Artigo de Nuno Serra.
A propósito das diversas propostas para combater o fosso salarial obsceno em muitas empresas, o Expresso desafiou o sociólogo Renato Carmo e o economista Pedro Martins (ex-secretário de Estado da Economia na anterior maioria de direita), a responder à seguinte questão: «Deve o Estado penalizar grandes diferenças salariais nas empresas?».
Não resistindo a um truque clássico, que consiste em colocar os termos do debate ao nível do absurdo para que possa não parecer absurdo o que se defende, Pedro Martins começa a sua resposta por questionar «porque é que as empresas não pagam o mesmo salário a todos os trabalhadores». Isto é, desviando-se do que o Expresso perguntou – pelas «grandes diferenças salariais» – para poder defender a ausência de penalizações às empresas que as pratiquem.
Embora se desconheça a verdadeira dimensão do problema, uma vez que não existe informação publicada sobre quantas vezes o rendimento nos níveis de topo supera o salário médio na generalidade das empresas em Portugal (um dos países mais desiguais da Europa, como bem lembra Renato Carmo), vale a pena recuperar o que se passa no universo das grandes empresas cotadas no PSI-20 (com dados trabalhados a partir daqui e daqui).
De facto, nas 17 empresas consideradas a média do diferencial entre o rendimento do dirigente máximo (CEO) e o salário médio dos trabalhadores é de 32 vezes mais em 2018, estando este rácio a acentuar-se desde 2014 e a retomar a dinâmica registada até 2013, tornando evidente a tendência de maior crescimento dos salários de topo face à média salarial. Mais concretamente, verifica-se que entre 2010 e 2017 «os presidentes-executivos (CEO) das empresas cotadas do PSI-20 ultrapassaram o período do resgate da troika com um aumento salarial de 49,7%», enquanto «os trabalhadores perderam 6,2%» do seu rendimento. Por outro lado, as discrepâncias observadas entre as diferentes empresas são abissais, posicionando num extremo a Jerónimo Martins (com um rendimento do CEO 160 vezes superior à média dos salários dos trabalhadores) e a Ramada (em que esse diferencial é de apenas 4 vezes mais).
Ou seja, dados que obrigam a questionar, entre outros, o argumento (esgrimido por Pedro Martins) de que «a distribuição de salários dentro de uma empresa reflete, em grande medida, as competências dos seus trabalhadores». De facto, como explicar que tal justifique diferenças tão abissais entre empresas e entre salários? E como explicar alterações expressivas desse diferencial ao longo do tempo numa mesma empresa? Como garantir que se está apenas perante o angélico jogo de oferta e procura, excluindo o efeito de práticas deliberadas de dispersão salarial obscena, ao arrepio até dos níveis de qualificação? Como justificar, em suma, que o rendimento de um CEO possa ser em média 32 vezes superior – sublinhe-se, 32 vezes superior – ao salário médio praticado numa empresa?
Talvez a questão seja de facto outra, significando a rejeição de qualquer mecanismo de penalização das situações de disparidade salarial excessiva uma espécie de defesa da «economia do pingo» à escala da empresa, mimetizando a política de baixos salários e do «empobrecimento competitivo». Isto é, a lógica imposta, em diversas frentes, pelo anterior governo de direita, de que Pedro Martins fez parte.
Publicado no blogue Ladrões de Bicicletas, 26/9/2019