada despesa pública, elevados impostos (exceção: os EUA) e direitos crescentes para os cidadãos” (p. 31). Com este novo papel dos governos, assistiu-se a uma redução da interferência direta dos governos no funcionamento da economia e a um crescendo de vários tipos de intervenção indireta, que foram questionados pelos defensores do “fundamentalismo do mercado”. Segundo Tanzi, os anos 1950 e 1960 corresponderam a uma época em que os responsáveis políticos de muitos países acreditavam que poderiam melhorar significativamente a vida dos cidadãos e que a pobreza poderia ser erradicada através de um nível de despesa pública suficiente (determinado por modelos econométricos – correspondendo ao início da fase científica da Economia) financiado por impostos progressivos sobre o rendimento ou, caso fosse necessário, por dívida pública. Ou seja, com base naquilo que Tanzi designa de “lei do crescimento da despesa pública” (p. 51). O autor identifica duas abordagens diferentes no modo como os governos concretizavam os seus objetivos de política: uma através da tributação progressiva sobre o rendimento e transferências dirigidas diretamente para as famílias pobres e outra através de “despesas fiscais” (conceito introduzido nos EUA nos anos 1960), que eram utilizadas para diminuir a carga fiscal do imposto sobre o rendimento para os contribuintes que o pagavam (uma forma de “ilusão fiscal” (p. 52)). Foi um período em que a visão dominante era a de que os impostos progressivos sobre o rendimento e as “despesas fiscais” bem direcionadas possibilitavam a equidade e o consumo de bens de mérito e as regulamentações corrigiriam certas falhas de mercado, como as externalidades negativas e o controle dos mercados pelos monopólios.

Para Tanzi, a primeira metade dos anos 1960 foi provavelmente o apogeu da teoria Keynesiana em diversas economias de mercado, dado que existia uma enorme confiança no papel de estabilização dos governos utilizando esta teoria económica. Foi também nesta altura que surgiu, nos EUA, o Relatório Landis, que advogava uma nova forma de regulamentação – a regulamentação focada nas necessidades e nos direitos dos cidadãos.

No final dos anos 1960 e, em particular nos anos 1970, a situação económica e política alterou-se, e conduziu a uma modificação do pensamento económico dominante. Na perspetiva de Tanzi, o choque petrolífero e a recessão (ou desaceleração prolongada) que se lhe seguiu em diversas economias contribuíram para o aumento dos défices orçamentais e das dívidas públicas e levaram diversos economistas a questionar não só as políticas contra- cíclicas Keynesianas, como alguns postulados e a própria estrutura da teoria Keynesiana. Alguns economistas e cientistas políticos começaram a procurar as falhas de governo (por oposição às falhas de mercado), visão dominante no século XIX. A discricionariedade que os Keynesianos consideravam um ativo importante para os decisores políticos foi fortemente contestada e substituída, em vários países, por regras orçamentais que limitassem as ações dos governos.

O final dos anos 1970 foi marcado pela revolução da economia da oferta (supply-side), que passou a ser, na maioria das economias de mercado, a doutrina económica dominante até à crise financeira de 2007. Neste período que ficou conhecido por “fundamentalismo de mercado” (p. 78), advogava-se que se devia deixar o mercado funcionar livremente para alcançar a eficiência e que o mercado não cometeria erros. Tanzi alerta para a diferença entre a nova doutrina económica e o laissez-faire, pois o “fundamentalismo de mercado” baseava-se numa “fé quase religiosa nas virtudes intrínsecas do mercado para resolver problemas” (p. 78). A perspetiva de que os governos deviam minimizar a sua interferência nos mercados e reduzir o seu papel económico ao mínimo levou a que, em diversos países, se contraísse  significativamente a regulamentação em certos setores, em particular no financeiro. Como refere o autor, “a sociedade passa a ser dirigida pelo mercado e deixa de ser uma comunidade de indivíduos; é uma sociedade em que todas as relações são caracterizadas e avaliadas por trocas de dinheiro” (p. 81). Em algumas áreas, assiste-se mesmo à substituição do capitalismo de mercado pelo “capitalismo de casino” (p.84).

Parte II: Complexidade e a ascensão das térmitas

Nos dezasseis capítulos que constituem a segunda parte da obra, Vito Tanzi explica como a complexidade das economias modernas levou à ascensão das térmitas do sistema. Nesse contexto, o autor descreve as falhas de governo e as suas causas. Começa por enquadrar o tema no fundamentalismo do mercado que se concretizou, em muitos países, num Estado minimalista, numa desregulamentação que possibilitou a criação de um mercado financeiro global não regulamentado, num “capitalismo de casino” em certos setores de atividade e numa desigualdade gritante nas remunerações no setor privado.

A tese subjacente a este livro é a de que o desenvolvimento das economias e dos mercados gera uma maior complexidade e uma maior interligação, criando novos fundamentos para a sua monitorização e controle e, presumivelmente, um novo papel para a intervenção do Estado na economia, que Tanzi advoga dever ser em consonância com a abordagem normativa do papel do governo, isto é, “quando o mercado falha, o governo deve intervir” (p. 110). Mas, o Autor reconhece não existir consenso na sociedade sobre a existência de falhas de mercado, pois alguns vêm-nas como meros fenómenos decorrentes do desenvolvimento económico.

Vito Tanzi descreve como, em décadas recentes, se têm conjugado diversas formas de capitalismo nas economias de mercado: capitalismo de compadrio, capitalismo de casino e capitalismo piñata,[2] que justificam a intervenção dos governos. Por outro lado, o aparecimento de um novo tipo de aristocracia económica com um lugar privilegiado na sociedade coloca um novo desafio aos governos: ou implementar políticas redistributivas ex-post para corrigir as desigualdades de rendimento, ou utilizar legislação e ação governamental efetiva para esse efeito. No seu entender, estes novos desenvolvimentos das economias de mercado só poderão ser analisados adequadamente se se tiver em mente o papel das térmitas, elementos que distorcem o papel legítimo que os governos tentam desempenhar (térmitas do Estado) ou a função legítima do mercado (térmitas do mercado).

O Autor constata que todos estes problemas têm alterado, nas sociedades democráticas, “a relação que devia existir entre o Estado e os cidadãos, e para muitos, a legitimidade da economia de mercado, o que aumenta o perigo de o populismo se tornar uma força irresistível” (p.120).

Tanzi analisa detalhadamente as diversas térmitas do estado e do mercado e as portas de entrada que elas utilizam para se introduzirem no sistema económico e nas ações dos governos, sendo as áreas em que há interseção entre as esferas pública e privada as mais propícias ao seu aparecimento. Identifica como possíveis térmitas do Estado a regulamentação “capturada” (ou captura regulatória), a informação obrigatória (mandated disclosures) ligada a várias atividades, os passivos contingentes (isto é, garantias, implícitas ou explícitas, dadas pelo Estado a algumas atividades privadas, incluindo depósitos nos bancos comerciais) e a corrupção.

O Autor estuda o papel que o Estado tem desempenhado nos últimos anos nas economias de mercado mais desenvolvidas, tendo por base a classificação tripartida de Richard Musgrave (ou seja, considerando os fundamentos da correção da afetação dos recursos, da redistribuição do rendimento e da riqueza e da estabilização económica), e acrescenta dois novos fundamentos: a promoção do crescimento e do emprego e um papel tutorial.

Relativamente à afetação de recursos, o autor destaca nas falhas de mercado, a importância da assimetria da informação (com o lobbying levado a cabo por profissionais, nomeadamente advogados, a tornar-se uma atividade em expansão, uma verdadeira indústria) ou as distorções provenientes de práticas monopolistas e nas falhas dos governos, a regulamentação (que reveste diversas formas, tais como a que tem por objetivo promover a segurança, corrigir ou reduzir as externalidades ou os monopólios naturais, assegurar a defesa dos consumidores, criar proteções de natureza social ou reforçar o mercado) que, muitas vezes, é tardia em relação aos problemas que visa resolver, outras vezes é de difícil interpretação e aplicação, outras ainda permanece em vigor para além do seu tempo útil), com o perigo de ser fruto da pressão dos lobbies ou da corrupção e, bem assim, no caso de ser promovida por entidades reguladoras, de resultar na captura dos reguladores pelos regulados.

Ainda no tópico das falhas de mercado, Vito Tanzi alerta, no que respeita à provisão pública dos bens semi-públicos, para o facto de a despesa nestes bens poder gerar benefícios privados para quem fornece os serviços, especialmente quando o fornecimento é ineficiente ou quando existe corrupção. Neste âmbito coloca diversas questões, designadamente se a provisão pública destes bens será um meio para promover a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, qual a qualidade destes bens face aos bens privados, se o direito a estes bens será um direito cívico.

O autor refere ainda a existência de novas falhas de mercado – as externalidades globais ou multinacionais (difíceis de corrigir, a não ser com acordos entre diversos governos) e os direitos de propriedade, na sua versão de propriedade intelectual (que criam verdadeiros monopólios para aqueles que os solicitam). São justamente estes direitos de propriedade que possibilitam uma cada vez mais desigual redistribuição do rendimento e da riqueza, na medida em que “alguns dos maiores rendimentos recebidos estão ligados, direta ou indiretamente, à proteção da propriedade intelectual pelos governos” (p. 203).

Observa ainda Tanzi que também o papel da redistribuição do rendimento e da riqueza (um tema iminentemente político) se alterou ao longo do tempo. Com efeito, hoje em dia, existem programas universais que protegem todos os cidadãos de um país de determinados riscos, o que constitui em relação ao passado, uma revolução radical e muito onerosa. Por outro lado, nas últimas quatro décadas, tem-se assistido a um Estado que defende mais os grupos de elevado rendimento e menos os da classe média o que, segundo o autor, decorre do compadrio e outras térmitas do estado, da maior proteção da propriedade intelectual e das alterações que se verificaram nos sistemas fiscais. Assim, Tanzi defende que pode ser necessária intervenção do Estado no mercado, por forma a que este funcione de um modo mais eficiente, em particular para eliminar ou reduzir as manipulações a que tem sido sujeito nos últimos anos, e que se concretizaram em rendas económicas, abusos, clientelismo, evasão e fraude fiscais (isto é, as térmitas do Estado em ação). Donde, o papel futuro do governo não será apenas o de redistribuir o rendimento após a sua determinação pelo mercado, mas o de corrigir e redirecionar a forma como o mercado funciona.

Nesta obra é analisada a evolução no tempo de outro fundamento da intervenção do Estado na economia – a estabilização económica. A origem deste fundamento remonta à grande recessão nos anos 1930, pois nas décadas subsequentes utilizaram-se, para levar a cabo esta função, políticas orçamentais contracíclicas e estabilizadores automáticos. Mas, nas três últimas décadas, Tanzi observa que a estabilização da economia passou a estar muito dependente da política monetária, o que coloca em causa a independência dos bancos centrais. A contribuição dos bancos centrais para a crise financeira de 2007-2008, com as suas políticas monetárias acomodatícias, constitui um exemplo disso. E outro exemplo é a política monetária de flexibilização quantitativa (quantitative easing) dos últimos anos (segundo Tanzi, uma “política orçamental camuflada”, p. 244) que teve como consequência que, quer o Banco Central Europeu, quer a Reserva Federal americana detivessem uma grande percentagem das dívidas públicas dos respetivos Estados. Com o objetivo de promoção do crescimento económico e de emprego, os governos têm implementado políticas que, frequentemente, utilizam recursos públicos para apoiar empresas privadas de muito grande dimensão (as “campeãs nacionais” (p.246)), que são pouco competitivas e que comportam custos elevadíssimos. A gestão destas empresas e a influência que os políticos nelas têm, criam oportunidades para atos de corrupção (e constitui mais uma porta de entrada para as térmitas).

O autor mostra como as constituições dos diversos países, por ainda refletirem as preferências da sociedade em que foram criadas, têm condicionado de alguma forma a política económica dos governos atuais. Sendo certo que podem ser alteradas, isso nem sempre é fácil e, por outro lado, a alteração frequente das constituições diminuiria o seu valor e criaria outros problemas. No seu entender, a heterogeneidade das comunidades modernas constitui o principal problema na definição e implementação do papel do Estado. Atualmente, em muitos países, tornou-se evidente que o foco das políticas é o indivíduo e não a comunidade, mas isso exige alterar regras e controlos e uma aplicação da lei mais restrita. Nos dias de hoje, é questionável se o controle das fronteiras continua a ser o papel principal do Estado.

Tanzi defende que o Estado, para concretizar os seus objetivos, tem de ter um setor público com qualidade, isto é que lhe permita realizar com eficiência as suas metas. Nesse âmbito, não pode ser negligenciado o papel da função pública na implementação das políticas públicas. Com efeito, uma das importantes térmitas do Estado é a distorção introduzida na fase de realização das políticas públicas pela função pública que controla as instituições ou pelas falhas institucionais.

A qualidade do setor público é influenciada pelo enquadramento legal das ações dos governos, o qual  é constituído pelas constituições dos países (algumas muito abrangentes, outras muito pormenorizadas), por leis específicas, por vezes, de uma grande complexidade, levando a uma alteração de paradigma da “regra da lei” para a “regra dos advogados” (p. 273), permitindo a invasão de térmitas (não observadas nas leis dos países) pelas regulamentações (as quais têm impacto nos três fundamentos de intervenção do Estado na economia apontados por Musgrave e constituem uma das áreas em que a corrupção mais pode crescer) e pelas regras informais, que condicionam o comportamento económico dos funcionários públicos e do setor público em geral.

Outro fator a ter em conta na qualidade do setor público é, na opinião de Vito Tanzi, a qualidade das instituições públicas, a qual depende da existência de controles efetivos e de mecanismos de execução. Neste contexto desempenha um papel fundamental a contabilidade pela ótica dos acréscimos e não pela ótica de caixa, como é habitual. A transparência da política orçamental e das instituições públicas é determinante para que não surjam ou não se desenvolvam as térmitas do estado (através da corrupção e do desempenho burocrático).

Parte III: Foco na equidade

A terceira parte da obra, constituída por oito capítulos, é dedicada à análise da redistribuição do rendimento (problema antigo, mas que hoje assume novos contornos), em particular a fatores recentes que poderão ter acentuado uma perspetiva pessimista sobre o papel económico dos governos e gerado, em diversos países, reações populistas. São, segundo o Autor as térmitas do Estado que tornam esse papel mais difícil de implementar.

O conceito de crescimento equitativo (equitable growth) é um conceito vago, que não toma em conta certos rendimentos nem certos custos. A noção de crescimento (equitativo ou não) é, em regra, uma definição estatística definida como o aumento do output económico no tempo medido a preços constantes de mercado.  Apesar das críticas a que tem sido sujeito e mesmo das tentativas de o substituir,  continua a ser usado pela quase totalidade dos países e nas comparações internacionais, assumindo-se que uma taxa de crescimento mais alta é preferível a uma taxa mais baixa. Para ser equitativo o crescimento deve ser inclusivo. Mas não é fácil encontrar o equilíbrio certo (conceção do estado como árbitro) entre intervenção e não intervenção do Estado, a partir da expressão de interesses divergentes, nem sempre conciliáveis. Os Estados são confrontados entre a alternativa de incorrer em falhas de mercado ou em falhas de governo em situações em que nada fazer não parece ser a opção desejável (p. 310-313).

Tanzi mostra-se seriamente preocupado com a tendência da distribuição do rendimento nas últimas quatro décadas, a qual tem favorecido uma reduzida percentagem das populações (auferindo rendimentos de natureza rentista) em detrimento dos salários dos trabalhadores e com consequências desse facto na despesa pública. Deve nestes casos o governo intervir como defendem uns e contestam outros? Qual o papel dos governos na criação dessas desigualdades? Que níveis de desigualdade são socialmente aceites de forma a, numa economia de mercado, se conciliar crescimento com liberdade política dos cidadãos?

Tanzi defende que a distribuição de rendimento pessoal decorrente do mercado é bem diferente e socialmente menos desejável do que a que teoricamente resultaria num mercado que funcionasse bem e num país em que fosse completamente neutro o papel económico total do Estado, condições que na prática não se verificam. Defende ainda que a distribuição de rendimento gerada pelo mercado é, em parte, consequência do conjunto de regras, proteções e políticas que os governos estabeleceram, forneceram e permitiram ao longo dos anos. E destaca ainda a importância da sorte, em vários dos seus aspetos, na obtenção de grandes rendimentos por parte de alguns indivíduos e como a importância do fator sorte está associada, nas economias modernas, à existência das modernas tecnologias e a regras dos governos que permitem aos indivíduos tirar disso partido.

Tanzi reconhece a necessidade do papel económico do Estado e das regras em situações de falhas de mercado. Mas questiona, porém, se não há instrumentalização do Estado por alguns interesses pessoais privados, que o manipulam para seu próprio benefício, distorcendo a eficiência e a equidade no mercado. É o caso de peritos e intermediários bem pagos, como os já referidos lobistas, os fiscalistas (advogados e contabilistas), os consultores de investimentos, os facilitadores que, valendo-se de uma rede de relações pessoais com o mundo da política, servem para abrir portas, os gestores que frequentemente circulam entre o público e o privado (fenómeno conhecido por “porta giratória), os membros de think tanks  financiados por empresas para a realização de trabalhos com a aparência da imparcialidade académica, etc. O autor considera que a menor transparência, objetividade e universalidade das regras do jogo (escritas num “legalês” por juristas para juristas, sujeitas a diversas interpretações[3]) que determinam a articulação entre o mercado privado e o sistema capitalista numa democracia, conjuntamente com a complexidade crescente e a assimetria na informação, são fatores que poderão ter contribuído para a crescente disparidade no rendimento que caracteriza muitas economias modernas.

Nas décadas recentes, as causas da desigualdade na distribuição do rendimento e especialmente a concentração no limite superior da distribuição têm sido objeto de estudo de diversos economistas. A concentração da riqueza no topo já não se deve apenas à lotaria do nascimento nem ao amiguismo. Para Tanzi uma possível explicação reside no crescimento do capital intelectual (assegurado por regimes de propriedade intelectual, cuja proteção é um papel novo do Estado moderno) combinado com as tecnologias de comunicação como a Internet, e na redução da progressividade do sistema fiscal.

Quanto ao primeiro fator, o autor considera que houve uma mudança de paradigma no crescimento económico dos países desenvolvidos: enquanto, no passado, este dependia da propriedade de ativos tangíveis e do intercâmbio de conhecimentos, atualmente o crescimento económico baseia-se na inovação e consolida-se no conhecimento registado como propriedade intelectual (patentes, marcas, direitos de imagem, etc.) comummente usado nas   indústria farmacêutica, da moda, do desporto, do entretenimento, etc. e que origina situações (temporárias?) de monopólio. Mesmo a produção de bens materiais (como computadores, smartphones, câmaras, automóveis, etc.) está hoje largamente dependente do “capital intelectual”. Tanzi atribui esta alteração ao crescimento de diversas formas de capital intelectual e dos seus vários tipos de propriedade em conjunto com as políticas públicas que ampliaram aquilo que pode ser considerado propriedade intelectual e, ainda, em simultâneo, com as novas tecnologias de comunicação que permitem a sua difusão pelo mundo e aumentam o seu valor (p. 344). A maioria dos acordos de comércio visa muito mais a proteção da propriedade intelectual e dos direitos a ela ligados do que a proteção dos produtos reais. O gozo destes direitos que atingem montantes consideráveis (e que, não raro, possuem natureza rentista) muito tem contribuído para o incremento das desigualdades.

Quanto ao segundo fator, Tanzi analisa como o sistema fiscal pode ter contribuído, em diversos países (designadamente nos EUA e em países anglo-saxónicos), para a existência de assimetrias muito significativas na distribuição do rendimento. Destaca, nesse contexto, o papel das reduções nas taxas marginais de imposto mais elevadas, induzidas pela crença na “curva de Laffer” e das alterações na arquitetura do imposto sobre o rendimento que poem em causa o respeito do princípio Haig-Simons, segundo o qual os diversos tipos de rendimento devem ser tratados do mesmo modo. Nos anos 80, porém, com base na crença (empiricamente não demonstrada) que uma tributação mais favorável dos rendimentos do capital (lucros, dividendos, juros, mais-valias) não só evitaria a fuga de capitais como levaria a um maior investimento e a um crescimento mais rápido, sendo, a longo prazo, do interesse dos próprios trabalhadores, surgem regimes fiscais que discriminam negativamente  os rendimentos do trabalho. Além disso, destaca ainda a crescente complexidade dos sistemas fiscais que, ao procurarem atingir vários objetivos ao mesmo tempo, nomeadamente pela via da despesa fiscal[4], potenciam o planeamento fiscal agressivo, a evasão e a fraude fiscais globais e, consequentemente o incremento das desigualdades, em prejuízo dos trabalhadores.

Segundo o Autor, melhorar a distribuição do rendimento é, porém, na atualidade, uma tarefa muito difícil. Para isso contribuíram diversos fatores: “a globalização da produção, a mobilidade global do capital e dos indivíduos ricos, o aumento de importância do capital intelectual e a sua crescente proteção decorrente de leis e vários desenvolvimentos tecnológicos implementados ou encorajados pelas políticas públicas” (p. 393). Em alguns casos, considera que apenas medidas concertadas entre países poderão diminuir a desigualdade na distribuição do rendimento.

Tanzi adverte igualmente para o novo tipo de aristocracia que emergiu da crescente desigualdade salarial – a aristocracia baseada no dinheiro e constituída pelos indivíduos dos percentis do topo da distribuição de rendimento. “Se esta nova aristocracia se tornar uma aristocracia permanente, isso implicará um regresso ao passado, ou seja, um regresso a sociedades que não são verdadeiramente democráticas e a um sistema económico que deixaria de ser uma economia de mercado” (p. 399). O autor observa assim que a desigualdade extrema alimenta os populismos e é um assalto à democracia e à economia de mercado.

Conclui a obra com uma citação de Keynes que, quase um século depois, permanece atual – “temos de inventar uma nova visão para uma nova era”. A partir daqui, Vito Tanzi lança um desafio aos peritos de diversas áreas para que descubram a nova visão que permitirá a coexistência ideal entre a democracia e os mercados, por forma a se preservar um capitalismo democrático e alcançar um futuro melhor.

Breve apreciação

Tanzi faz parte de um pequeno grupo de economistas que poderíamos designar como conservadores lúcidos: é alguém que, mesmo sem ter provavelmente esse objetivo, representa o papel de intelectual orgânico do sistema. Politicamente conservador, como facilmente se verifica, tendo em conta as suas conhecidas posições e práticas e os objetivos que explicitamente defende de conservação do sistema. Lúcido, porque evita aproximar-se dos conservadores do mainstream que defendem acriticamente a “religião do mercado”. A sua experiência profissional e política, o seu conhecimento concreto do funcionamento das economias, a sua atenção às instituições e às normas, formais e informais, o recurso a conhecimentos provindos de áreas como a Ciência Política, o Direito ou mesmo a Psicologia, leva-o a um salutar distanciamento em relação à lista dos economistas conservadores, como Friedman, Hayek, Stigler, Buchanan, Coase, Mundell, Becker, Harberger e Lucas (por ele citados) que apenas vêm no mercado virtudes e no governo falhas. Evita assim confundir-se com o paradigma dominante da atual Economia que, incapaz de assimilar a mudança, acaba por desembocar, como a recente crise demonstrou, na negação do real, típica de uma forma de “pensamento gregário” (W. Mitchell). Embora a tanto não chegue, a sua análise permite intuir a crise da velha oposição entre esfera mercantil e esfera política ou da clássica separação Estado-sociedade civil. A forma como analisa a problemática da intervenção estatal mostra uma íntima ligação entre Estado, o poder político e o poder económico, ambos produtos da evolução histórica das sociedades, tal, aliás, como as ciências sociais que estudam esses fenómenos. Particularmente interessantes são, neste contexto, os capítulos que dedica ao tema da propriedade intelectual que nos permite questionar se uma economia assente na informação, em que existe uma tendência para os produtos serem efetuados a custo zero, os direitos de propriedade não constituirão o sucedâneo da criação de novos mercados onde os velhos estão esgotados ou gastos (P. Mason). O mesmo ocorre, sem surpresa, com as páginas sobre a fiscalidade, embora aqui fique em aberto a questão de saber o que pensa Tanzi sobre o movimento internacional, centrado na ação do G20, da OCDE e da União Europeia, que visa combater o planeamento fiscal agressivo e o papel dos paraísos fiscais, com a definição de novos princípios de direito internacional fiscal e com o incremento de novas formas e técnicas de cooperação internacional, nomeadamente a troca obrigatória e automática de informações.

Dito isto, Tanzi centra a atenção essencialmente nas esferas da circulação e da distribuição do processo económico, concedendo menos atenção à produção e às transformações laborais e, bem assim, às sucessivas revoluções tecnológicas, em especial à biotecnologia, à robotização,  à inteligência artificial (sem esquecer as criptomoedas) que, no seu conjunto, permitem uma concentração de riqueza e de poder tal que poderão conduzir, a breve trecho, à irrelevância  da maioria das pessoas (Y. N. Harari). Ou, num outro registo, à magna questão dos limites ambientais e ecológicos ao crescimento. Ou ainda ao papel da teoria económica dominante (neoclássica) no desencadear da crise, dada a sua incapacidade para a prever e, consequentemente, para a superar.[5]

Em conclusão: muito do que é dito nesta obra foi, a partir de outros pressupostos, igualmente dito por vários outros economistas, desde logo por Stiglitz e Roubini, curiosamente pouco ou nada citados neste livro, bem como por diversos outros autores que, situados fora dos quadros mentais do neoliberalismo, anteciparam a crise imobiliária e a recessão.[6]

Deste modo, mais do que a narrativa construída pelo Autor, o que torna fascinante esta obra é o facto de ter sido escrita por alguém com a experiência profissional e o percurso político de Tanzi e de ter sido muito bem acolhida por dois famosos economistas de água doce, o alemão Hans-Werner Sinn e o italiano Alberto Alesina.

A. Carlos dos Santos (Prof. do IDEFF; Investigador do SOCIUS/ ISEG)

A. Cristina Lino Marques (Prof.ª do ISCAL)

Notas

[1]Vito Tanzi (1969). The Individual Income Tax and Economic Growth. [S.l.]: Johns Hopkins University Press.

[2] Sic, p. 115. Piñata é um termo castelhano que designa “uma panela cheia de doces que, no baile de máscaras do primeiro domingo da Quaresma, é quebrada com um pau”. O termo tem sido usado em sentidos não coincidentes. Aqui parece referir-se, não às  comissões (os doces) auferidas por aqueles que procuram abanar governos e empresas até que quebrem, ganhando com a instabilidade nos mercados, mas à experiência nicaraguense recente caraterizada por um  enriquecimento impúdico de antigos combatentes sandinistas, ou seja, parece ser um outro modo de designar o “capitalismo de amigos”.

[3] A questão pode estender-se ao “economês”. O jargão económico e financeiro (e mesmo o contabilístico) está longe de ser entendido pelo comum dos mortais.

[4] Como diz o Autor “Income taxes have, often, tried to fit an Armani suit on every taxpayer, when the choice of a Mao tunic might have been simpler and preferable” (p. 382).

[5] Moderna teoria económica cuja reputação, segundo a insuspeita revista The Economist de julho de 2009, teria sido seriamente abalada com a crise. E, acrescente-se, que, apesar disso, permanece de pedra e cal na formação dos jovens economistas.

[6] Sobre o tema, Cf o capítulo II de Steve Keen (2011), Debunking Economics. The Naked Emperor Dethroned, London / New York: Zed Books (há tradução francesa de 2014 com o título L’imposture Économique).