A parcela da riqueza criada no país que é aplicada na saúde diminuiu, a despesa das famílias aumentou

Artigo de Eugénio Rosa.


A situação do setor público da saúde em Portugal tem-se agravado como consequência das dificuldades crescentes que enfrenta o SNS sujeito à ditadura do défice orçamental e da política de proteção dos grandes grupos de saúde privados. Os dois gráficos seguintes, com dados da OCDE (“Health at a Glance”), revelam uma realidade preocupante, a saber: enquanto em Portugal a parcela da riqueza criada (PIB) aplicada na saúde dos portugueses diminuiu entre 2006 e 2017, na União Europeia sucedeu precisamente o contrário; em média aumentou sendo já superior à do nosso país.

Gráfico 1- A despesa com saúde (publico + privada) em percentagem do PIB, em Portugal e nos países da União Europeia em 2006(PT) ou 2007 – “Health at a Glance- 2010


Em 2006, a despesa total (pública+ privada) em Portugal representava 9,9% do PIB, enquanto a média na União Europeia era de 8,3% do PIB, ou seja, menos 1,6 pontos percentuais.

Gráfico 2- A despesa com saúde (publico + privada) em percentagem do PIB, em Portugal e nos países da União Europeia em 2017  “Health at a Glance- 2018


Mas em 2017, a parcela da riqueza criada no nosso país (PIB) destinada à saúde dos portugueses diminuiu para 9% do PIB (em 2006, era 9,9%), enquanto a média da União Europeia aumentou para 9,6% (em 2007, era apenas 8,3% do PIB). No período 2006/2017 verificou-se em Portugal um retrocesso, enquanto nos países das U.E, registou-se precisamente o contrário, ou seja, investiram na saúde dos seus nacionais uma percentagem maior da riqueza criada. E tenha presente que uma redução de 0,9% do PIB na parcela aplicada na saúde, que foi o verificada em Portugal entrre2006/2017, corresponde atualmente no nosso pais a menos 1.800 milhões € para a saúde.

A REDUÇÃO NA SAÚDE NÃO FOI MAIOR PORQUE A DESPESA COM SAÚDE SUPORTADA PELAS FAMILIAS CRESCEU MUITO NESTE PERÍODO

O quadro 1, com dados da Conta Satélite da Saúde do INE, mostra que no período 2000/2018 a despesa com saúde suportada pelas famílias em Portugal cresceu muito mais do que a despesa pública com a saúde dos portugueses (SNS+ Serviços Regionais dos Açores e Madeira).

Quadro 1- Despesa corrente com saúde em Portugal – 2000/2018- INE


Entre 2000 e 2018, a despesa total corrente com a saúde aumentou  no país em 70,5% segundo o INE, mas a despesa corrente do SNS e dos Serviços Regionais de Saúde dos Açores e da Madeira subiu apenas 66,2%. Como consequência a despesa com saúde das famílias aumentou 86,7%, ou seja, mais 20,7 pontos percentuais que a subida na despesa pública.

O aumento verificado na despesa publica com a saúde dos portugueses nem foi suficiente para compensar o aumento de preços. Se consideramos o período 2010/2018, e deduzirmos aos valores de 2018 o efeito do aumento dos preços verificado neste período, ou seja, se calcularmos os valores de 2018 a preços de 2010, concluímos que, a preços de 2010, a despesa corrente total de 2018 foi inferior à de 2010 em -5,7%; a despesa do SNS e dos Serviços Regionais de saúde de 2018 foi inferior à de 2010 em -9,4%, mas as das Famílias aumentou em +5,1%. Como consequência do subfinanciamento cronico do SNS e dos Serviços Regionais as famílias portuguesas têm sido obrigadas a suportar uma parcela crescente da despesa  com a saúde. Esta é a verdade que os números oficiais do INE revelam.

Como consequência a percentagem da despesa das famílias com saúde na despesa total de saúde é em Portugal muito mais elevada que a média da U.E. como revela o gráfico 3.

Gráfico 3- A despesa das famílias em percentagem da despesa total com saúde nos diferentes países – Portugal: 28%; U.E.: 18% – Fonte:“Health at a Glance- 2018


Segundo a OCDE, em 2016, a percentagem que a despesa das famílias com a saúde em Portugal representava do total da despesa corrente com saúde (28%) era superior em 55,6% à média dos países da União Europeia (apenas 18%). Esta é uma realidade que os discursos oficiais procuram ocultar mas que é importante conhecer.

O SUBFINANCIAMENTO CRÓNICO, QUE GERA MÁ GESTÃO E PROMISCUIDADE PÚBLICO-PRIVADO ESTÁ A DESTRUIR o SNS. A NECESSIDADE DE INTRODUZIR UMA “NORMA TRAVÃO”

O gráfico 4, construído com dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde aos deputados aquando do debate dos orçamentos do Estado, dá uma ideia clara da dimensão do subfinanciamento crónico do SNS pelo Orçamento do Estado.

No período 2010/2019, a despesa do SNS somou 94.769 milhões €, mas as transferências do Orçamento do Estado para o SNS foram apenas 88.277 milhões €, ou seja, menos 11.492 milhões €. A diferença foi coberta com receitas das taxas moderadoras, com serviços prestados pelo SNS a entidades privadas e com uma enorme divida.

No entanto, a verdadeira dimensão do subfinanciamento crónico do SNS ainda não é verdadeiramente revelada pelos dados do gráfico anterior, pois uma parte das transferências feitas em cada ano não são para  pagar os gastos desse ano, mas sim para amortizar a enorme divida do SNS que transita de ano ara ano. Só uma conta baseada no princípio contabilístico designado por “especialização do exercício” é que permite fazer a uma verdadeira avaliação do subfinanciamento do SNS verificado em cada ano.

O “Relatório e Contas do Ministério da Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde de 2018”, recentemente divulgado, inclui  as Demonstrações de Resultados do Serviço Nacional de Saúde feitas com base nos principio da “especialização dos exercícios, em que se imputa a cada ano os rendimentos e os gastos que dizem respeito apenas a esse ano.

E segundo as contas desse Relatório, em 2017, os prejuízos reais do SNS foram de  345,6 milhões €,  e, em 2018, os prejuízos reais subiram para 848,2 milhões € (+145,4%) ou seja, neste ano os gastos reais foram superiores aos rendimentos deste ano em 848,2 milhões € (um aumento de 502,6 milhões € de prejuízos num único ano). Não há SNS que resista assim.

É precisamente da Demonstração de Resultados e do Balanço do SNS desses anos( págs. 49, 50, 51 do referido Relatório) que retiramos os dados que constam do quadro 2 que a seguir se apresenta para que o leitor possa ficar com uma informação mais clara da gravidade da situação.

Quadro 2 – Dados da Demonstração de Resultados e dos Balanços do SNS referentes aos anos 2017 e 2018 apurados com base na “especialização dos exercícios”- Contabilidade Patrimonial


Entre 2017 e 2018, as transferências reais do Orçamento do Estado para o SNS destinadas a pagar os gastos desses anos, e não as dividas acumuladas do passado, diminuíram, a preços correntes em 51 milhões € (-0,6%), pois passaram de 8.866,2 milhões € para 8.815,1 milhões €. E  se se incluir os rendimentos que tem como origem as taxas moderadoras e a prestações de serviços a outras entidades (por ex. seguradoras) o aumento de rendimentos, entre 2017 e 2018, foi apenas de 0,9% pois passaram de 9.178 milhões € para 9.257,5 milhões e, como mostra o quadro.

Enquanto isto sucedeu em relação aos rendimentos (receitas na linguagem comum), os principais gastos reais do SNS (Mercadorias e Matérias consumidas, Fornecimentos e serviços externos, e gastos com Pessoal) aumentaram em 5,7%. Só estas três rubricas de despesa do SNS aumentaram, entre 2017 e 2018, em 533,6 milhões € , mas o SNS tem mais gastos daí que os prejuízos do SNS tenham atingido, em 2018, 848,2 milhões €. Esta realidade grave, e suas consequências, foi ignorada no debate e aprovação da nova Lei de bases da saúde, pois não se encontra nela  qualquer medida concreta para por um travão à destruição que o SNS está ser sujeito por esta via, a não ser bonitas declarações de intenções esperando que os governos as oiçam.

A NECESSIDADE DE INTRODUZIR NA LEI DE BASES DA SAÚDE UMA “NORMA TRAVÃO” QUE IMPEÇA O SUBFINANCIAMENTO CRÓNICO DO SNS

Em percentagem da riqueza criada anual no país (PIB) a parcela transferida para o SNS através do Orçamento do Estado tem variado de ano para ano.

Quadro 3 – Transferências do Orçamento do Estado para o SNs em percentagem do PIB nominal


Como se conclui rapidamente, as transferências do OE para o SNS, em percentagem do PIB nominal, têm variado de ano para ano de acordo com o arbítrio dos sucessivos governos. E tenha-se presente que nas percentagens anteriores estão incluídas uma parcela para pagar a enorme divida do SNS que tem passado de ano para ano como revela o gráfico seguinte.

Gráfico 5– Evolução da divida e pagamentos em atraso (mais de 90 dias) do SNS


Para acabar com o arbítrio dos governos, que têm utilizado o SNS como instrumento para reduzir o défice orçamental a zero, destruindo-o, defendemos a introdução  na lei de bases da saúde de uma norma,  que designamos por “norma travão ao subfinanciamento crónico do SNS”, que poderia ter a seguinte redação: “as transferências do OE para o SNS para fazer face aos gastos de cada ano não podem ser inferiores a 5% do valor do PIB nominal desse ano”.

Se se tivesse sido introduzido na nova Lei de Bases da Saúde, como na altura defendemos esta a “norma travão( propusemos esta norma à comissão presidida pela Dra. Maria de Belém e aos diversos partidos mas nem a comissão nem nenhum partido se mostrou interessado em debater e defender esta questão vital para a defesa do SNS). O que ficou na nova lei de bases da saúde não dá garantia nenhuma que o subfinanciamento cronico do SNS não continue pois o que consta do nº3 da Base 23 da Lei de bases da saúde é apenas o seguinte: “O financiamento  deve permitir que o SNS seja dotado dos recursos necessários ao cumprimento das suas funções e objetivos” . Não há um financiamento mínimo assegurado, tudo fica dependente da boa vontade e do arbítrio dos governos, e a experiência já mostrou de uma forma cabal que são más conselheiras. A vontade de Mário Centeno de reduzir a zero o défice orçamental e assim brilhar em Bruxelas para assegurar uma carreira internacional vai continuar a imperar embora à custa da destruição dos serviços públicos, de que o SNS é uma parte essencial.

Se essa “norma travão” já existisse, em 2017, o SNS teria recebido do Orçamento do Estado mais 931,2 milhões € e, em 2018, mais 1.379,7 milhões €. Desta forma acabar-se-ia com o subfinanciamento cronico a que o SNS tem sido sujeito a longo dos sucessivos governos para reduzir o défice orçamental. Neste aspeto fundamental para a defesa do SNS a nova Lei de bases da saúde de 2019 (Lei 95/2019) nada acrescentou de novo, não acrescentado nada de concreto.

O AUMENTO DO NÚMERO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DO SNS, A PROMISCUIDADE PÚBLICO-PRIVADO, O FINANCIAMNETO DOS PRIVADOS E A BAIXA PRODUTIVIDADE E A MÁ GESTÃO.

O número de profissionais de saúde tem aumentado como revelam os dados da DGAEP constantes do quadro seguinte:

Quadro 4- Variação do numero de profissionais de saúde no período 2011-2019


Entre 2011 e 2019, o número de profissionais de saúde nas Administrações Públicas, inclui SNS e Serviços Regionais de Saúde,  aumentou em 9.735, sendo apenas 32 durante o governo PSD/CDS e 9.703 no governo PS. Os profissionais que mais aumentaram foram os médicos – 5.466 – sendo 3601 durante o governo PS.

No entanto, as suas condições de trabalho e de vida agravaram-se enormemente durante este período, a começar pelos seus ganhos como se mostra no quadro seguinte, o que está a contribuir fortemente para a degradação do SNS, ignorado e não compreendido por muitos.

Quadro 5 – Variação do poder de compra dos ganhos líquidos dos profissionais de saúde no período 2009/2019


Os ganhos médios dos profissionais de saúde sofreram , entre 2009 e 2019, uma redução significativa no seu poder de compra como os dados do próprio Ministério das Finanças e da Administração Pública reconhece, o que associada à falta de carreiras e de condições de trabalho dignas, devido ao investimento insuficiente causado pelo subfinanciamento crónico, e à elevada promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde que trabalham simultaneamente no SNS e nos grandes grupos privados de saúde, situação esta causada, repito, pelas baixas remunerações e ausência de uma carreira digna e à não exclusividade, está a destruir o SNS. E na nova Lei de bases de saúde (Lei 95/2019) não se encontra qualquer medida concreta que possa por fim a esta situação já que se limita a repetir no nº3 da sua Base 29 o seguinte” O Estado deve promover uma política de recursos humanos que valorize a dedicação plena como regime de trabalho dos profissionais de saúde do SNS, podendo, para isso, estabelecer incentivos”. Mais uma vez boas intenções, mantendo tudo dependente do arbítrio do governo e, nomeadamente, do seu ministro todo poderoso das Finanças.

Para que se posa ficar com uma ideia da verdadeira situação do SNS nesta área vital para o seu bom funcionamento e para prestação de serviços de saúde de qualidade à população, que o governo e, nomeadamente, Mário Centeno e António Costa pretendem ocultar referindo apenas o aumento do numero de profissionais, interessa transcrever (saber) o seguinte:

  • 70% dos especialistas não estão em dedicação exclusiva. No caso os médicos hospitalares, a presença intermitente é ainda maior e chega aos 80%. A todos estes profissionais sem exclusividade é permitido trabalhar em simultâneo no privado e trocar as horas extras nas Urgências das suas unidades por outras que pagam mais à tarefa, incluindo no SNS. O objetivo de dar resposta aos portugueses continua a falhar.
  • Segundo a Administração Central do Sistema de Saúde, apenas 5587 especialistas estão em exclusivo, isto é, 30% do total de médicos no SNS em 2018 (18.835).
  • Nos hospitais são somente 2504, 20% deste sector (12.448). Mesmo que os médicos queiram trabalhar só no Estado não podem fazê-lo.
  • A figura laboral da dedicação exclusiva foi retirada da Saúde em 2009 porque era cara”.
  • No Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS de 2018, no quadro 6 da pág. 56, refere-se que 9.191 médicos têm contratos a prazo ou a termo certo.

A acentuada promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde, em relação à qual  ninguém tem a coragem de tomar medidas concretas para a eliminar, devido a ausência de remunerações, carreiras e condições de trabalho dignas, está a contribuir para a baixa produtividade que se verifica no SNS e, consequente, destruição, apesar do esforço de muitos dos seus profissionais.

Associado a isto, o SNS enfrenta graves problemas de má gestão que resultam não só do subfinanciamento crónico e do forte endividamento,  mas também da interferência diária e permanente do Ministério das Finanças na sua gestão, da falta de autonomia e de responsabilização, e da nomeação pelo governo de administrações, em que em muitos casos não impera o critério de competência mas fundamentalmente o de fidelidade e obediência ao governo, que está também a contribuir para o agravamento das suas dificuldades e para a explosão do negócio privado da saúde..

Situação semelhante também se verifica  mesmo em entidades que não são financiadas pelo Orçamento do Estado como acontece com a ADSE, financiada fundamentalmente com os descontos dos trabalhadores e aposentados da Função Publica (mais de 600 milhões €/ano)onde o Ministério das Finanças impede o seu alargamento aos trabalhadores com contratos individuais de trabalho (cerca de 100.000), onde se verifica a interferência diária na gestão corrente por parte do Ministério de Mário Centeno, através dos dois membros nomeados pelo governo para o conselho diretivo, onde as dificuldades colocadas à contratação de trabalhadores para poder prestar melhores serviços aos beneficiários e controlar com eficácia a fraude é permanente e onde, em troca, chega o Ministério das Finanças impõe à  ADSE que lance concursos para “comprar horas de trabalho” a empresas de trabalho temporário pagando apenas 4,77€/hora, aos quais nenhuma empresa concorre, mas que servem para adiar a resolução do problema, contribuindo assim para a degradação da ADSE e insatisfação dos beneficiários que afinanciam. Tudo isto acontece no Portugal atual.

No contexto do SNS, o problema da exclusividade dos profissionais de saúdeos profissionais de saúde devem ter a liberdade de escolher em trabalhar no SNS ou nos grandes grupos privados de saúde, mas o que não se pode permitir é que trabalhem simultaneamente nos dois  devido à promiscuidade e baixa produtividade que isso determinaé uma questão vital para a defesa do SNS. A posição perante esta questão define quem verdadeiramente defende o SNS e quem, embora em palavras diga defender, está na pratica a contribuir para a sua destruição. ´A promiscuidade publico- privada dos profissionais para além de contribuir para agravar enormemente as dificuldade do SNS, é também um importante instrumento de promoção e financiamento do negócio privado da saúde em Portugal e, nomeadamente, dos grandes grupos de saúde  como vamos também mostrar.

A EXPLOSÃO DO NEGÓCIO PRIVADO DA SAÚDE EM PORTUGAL, O SEU FINANCIAMENTO PELO SNS E PELOS SUBSISTEMAS PUBLICOS DE SAÚDE E A CONCENTRAÇÃO CRESCENTE NO SETOR PRIVADO DA SAÚDE QUE APOSTA, PARA SE CONSOLIDAR, NA DEGRADAÇÃO DO SNS

O negócio privado da saúde explodiu em Portugal nomeadamente nos últimos anos. Entre 2007 e 2017, o numero de hospitais privados aumentou de 99 para 114, representando neste último ano já  50,7% do numero total de hospitais existentes no país. Mas é fundamentalmente a nível dos grandes grupos de saúde, alguns deles já controlados por entidades estrangeiras, (Grupos Luz, José Mello Saúde, Lusíadas, Trofa, grupo Hospitais Privados do Algarve) que se tem verificado um enorme crescimento (explosão)  os quais têm absorvido/engolido/destruído  os pequenos e médios hospitais, assim como as policlínicas existentes, tornando os consultórios de médicos cada vez mais uma recordação/relíquia do passado, e  transformando a maiorias dos médicos e outros profissionais de saúde (incluindo os que trabalham também  no setor publico da saúde)  em autênticos “proletários descartáveis” aos quais pagam uma percentagem do preço que cobram ao cliente, ou por peça (ex. por cada operação que fazem), sem qualquer vinculo de trabalho permanente.

Esta explosão do negócio da saúde em Portugal, ou melhor, dos grandes grupos de saúde tem sido feita fundamentalmente à custa do SNS e das suas dificuldades e dos subsistemas públicos de saúde que os financiam.

Contrariamente ao que muitas vezes se pensa ou afirma, o próprio  SNS tem financiado em larga escala o setor privado da saúde e fornecido trabalhadores altamente qualificados (médicos e enfermeiros) a preços baratos sem encargos adicionais para os  grupos privados de saúde (não  têm de suportar encargos sociais nem têm de pagar subsidio de férias e de Natal). Os subsistemas públicos de saúde, nomeadamente a ADSE, têm tido também um papel fundamental na promoção dos grandes grupos privados de saúde, na medida que lhes concedem um tratamento preferencial em prejuízo dos médios e pequenos prestadores que muito dificilmente conseguem assinar uma convenção com a ADSE e que são engolidos pelos grandes grupos (como membro do conselho diretivo da ADSE eleito pelos representantes dos beneficiários tenho procurado mudar esta realidade mas em vão já que tenho  encontrado uma forte oposição dos dois membros nomeados pelo governo, que constituem a maioria do conselho diretivo)

O quadro que a seguir se apresenta, retirado do relatório e contas divulgado pelo Ministério da Saúde mostra a enorme dimensão do financiamento do setor privado de saúde pelo SNS.

Quadro 6- DESPESA CORRENTE DO SNS EM  MILHÕES €  (2018 e 2019(

Como se conclui rapidamente dos números do quadro, que são os do orçamento do SNS de 2018 e 2019, divulgados pelo Ministério da Saúde, em 2017, o SNS financiou o setor privado da saúde com 5.446 milhões €, sendo 3.726 milhões € com “Fornecimentos e serviços externos” e, em 2019, esse financiamento aumentou para 5.756 milhões €, sendo 3.922 milhões € de “Fornecimentos e serviços externos”. Só os Hospitais PPP custaram ao SNS 444 milhões em 2018 e, em 2019, essa fatura passada pelos grandes grupos de saúde ao SNS subirá para 474 milhões €, ou seja, um crescimento de 6,8%, 11 vezes superior ao aumento percentual dos rendimentos do SNS em 2019 que foi apenas de 0,6% como se referiu  anteriormente. 

Também os grandes grupos privados da saúde têm vivido e prosperado à custa dos subsistemas públicos de saúde. O quadro seguinte mostra o seu financiamento pela ADSE nos últimos anos.

Quadro 7 – A dimensão do financiamento dos grandes grupos privados da saúde pela ADSE


O quadro anterior só inclui a despesa da ADSE com o chamado Regime convencionado. Para além deste, a ADSE tem também o chamado Regime livre, com o qual gasta cerca de 150 milhões € por ano, sendo uma parte importante desta despesa também paga a estes cinco grandes grupos que dominam completam o setor privado da saúde em Portugal.

Para se poder ficar com uma ideia clara como funciona o negócio privado da saúde no nosso país, apresentam-se seguidamente dois quadros com preços de medicamentos e de próteses faturados a ADSE por diferentes prestadores privados.

Quadro 8 – Preços dos mesmos medicamentos faturados à ADSE por diferentes prestadores


As diferenças de preços nos mesmos medicamentos faturados por diferentes prestadores atingem 2950% (30,5. vezes mais) e mesmo de 5800% (59 vezes mais

Situação semelhante se verifica com os preços faturados por diferentes prestadores à ADSE pelas próteses colocadas nos beneficiários como mostra o quadro 9.

Quadro 9 – Preços das mesmas próteses faturadas à ADSE por diferentes prestadores


Aqui a diferença de preços faturados pelos diferentes prestadores chega a atingir 11.796€ para a mesma prótese. E os preços mais baixos já incluem naturalmente margens razoáveis de lucro, mas para outros prestadores essas margens ainda não são suficientes. Como o céu é o limite nos códigos abertos que aproveitam para multiplicar várias vezes as margens de lucros faturando à ADSE preços exorbitantes que são pagos com os descontos dos trabalhadores e dos aposentados da Função Pública.

É esta a forma como funciona o negócio de saúde privada no nosso país, portanto muito diferente da lógica de funcionamento do SNS, o que é até facilitado por  toda uma cultura de descontrolo que se instalou na ADSE, com a conivência dos sucessivos governos, que se está agora atentar alterar, mas que está a ser muito difícil. E isto até porque o poder de mercado destes grandes grupos de saúde é enorme o que condiciona a atuação dos dois membros do conselho diretivo da ADSE de nomeação direta do governo, que não estão interessadas em “criar problemas ao governo “, o que até é reforçado por interferência permanente e direta do Ministério das Finanças na gestão diária da ADSE, interferência que estrangula e destrói a ADSE.

Para se poder ficar com uma ideia das consequências deste descontrolo a nível da despesa permitida pelo governo e pelas sucessivas direções nomeadas por ele, interessa ainda referir que a ADSE pretende regularizar esta situação, cortando a faturação excessiva, mas a oposição dos grandes grupos de saúde é muito grande e a ameaça de rescindirem as convenções é grande se a ADSE não aceitar abdicar das regularizações, ou seja, do que foi cobrado a mais fundamentalmente pelos grandes grupos de saúde que só no período 2015/2018 já somam cerca de 60 milhões € mas que ninguém tem a coragem de cobrar e cuja cobrança é sucessivamente adiada, como acontece também agora.

O FORNECIMENTO PELO SNS DE MÃO DE OBRA ALTAMENTE QUALIFICADA E BARATA AOS GRANDES GRUPOS DE SAÚDE: outra forma de promover e financiar o negócio privado da saúde em Portugal. A necessidade de remunerações e carreiras dignas em troca da exclusividade

A promiscuidade público-privada dos profissionais de saúde que trabalham simultaneamente no SNS e nos grandes grupos privados, o que contribui também para a baixa produtividade e mesmo para a desresponsabilização que se verifica em muitas áreas do SNS, consentida e até promovida pelos sucessivos governos que se têm recusado a acordar com os representantes destes profissionais remunerações e carreiras dignas em troco da exclusividade, constitui, objetivamente, por um lado,  uma forma  importante de financiamento dos grandes grupos privados de saúde que é muitas vezes ignorada e, por outro lado, um instrumento poderoso de descapitalização e destruição do SNS.

Quem conheça a forma de funcionamento dos grandes, médios e mesmo pequenos hospitais privados sabe bem que eles funcionam com um reduzido corpo clinico próprio selecionado, que designam por “médicos e enfermeiros residentes”.

Para além destes  possuem uma enorme carteira constituída por centenas de médicos e mesmo de enfermeiros que trabalham no SNS, a quem  recorrem apenas quando têm serviço (consultas, operações etc.), e a quem pagam normalmente à peça (por ex. um preço por operação que realizam que constitui apenas uma parcela que recebem do doente) ou à percentagem (por ex. 70% do preço cobrado ao doente por uma consulta ou 20% por um TAC). Faz lembrar as antigas praças de jorna no Alentejo.

A esmagadora maioria destes profissionais do SNS não têm vínculo permanente com o hospital privado, por isso os grupos privados não têm de suportar quaisquer outros encargos para além das percentagens ou do preço pago por ato médico realizado. Não têm suportar despesas com a Segurança Social ou CGA, nem  têm de pagar subsidio de férias e de Natal, diferentemente do que sucede com o SNS. Os grandes grupos privados de saúde têm acesso a trabalhadores altamente qualificado a um preço muito baixo (trabalho barato e altamente precário) devido à existência do SNS, à ausência de remunerações, carreiras e condições de trabalho dignas causado pelo subfinanciamento crónico do SNS, à promiscuidade-publico privado dominante, e à ausência de exclusividade.

Os grandes grupos privados da saúde, é preciso ter a coragem de o afirmar com coragem e clareza, só têm conseguido prosperar, e se desenvolver da forma como tem acontecido em Portugal à custa do SNS, nomeadamente dos seus profissionais e dos seus recursos financeiros e dos subsistemas públicos de saúde, nomeadamente a ADSE. O quadro 10, que a seguir se apresenta, mostra em números a realidade parasitária nomeadamente dos grandes grupos privados da saúde em relação ao SNS, nomeadamente relativamente a profissionais de saúde.

Quadro 10- A promiscuidade público-privada está destruir o SNS: os grupos privados de saúde florescem à custa dos profissionais de saúde do SNS – FONTE: INE


Em 2017, apenas 12,9% dos médicos e 10,3% dos enfermeiros tinham um vinculo permanente com os hospitais privados, constituindo aquilo que eles designam por “corpo clinico residente”. A maioria dos restantes milhares de médicos e enfermeiros “utilizados” pelos grandes grupos privados de saúde  pertenciam à sua carteira de profissionais  mal pagos e, infelizmente, também no SNS.

Os grandes grupos privados de saúde não existiriam nem se desenvolveriam, da forma como se tem verificado em Portugal, se não existisse o SNS e também os subsistemas públicos de saúde. As dificuldades que os sucessivos governos têm criado ao SNS – subfinanciamento crónico do SNS, interferência continua na sua gestão, estrangulamento financeiro por parte do Ministério das Finanças, falta de autonomia, nomeação de administradores e de direções pouco competentes que são muitas vezes autênticos comissários políticos do governo, etc.- têm constituído um maná para os grandes grupos e para o negócio privado da saúde em Portugal. Se não se puser um travão a tudo isto a destruição do SNS continuará e progressivamente será reduzido a um SNS para pobres

A CONCENTRAÇÃO ENORME E CRESCENTE NO SETOR DA SAÚDE PRIVADA EM PORTUGAL E  ALGUMAS CONCLUSÕES FINAIS PARA REFLEXÃO E DEBATE

Tem-se assistido nos ultimos anos a uma crescente concentração no setor privado de saúde com a liquidação ou absorção pelos grandes grupos de saúde dos pequenos e médios hospitais e mesmo de poliliclinicas. Os cinco grandes grupos de saúde – Luz, José Mello Saúde, Lusidas, Trofa e Grupo Hospitais Privados do Algarves – alguns deles já totalmente controlados por grupos estrangeiros (ex.:Luz e Lusiadas) , dominam já completamente o setor privado de saúde em Portugal tendo já áreas geográficas preferenciais de atuação. E continuam a crescer rapidamente como acontece com o grupo Luz que duplicou recentemente a sua capacidade de produção nomeadamente cirurgica, com o grupo JMS que está a terminar um grande hospital em Lisboa, e com o grupo Trofa que abriu recentemnete um hospital na Amadora e uma grande Policlinica em Loures.

Os pequenos e médios prestadores privados de saúde (hospitais de Misericordias e de IPSS, policlinicas de médicos, etc.), estão a ser destruidos ou engolidos pelos grandes grupos de saúde que gozam de um tratamento prefencial junto dos subsistemas publicos de saúde (ex. ADSE), que têm as portas sempre abertas a eles, que são recebidos imediatamente e as suas exigências rapidamente estudadas tendo-se, para com eles, deferências que são recusados aos restantes prestadores privados de saúde num claro tratamento desigual. E em tudo isto os beneficiários, que financiam a ADSE;  acabam também por serem prejudicados pois o acesso a cuidados de saúde, financiados pela ADSE, é dificil em muitas regiões do país devido à recusa em se assinar convenções com os pequenos e médios prestadores locais (exs: hospitais das Misericórdias e de IPSS e Policlinicas de proximidade).

É toda esta cultura e esta gestão de subordinação, submissão e preferencia e desigualdade de tratamento mais favorável  em relação aos grandes grupos de saúde que contribui para o seu desenvolvimento, que descapitaliza o SNS dos seus melhores profissionais, que ´e urgente alterar

Os grandes grupos privados de saúde estão a apostar numa maior degradação do SNS, ou pelo menos na incapacidade ainda maior do SNS para satisfazer as necessidades em saúde dos portugueses e num maior dominio dos susbsistemas publicos de saúde para continuar o seu forte crescimento e consolidação. Se não acreditassem nisso não fariam os enormes investimentos que realizaram e continuam a fazer. O negócio privado da saúde está-se a transformar no maior negocio do sec. XXI em prejuizo da população e, nomeadmente, da maioria da população que não tem dinheiro para pagar uma saúde cada vez mais cara, com o apoio do Estado (SNS, ADSE, etc.)..

A defesa do SNS, uma das mais importantes conquistas de Abril, é fundamental para todos os portugueses, o que passa, a meu ver, por um financiamento seguro, certo e  adequado, o que exige a inclusão na lei de uma da “norma travão”, por carreiras, remunerações e condições dignas para os seus profissionais, pela imposição da exclusividade aos profissionais que queiram trabalhar no SNS, pela eliminação da promiscuidade publico-privado que gera a má gestão e a redução da produtividade, por uma gestão baseada na competencia, autonomia e responsabilização, que não existe atualmente, pela eliminação do enorme outsourcing (aquisição de serviços a privados) que é uma forma de privatização do SNS, etc..

E tudo isto não se alcança apenas com declarações “bonitas” sobre a necessidade de defender o SNS e com a ausencia de normas minimas muito concretas nas leis , como acontece na nova lei de bases da saúde (Lei 95/2019), que não estabelece nada de concreto em relação a questões essenciais para a consolidação do SNS (financiamento, exclusividade, autonomia, boa gestão, produtividade, responsabização, etc,.), pois a nova lei apresentada por muitos como a salvação do SNS limita-se apenas à formulação de bons principios, não estabelecendo nada concreto, deixando tudo ao arbitrio de cada governo.

Não é assim, a meu ver, que se defende verdadeiramente o SNS. O futuro o dirá.