Artigo de Nuno Serra.
O mesmo Cavaco Silva que no início de 2011 disse haver «limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos», exortando os portugueses a «despertarem da letargia» – e que ficou mudo e quedo quando o governo seguinte aplicou severos cortes nos serviços públicos e no rendimento das famílias – vem agora sugerir, com um governo e uma maioria de esquerda no poder, que o SNS se degradou devido à baixa do IVA da restauração. Mais precisamente, o ex-ministro das Finanças (1980-1981), ex-Primeiro-Ministro (1985-1995) e ex-Presidente da República (2006-2016) – que gosta de se apresentar como não-político (ou, no limite, como político não-profissional) – referiu ontem não poder «deixar de ligar a perda de receita, com a descida do IVA da restauração, à acentuada degradação da qualidade do Serviço Nacional de Saúde».
Para estabelecer esta relação, a raiar a demagogia, entre o IVA e o SNS, Cavaco Silva dá por adquirido que o Estado perdeu receita com o setor da restauração e que o SNS ficou privado do correspondente montante. Sucede, porém, que é mesmo muito difícil falar em «prejuízo», para o Estado, no caso da redução do IVA da restauração (dada a criação de emprego no setor e o consequente aumento das contribuições para a Segurança Social e redução da despesas com prestações de desemprego, como se demonstrou aqui). E, mais difícil ainda, acusar o atual Governo de desinvestir em Saúde (ao contrário do que fez o anterior, com o inequívoco apoio do ex-Presidente da República). De facto, pode discutir-se se o esforço de recuperação do SNS (financeiro e em recursos humanos) é suficiente para dar resposta ao aumento da procura (mais consultas e cirurgias). O que não é sério é sugerir que houve uma redução orçamental do setor nos anos mais recentes.
Curiosamente, o pensamento económico em que assenta a manhosa relação de causalidade estabelecida por Cavaco Silva parece estar em perfeita sintonia com as medidas de regresso à austeridade punitiva recentemente propostas por Joaquim Miranda Sarmento, porta-voz de Rui Rio para a área de finanças públicas: regresso das 40 horas na função pública, reposição do IVA da restauração em 23%, alargamento na base de incidência do IRS (de modo a incluir as famílias mais pobres) ou a cobrança de 500€ de IRC para empresas que apresentem prejuízos, entre outras. Isto é, não só o PSD parece não ter extraído nenhuma lição sobre os reais impactos da «austeridade expansionista» como temos Cavaco Silva, o não-político, de novo em campanha.
Artigo publicado no blogue Ladrões de Bicicletas.