Artigo de José Belmiro Alves.
Introdução
Neste artigo tentei aclarar a urgente necessidade de nos órgãos de polícia criminal (doravante designado OPC) que por razões de ordem legal commumente se encontram associados ao combate ao fenómeno da contrafacção, imitação e uso ilegal de marca[1] como a Polícia de Segurança Pública (abreviadamente designada por PSP), a Guarda Nacional Republicana (doravante designada por GNR), a Autoridade Tributária e Aduaneira (abreviadamente designada por ATA), a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (doravante designada por ASAE)[2] e a Polícia Judiciária (abreviadamente designada por PJ) haver uma clara mudança no que tange à contrafacção de roupa, e de calçado, de marca dado o dispêndio de recursos financeiros e humanos de que são alvo os OPC intervenientes, as suas ramificações transnacionais ao crime organizado, ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Palavras-chave: Crime de Contrafacção, financiamento ilícito de estruturas criminosas e os vários Órgãos de Polícia Criminal implicados no seu combate, branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
O combate ao crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca[3] e venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigo[4] em território nacional externalizado.
É sabido que o crime de contrafacção[5] é no actual momento uma das formas de financiamento das organizações criminosas transnacionais[6] dadas as amplas áreas onde se poderá comercializar ilegalmente quase tudo, estendendo-se essa prática ilegal desde a saúde pública, segurança alimentar, propriedade industrial, ambiente e segurança, aos produtos relacionados com o ramo automóvel, químicos, pesticidas, electrónicos, componentes eléctricos, alimentos, medicamentos, tabaco e produtos domésticos, que abrem as portas a um infindável mundo de ameaças com repercussões incalculáveis no meio ambiente, no sector alimentar, na área da saúde pública e nas economias mundiais.
Segundo Ana Ferro[7]:
«[…] a estabilidade e permanência da associação, a composição mínima de três membros, a estruturação empresarial e hierárquica, o fim de perpetração de infrações penais para a consecução do objetivo prioritário de lucro e poder, a conexão estrutural ou funcional com o Poder Público ou com algum (ns) de seus representantes para a garantia de impunidade […], a penetração no sistema econômico via formação de um mercado econômico paralelo e infiltração no mercado econômico oficial, a grande capacidade de prática de fraude difusa, o considerável poder de intimidação, o uso de instrumentos e recursos tecnológicos sofisticados, o cultivo de valores compartilhados por uma parcela social, a territorialidade, o estabelecimento de uma rede de conexões com outras associações ilícitas, instituições e setores comunitários e a tendência à transnacionalidade.»
Corantes tóxicos e produtos químicos dispensados ilegalmente e poluição do ar não regulamentada são apenas algumas das maneiras como a falsificação pode contribuir para danos ambientais (United Nations Office on Drugs and Crime 2012).
Outro dos contextos de elevada gravidade é a contrafacção de peças sem certificação aeronáutica para a aviação civil e militar, área onde apesar de todo o rigor imposto pelos estados, através de legislação severa, tem sido um alvo muito apetecível. Segundo a revista defesanet[8]:
«Um grande número de aparelhos eletrônicos chineses falsificados está sendo usados em equipamentos militares americanos. A informação foi divulgada em um relatório do Senado americano. O documento trata de uma investigação realizada ao longo de um ano. Durante esse período, o Comitê do Senado das Forças Armadas descobriu que um total de 1.800 peças falsificadas foram usadas em aeronaves militares americanas. Das mais de 1 milhão de peças tidas como suspeitas, cerca de 70% teriam vindo da China, de acordo com o relatório. O problema foi atribuído às limitações da rede de abastecimento de peças existente nos Estados Unidos e ao fracasso chinês em conter seu mercado ilegal» (Revista Defesanet, 2012).
Como se poderá observar o crime de contrafacção contribui em larga escala para o aparecimento de um sistema económico subterrâneo que distorce a concorrência com graves consequências na confiança dos operadores económicos e nos possíveis investimentos empresariais cada vez mais sujeitos a factores exógenos às tradicionais fronteiras dos estados.
Com o fenómeno globalização em marcha galopante, os mercados, quer nacionais, quer globais, vêem-se em grandes dificuldades para conter o uso que as organizações criminosas fazem do crime de contrafacção como fonte de rendimento para financiamento das mais diversas actividades ilegais como por exemplo o tráfico de armas e o terrorismo para os quais não existem obstáculos legais ou terrestres.
Os responsáveis políticos entraram no século XXI sem terem noção dos perigosos desafios com que se depararão como o terrorismo e crime organizado e o seu modus operandi assimétrico e multifacetado cujo aplacar exige dos estados elevadas somas pecuniárias em recursos humanos e materiais onde a «guerra» ao crime de contrafacção é disso um exemplo dado as organizações criminosas fazerem dos lucros daí provenientes a sua fonte de financiamento de grupos terroristas, aquisição de estupefacientes e de armas para serem inseridos no circuito mundial das actividades ilícitas.
Os grupos criminosos cedo perceberam que o crime de contrafacção é na maior parte dos países visto como uma actividade «inofensiva» a que as autoridades desses países dão pouca importância em termos de dignidade penal, crime «aceite» pela grande generalidade da população, e como tal em vez de recorrerem a outras fontes de rendimento como por exemplo o crime de receptação, o furto de veículos de gama alta, roubo de bancos, de ourivesarias, de obras de arte, entre outros, muito filtrados pelas autoridades policiais, sendo Portugal um «paraíso» ao contrário da Espanha onde o crime de contrafacção é reconhecido como fonte de financiamento de actividades ilícitas como o terrorismo o que permite às autoridades espanholas um maior raio de acção no seu combate como por exemplo o arresto imediato dos bens do contrafactor.
Em Portugal o crime de contrafacção é um crime semipúblico[9] o que coloca muitos obstáculos a um mais efectivo combate desde logo com a questão do exercício do direito de queixa por parte do lesado, muitas vezes fora de Portugal e sem representante legal em território nacional, o dispendioso emprego de recursos humanos e materiais em investigações para no fim haver acordo entre as marcas e o contrafactor pelo que as autoridades policiais optam por fazer este tipo de crime como complemento à estatística interna.
Portugal é a segunda maior porta de entrada de droga[10], armas e tabaco na Europa e também epicentro de redes de contrafacção[11] ou seja uma plataforma logística de vital interesse geoestratégico para interesses assimétricos que poderá de certa forma explicar o porquê da não ocorrência de ataques em território português à semelhança do restante continente europeu.
A comercialização de calçado, vestuário e acessórios, tem sido o forte dos produtos ilegalmente transaccionados e a actividade ilícita mais conhecida pelo público em geral mas que nos últimos anos a par tem surgido a negociação ilegítima de bens em áreas tão diversas como a farmacêutica, cosmética, informática, produtos vínicos, brinquedos e jogos, artigos de joalharia e relojoaria, indústria discográfica, pesticidas, baterias, pneus, suplementos alimentares e acessórios para automóveis, o que só por si evidencia a perigosidade o uso humano diário, além das perdas monetárias que só para Portugal rondam os 1.013 milhões de euros ou seja 8,2% das vendas directas nacionais são perdidas com prejuízo agravado em 16441 postos de trabalho a menos segundo dados do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (doravante designado EUIPO)[12].
No que tange à União Europeia (abreviadamente designada EU) ainda segundo dados do EUIPO as perdas cifram-se em 60 mil milhões de euros ou 7,5% das vendas no espaço europeu.
Estendendo a actividade ilícita para além das fronteiras da EU a nível mundial há uma preocupante falsificação de marcas como a Cartier, Polo Ralph Laurent, Hermès, Nike, Adidas, Apple, Lipitor (medicamento), marca de tabaco Samsun (Turquia), SuperMatch (Quénia), fármacos denominados Viagra, Tamiflu, Cialis, entre outras.
Esta «indústria» vale 462 mil milhões de dólares com 67% de origem na China e alvos predilectos de primórdio americano segundo mais uma vez o EUIPO.
De entre os vinte e oito estados membros da UE, a Alemanha, a Itália e o Reino Unido são os países mais prejudicados com perdas anuais 58,9 mil milhões de euros e 434,7 mil postos de trabalho com um nítido aumento quanto à diversificação de produtos[13].
Enorme tem sido o perigoso aumento da falsificação na área alimentar ao envolver produtos como o queijo, leite, carne, azeite, mel e café, segundo Larry Olmsted no seu livro intitulado Comida verdadeira/ Comida falsa «há alimentos que são recorrentemente embalados e vendidos de forma falsificada em supermercados e restaurantes».
O ponto de partida de entrada na UE dos bens contrafeitos são Hong Kong, China, Emirados Árabes Unidos, Grécia e Síria, sendo a China o maior promotor dessa «indústria» segundo mais uma vez o EUIPO.
É uma «indústria» que acarreta prejuízos só no espaço europeu avaliados em 28% do emprego e 42% do PIB da EU e 5,7 biliões de euros em transacções comerciais com incalculáveis perdas para as indústrias cuja actividade se encontra associada aos direitos de propriedade intelectual, segundo a EUIPO.
Apesar dos esforços através da criação do Grupo Anti Contrafacção[14] (doravante denominado GAC) em que se junta ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (abreviadamente designado INPI) a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, a Polícia de Segurança Pública (designada PSP), a Guarda Nacional Republicana (em diante designada GNR), a Polícia Judiciária (doravante designada PJ), a Autoridade Tributária e Aduaneira (agora designada AT), entre outros, continuamos a ter em Portugal «transacções comerciais» no sector do vestuário e calçado no valor de anual de 342 milhões de euros, nos medicamentos no valor de 269 milhões de euros, nos produtos cosméticos no valor de 129 milhões de euros, vinhos e bebidas espirituosas no valor de 60 milhões de euros e Smartphones no valor de 73 milhões de euros, de acordo com o EUIPO, pelo que é um pouco estranho não estar ainda associado ao branqueamento de capitais em termos legais.
Se aos valores em causa somarmos os constatados na restante EU verificamos que algo não está a correr bem no que toca à estratégia implementada no combate à contrafacção seja na fabricação, seja na comercialização, seja na distribuição, seja na importação, seja na exportação, pelo que os responsáveis políticos europeus deveriam debruçar-se sobre este tumor dado que já se metastizou com repercussões incalculáveis no actual cenário global, uma perigosa ameaça económica para as sociedades objecto dos mais diversos tipos de comércio vulnerável ao crime transnacional.
Dentro dos actuais cenários dantescos que são os mercados mundiais poderemos asseverar que, entre outros, o crime de contrafacção poderá ser tido como transnacional uma vez que, entre outros aspectos, se encontra em simbiose com, por exemplo, o branqueamento de capitais ou lavagem de dinheiro o que leva a que os fluxos comerciais tenham perdido a noção de espaço, de território e de identidade, como diria Carlos Pacheco[15] «os limites da realidade foram esbatidos; tudo é contraditório e nebuloso […]».
O século XXI será o período de grandes mudanças para os estados quer pela insegurança trazida pelas alterações climáticas, quer pelas crises na área alimentar, quer pela acentuação das diferenças religiosas que mergulharão o mundo no contraditório e no nebuloso, quer pela incapacidade dos estados em fazer face ao crime organizado uma vez que muitos dos recursos são desviados para zonas de tensão e conflito como o mundo árabe e islâmico como a actual intervenção dos Estados Unidos e da França na Síria quando a Europa se encontra embrulhada numa grave e crescente crise social motivada pela entrada abrupta de refugiados auxiliados por redes de crime organizado que a par «negoceiam» também na falsificação de vários produtos e com isso conduzir ao enfraquecimento dos estados.
Como afirma Pedro Pezarat Correia:
«[…] a segurança é condição básica da prosperidade, isto é, não se constrói prosperidade sem segurança, mas também jamais se atingirá uma segurança estrutural que não tenha por base a prosperidade»[16].
Os estados assentam qualquer das suas acções na questão económica e por esse motivo é que cabe a quem tem responsabilidades políticas, a par de outras personagens com funções dirigentes em organismos policiais, raciocinar estratégias na área da segurança interna como promover as reformas necessárias de modo a dotar as estruturas policias aptas em termos de recursos humanos especializados com meios técnicos à altura da forma grave de crime organizado transnacional que é a contrafacção.
Qualquer forma actual de criminalidade não poderá ser combatida isoladamente por este ou por aquele Estado tendo toda a acção que ser concertada numa pluralidade de esforços comum a todos e muito embora haja políticas europeias no sentido de intensificar a luta contra o crime transnacional o que se observa é a falência técnica das autoridades policiais.
Este no man`s land derivado da inércia dos responsáveis europeus no que tange às políticas da UE para as questões sobre a segurança conduz perigosamente para a cada vez maior simbiose entre a criminalidade transnacional e a contrafacção como outrora o fora com outro tipo de crimes. Aliás um bom exemplo disso foi a mudança logística a que os cartéis colombianos procederam face aos cartéis mexicanos quanto ao negócio da droga passando o crime de contrafacção a ser o «centro de operações» em termos de financiamento de actividades ilícitas. O próprio Hezbollah faz uso do crime de contrafacção com o objectivo de financiar-se.
George Neff[17]:
«[…] considera que o atual sistema internacional, assente no comércio, mercados financeiros e proteção dos direitos de propriedade intelectual dos atores empresariais, em conjunto com a «manifestação disfuncional […] do declínio endémico da lei» foram dois dos principais causadores do aumento da criminalidade e insegurança política, social e económica a nível mundial.»
«O relatório do United Nation Office on Drugs and Crime25 (undoc) subdivide o crime internacional em oito tendências emergentes: cartéis de droga e tráfico de armas; grupos de criminosos que financiam atos terroristas; escravatura moderna e tráfico de seres humanos; gangs organizados em centros urbanos; cibercrime; pirataria marítima; lavagem de capitais e contrafação[18].»
Os bens ilícitos são transacionados através de rotas que utilizam o global como fronteira o que cria múltiplos problemas transnacionais à acção dos estados o que permite a grupos marginais uma latitude fora de precedentes e subsequentemente problemas de segurança interna e externa.
«Um estudo de Ganor e Wernli[19] expõe a prática da contrafação de medicamentos como um método de financiamento muito lucrativo para grupos terroristas dando como estudo de caso o envolvimento do Hezbollah na contrafação de Captagon, um medicamento usado para tratar a hiperatividade e os défices de atenção muito popular nos territórios árabes pelos efeitos de estimulante e supres sor da fome. O grupo terrorista recorre à sua já extensa rede internacional para escoa mento do medicamento contrafeito, cujo princípio ativo da fenetilina é substituído por anfetaminas podendo causar danos cerebrais, venosos e até a morte aos seus consumidores. Entre 2009 e 2012, dos milhões de comprimidos Captagon que foram confiscados na Síria, Jordânia, Iraque, Turquia, Emiratos Árabes Unidos, Dubai, Iémen e Arábia Saudita, a sua maioria seria vendida em farmácias a civis que não teriam a noção que o fármaco era contrafeito. Apesar de na UE, onde os fármacos são submetidos a uma maior regulação, o risco ser menor que nos países em desenvolvimento, o intensificar da prática de compras online por parte dos europeus tem vindo a agravar esse tipo de contrafação por diversos fatores: as compras através da internet facilitam as transações transfronteiriças; a existência de uma grave lacuna na regulação da venda de fármacos online e os grupos criminosos aproveitarem a «fachada fidedigna» da venda online para um maior escoamento dos produtos contrafeitos[20].»
De acordo com o antigo secretário-geral da Interpol Ronald Noble[21] através da contrafacção financiam-se grupos terroristas e respectivas células disseminadas globalmente pelo que não é, pelo menos no caso português, com o actual enquadramento legal, muito brando perante os desafios globais, que se fará face a movimentos criminosos transnacionais pois não é suficiente só por si o explanado no artigo 264.º do Código de Propriedade Industrial (doravante designado CPI) quer proibindo o uso ilegal de marca, quer a venda de mercadorias com marca contrafeita, no artigo 323.º [contrafacção, imitação e uso ilegal de marca] e no artigo 324.º [venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos], entre outros do mesmo diploma legal, ou o combate à contrafacção espartilhado, numa primeira fase, anos 90, solução encontrada pelos responsáveis políticos da altura, em território nacional, pela Polícia Judiciária (artigo 5.º n.º 2 alínea x do Decreto-Lei n.º 275-A/2000 de 8 de Abril) a Brigada Fiscal da Guarda Nacional Republicana (Decreto Lei n.º 230/93 e n.º 231/93 ambos de 26 de Junho), a Polícia de Segurança Pública (Lei n.º 5/99 de 27 de Janeiro, a Inspecção Geral das Actividades Económicas [actualmente ASAE] (Decreto-Lei n.º 269/-A/95 de 19 de Outubro e a Inspecção Geral das Actividades Culturais (artigo 2.º n.º 1, alínea x do Decreto-Lei n.º 80/97 de 8 de Abril).
Presentemente o combate à contrafacção em Portugal assenta no Grupo Anti-Contrafacção (mais conhecido pelo público em geral pela sigla GRA) dada a necessidade de se criar uma estrutura nacional onde se promove uma maior cooperação entre autoridades policiais e o sector privado alvo.
O GRA surgiu através da Portaria n.º 882/2010 de 10 de Setembro e resulta da colaboração do INPI, da ASAE, da AT, da GNR, da PSP e da PJ. Sendo esta a estratégia actual implementada na «guerra» contra a contrafação no território português.
Ainda na esfera nacional o crime de contrafacção é legislado em diversos diplomas nomeadamente no já mencionado CPI, no Despacho 19935/2008 referente às Unidades Flexíveis, na lei orgânica da PSP, na Regulamentação da PSP (Portaria n.º 383/2008 de 29 de Maio), na portaria referente às Unidades Orgânicas Flexíveis (Portaria n.º 416/2008 de 11 de Junho), na lei orgânica da GNR, na lei orgânica da ASAE, no Código de Processo Penal e na lei orgânica da PJ, para além dos acordos e convenções internacionais de que Portugal faz parte como Estadomembro da UE e membro da Organização Mundial do Comércio (doravante designado OMC).
Sem menosprezo por melhor opinião não me parece pela análise do quadro legal nacional que estejamos bem preparados para fazer face a um crime que envolve milhões de euros em lucros ilegais para além dos prejuízos causados aos estados.
Como disse Micaela Ferreira[22]:
«[…] multiplicidade de órgãos reguladores como é o caso da PSP, ASAE e GNR ao assumirem o papel de recolha de queixas e denúncias, fiscalização e de agentes executantes – em território nacional cria uma inoperabilidade do país para fazer face a este crime transnacional muitas vezes criticada pelas associações de comerciantes (lesados da primeira linha de ataque) que descrevem a atual estrutura legal nacional como uma «confusão reinante no setor das forças policiais». De facto, a duplicação de funções, por vezes em organizações que não estão vocacionadas para este tipo de crime, leva à perda de informação entre os vários órgãos e a um desconhecimento de qual o âmbito de atuação dos mesmos, quer da sociedade civil, quer dentro das próprias forças de segurança e reguladores […]»
A juntar ao quadro legal muito pouco preparado para enfrentar o Adamastor da criminalidade transnacional associada à contrafacção temos a «confusão reinante no sector das forças policiais».
Mais uma vez Micaela Ferreira[23]:
«De facto, a duplicação de funções, por vezes em organizações que não estão vocacionadas para este tipo de crime, leva à perda de informação entre os vários órgãos e a um desconhecimento de qual o âmbito de atuação dos mesmos, quer da sociedade civil, quer dentro das próprias forças de segurança e reguladores.»
Julgo, sem desprimor por melhor opinião, que os responsáveis políticos não saibam delinear uma estratégia capaz de aplacar, pelo menos em parte, os avultados lucros gerados pela contrafacção sem que primeiro procedam a reformas profundas nos serviços e forças de segurança e uma mudança na moldura penal do crime de contrafacção de crime semipúblico para crime público com penas mais severas, com arresto (promovido pelas autoridades policiais) directo/imediato de todos os bens e direitos patrimoniais dos contrafactores, bem como o congelamento das contas bancárias, para a esfera do Estado e condenações efectivas dos mesmos e não a suspensão provisória do processo e acordos entre marcas e infractores.
No que toca à estrutura interna das autoridades policiais envolvidas é notório que algum do trabalho nesta área é mais voltado para a estatística que propriamente para uma organização planeada com reais objectivos.
Neste sentido Leonor Chastre[24]:
«Estas notícias têm mais impacte pelo seu aspecto “folclórico”, a algazarra dos feirantes, o aparato policial, a visualização dos produtos, do que pelo crime em questão. Infelizmente, está mais que comprovado que nenhuma das actuações acima mencionadas obtém qualquer tipo de resultados visíveis, não logrando, para mais, aparentemente, sensibilizar os consumidores para os malefícios desta actividade criminosa que se vai alastrando, como uma praga, por todo o país. Refira-se a este propósito que a região do Vale do Ave continua a ser onde mais se fabrica material têxtil contrafeito, mas, com a crise económica instalada, a venda destes produtos tem vindo a aumentar, significativamente, por todo o país e a contrafacção a diversificar-se. Isto é, já não se trata só dos sectores do têxtil, da cosmética, da música ou da indústria cinematográfica, existem inúmeros outros sectores onde se verifica contrafacção, nomeadamente nos medicamentos, brinquedos, peças de automóvel, electrodomésticos, etc. Cada um mais preocupante que o outro. Para já não falar do incremento das exportações de contrafacção (sobretudo para Espanha) e das vendas on-line de tais artigos.»
Em jeito de conclusão é evidente, apesar de alguns esforços, que algo não está a correr bem no combate à contrafacção, à excepção da França, ao que parece, e basta observar o impacto a nível mundial.
Segundo Rita Mendes[25]:
«A compra de contrafações é um fenómeno de grande dimensão internacional. A Confederação Internacional de Luta contra a Contrafação estima que o volume do comércio mundial de contrafação pode variar entre 5% e 7% (International AntiCounterfeiting Coalition, 2013). Este número é semelhante ao proposto em 2004 pela Organização Mundial das Alfândegas (Organização Mundial das Alfândegas, 2004), estimando que a contrafação pode variar entre 3% e 7% do comércio mundial. De acordo com o estudo Trainer (2004), o valor das contrafações em todo o mundo pode variar de 5% a 10% do comércio mundial e em algumas indústrias pode atingir 30%. De acordo com a OCDE, o volume de comércio de produtos contrafeitos aumentou de forma constante para 250 biliões de dólares, em 2008 (OCDE, 2009). A partir deste cálculo, a Frontier Economics estima entre 770 mil e 960 biliões de dólares o comércio mundial deste tipo de produtos, em 2015 (Frontier Economics, 2011). A Câmara de Comércio Internacional observa que os custos de contrafação para os governos e consumidores nos países do G20 poderiam ser superiores a 125 biliões de dólares por ano e 2,5 milhões de empregos (International Chamber of Commerce, 2011). Dada a dimensão do problema e as consequências do problema, é oportuno identificar os fatores que o determinam a tentar agir em conformidade.»
Ainda segundo Rita Mendes[26]:
«Um documento sobre o impacto do comércio de bens falsificados e pirateados estima o valor dos bens falsificados importados em todo o mundo em 461 biliões de dólares em 2013, em comparação com as importações totais no comércio mundial, de 17,9 triliões de dólares. Até 5% dos bens importados para a União Europeia são falsificados. A maioria tem origem em países de renda média ou emergentes, sendo a China o principal produtor.»
A par dos obstáculos já mencionados junta-se o peso mundial que tem nas economias de vários países um dos pontos de origem da falsificação de produtos que é a China e que por esse motivo leva a que alguns estados como Portugal não queiram intervir claramente no problema e um dos exemplos dessa inércia é a zona da Varziela em Vila do Conde.
E prova disso são as perdas incalculáveis só para o território nacional que se estimam de acordo com Rita Mendes «em mil milhões de euros por ano e 22 mil postos de emprego, só em vestuário e calçado perderam-se 452 milhões de euros.»
Embora a protecção jurídica dos direitos de propriedade intelectual seja um dos caminhos possíveis não me parece que tenham muito impacto sobre os falsificadores uma vez que legislação portuguesa ser muito macia face aos lucros descomunais obtidos e às respectivas implicações criminógenes o que leva a pressupor que talvez a estratégia seja mais importante que enquadramentos jurídicos e convenções internacionais que muitas vezes apenas servem alguns interesses. Uma legislação vigorosa a reger a aplicação é essencial para o combate à contrafação e à pirataria, mas por si só não é suficiente (Mendes 2016, 58).
Segundo Micaela Ferreira[27]:
«A contrafação não deixa de ser um crime económico. A distinção face a outros é a amplitude das repercussões e o alcance geográfico que possui. Se, no princípio do século xxi, a mundialização deu vantagem ao proliferar do crime transnacional, hoje cabe aos estados garantirem a sua segurança através de mecanismos que não se limitam geograficamente à esfera nacional para impedir que essa proliferação se estenda e ameace o modelo de prosperidade desejado baseado na inovação. Pelas características específicas do fenómeno, os moldes do combate à contrafação claramente demonstram que a eficácia na manutenção da segurança económica – e necessariamente da segurança política e social – dos estados obriga cada vez mais a uma mais aprofundada cooperação entre estados, fomentando uma maior fluidez na distinção entre a segurança interna e a segurança externa dos mesmos. Num mundo em que o crime é, ou tende, à transnacionalidade – como no caso presente da contrafação –, é apenas lógico que o seu combate tenda ele próprio cada vez mais a adquirir uma similar qualidade.»
Referências Bibliográficas
Chastre, Leonor. Contrafacção em Portugal. Publireportagem, 2007.
Pacheco, Carlos – «Reflecting the Abysm». In The State of the World. Manchester: Carcanet e Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 3.
Correia, Pedro de Pezarat – «Política de defesa e segurança». In Estado & Cidadania. O Que Impede Boas Políticas? Lisboa: Esfera do Caos, 2007, p. 59.
Neff, George – The Global Political Economy of Development and Underdevelopment. Ottava: International Development Research Centre, 1999, p. 75.
UN Office on Drugs and Crime – The Globalization of Crime: A Transnational Organized Crime Threat Assessment, 17 de junho de 2010. [Consultado em: 19 de agosto de 2013]. Disponível em: http:// www.refworld.org/docid/4cad7f892.html.
Cf. Ganor, Boaz, e Wernli, Miri Halperin – «The infiltration of terrorist organizations into the pharmaceutical industry: Hezbollah as a case study». In Studies in Conflict & Terrorism. Vol. 36, n. º 9, pp. 699 – 712.
Cf. European Alliance for Access to Safe Medicines – The Counterfeiting Superhighway. [Consultado em: 20 de agosto de 2013]. Disponível em: http:// www.eaasm.eu/cache/downloads/dqqt3sge9hwssgcgcos440g40/455_EAASM.
Ferreira, Micaela Costa – As dimensões externas da segurança interna: Crime Transnacional, Cooperação e Prosperidade. In Revista de Relações Internacionais. Dezembro: 2013, p. 91.
Mendes, Rita Sofia Simões – Dissertação de Mestrado O Consumo de Marcas de Luxo e a Contrafação: Determinantes e Impactos Económicos. Instituto Superior de Gestão. Lisboa 2016, p. 31.
Couto, Abel Cabral (1988). Elementos de Estratégia. Lisboa: IAEM.
Manuel da Costa Andrade, a nova lei dos crimes contra a economia (Decreto-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro) à luz do conceito de «Bem Jurídico», in Direito Penal Económico e Europeu: textos Doutrinais, vol. I, Coimbra, 1998, pág. 409.
Plano Estratégico 2013-2018. Linhas de Actuação. ASAE.
Gonçalo Vieira Matias, Nuno (2006). II Colóquio de Segurança Interna. O Paradigma Estratégico Militar de Segurança Interna. ISCPSI. Lisboa.
Pousa, José Alberto (2000). Da Intendência-Geral dos Abastecimentos (1943) à Inspecção-Geral das Actividades Económicas. Capítulo IV – De 1974 a 1999. 5 – A entrada no novo milénio. Edição conjunta IGAE-Inspecção-Geral das Actividades Económicas e GEPE-Gabinete de Estudos e Prospectiva Económica do Ministério da Economia. Lisboa.
Gomes dos Santos, Marcos Olímpio. Texto de Apoio sobre o conceito de Estratégia. Évora, 2011.
Pedroso, Cor Arménio, Estudos de Direito e Segurança, volume II, ed. Almedina, coordenação de Jorge Bacelar Gouveia, Lisboa, Outubro de 2012, p. 81.
Aspirante de Infantaria, Figueiredo Almeida, Carlos Manuel (2011). Academia Militar. As Novas Tecnologias e o processo de Tomada de Decisão. Lisboa, p. 49.
Notas:
1. Artigo 323.º do Código de Propriedade Industrial (Decreto-Lei 143/2008 de 25 de Julho) consultado em http://bdjur.almedina.net/.
2. A ASAE é a autoridade administrativa nacional especializada no âmbito da segurança alimentar e da fiscalização económica, dependente do Ministério da Economia e da Inovação (MEI). É responsável “pela avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar, bem como pela disciplina do exercício das actividades económicas nos sectores alimentar e não alimentar, mediante a fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora das mesmas.”45 Resultou da extinção da Direcção-Geral do Controlo e Fiscalização da Qualidade Alimentar da Agência Portuguesa de Segurança Alimentar, I. P. e da Inspeção-Geral das Actividades Económicas, tendo operado a fusão das suas competências com as oriundas das Direcções Regionais de Agricultura, da Direcção-Geral de Veterinária, do Instituto do Vinho e da Vinha, da Direcção-Geral de Protecção de Culturas e da Direcção-Geral das Pescas. “A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal,”46 assumindo assim a função de uma polícia económica. Através do acórdão de 25 de Junho de 2007, do Tribunal da Relação de Lisboa (Guedelha, 2013: 13).
3. Artigo 323.º do Decreto-Lei n.º 36/2003 (Código de Propriedade Industrial).
4.Artigo 324.º do Decreto-Lei n.º 36/2003 (Código de Propriedade Industrial).
5. Propriedade Industrial, violação do Direito de Autor e Direitos Conexos e «pirataria informática».
6. FERRO, Ana Luiza Almeida. Crime Organizado e Organizações Criminosas Mundiais. 2009, p. 497.
7. FERRO, Ana Luiza Almeida. Crime Organizado e Organizações Criminosas Mundiais. 2009, p. 497.
8. Publicação datada de Maio de 2012 (acessado em 2018-07-02).
9. É um crime para cujo procedimento é necessária a queixa da pessoa com legitimidade para a exercer (por norma o ofendido ou seu representante legal ou sucessor). As entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar esses crimes, sem embargo de se tornar necessário que os titulares do direito de queixa exerçam tempestivamente o respectivo direito (sem o que não se abrirá inquérito). Nos crimes semipúblicos é admissível a desistência da queixa.
10. Relatório de 2008 da Agência das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC).
11. Edição do JN de 2016-12-09.
12. Edição online do Jornal Digital Dinheiro Vivo de 2018-09-10.
13. Edição online da Revista Exame de 2018-06-06.
14. Criado em Portugal em 2010.
15. Pacheco, Carlos – «Reflecting the Abysm». In The State of the World. Manchester: Carcanet e Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 3.
16. Correia, Pedro de Pezarat – «Política de defesa e segurança». In Estado & Cidadania. O Que Impede Boas Políticas? Lisboa: Esfera do Caos, 2007, p. 59.
17. Neff, George – The Global Political Economy of Development and Underdevelopment. Ottava: International Development Research Centre, 1999, p. 75.
18. UN Office on Drugs and Crime – The Globalization of Crime: A Transnational Organized Crime Threat Assessment, 17 de junho de 2010. [Consultado em: 19 de agosto de 2013]. Disponível em: http:// www.refworld.org/docid/4cad7f892.html
19. Cf. Ganor, Boaz, e Wernli, Miri Halperin – «The infiltration of terrorist organizations into the pharmaceutical industry: Hezbollah as a case study». In Studies in Conflict & Terrorism. Vol. 36, n.º 9, pp. 699 -712.
20. Cf. European Alliance for Access to Safe Medicines – The Counterfeiting Superhighway. [Consultado em: 20 de agosto de 2013]. Disponível em: http:// www.eaasm.eu/cache/downloads/dqqt3sge9hwssgcgcos440g40/455_EAASM.
21. Secretário-Geral da Interpol entre 2000 e 2014.
22. Ferreira, Micaela Costa – As dimensões externas da segurança interna: Crime Transnacional, Cooperação e Prosperidade. In Revista de Relações Internacionais. Dezembro: 2013, p. 91.
23. Ferreira, Micaela Costa – As dimensões externas da segurança interna: Crime Transnacional, Cooperação e Prosperidade. In Revista de Relações Internacionais. Dezembro: 2013, p. 91.
24. Chastre, Leonor. Contrafacção em Portugal. Publireportagem.
25. Mendes, Rita Sofia Simões – Dissertação de Mestrado O Consumo de Marcas de Luxo e a Contrafação: Determinantes e Impactos Económicos. Instituto Superior de Gestão. Lisboa 2016, p. 31.
26. Mendes, Rita Sofia Simões – Dissertação de Mestrado O Consumo de Marcas de Luxo e a Contrafação: Determinantes e Impactos Económicos. Instituto Superior de Gestão. Lisboa 2016, p. 31.
27. Ferreira, Micaela Costa – As dimensões externas da segurança interna: Crime Transnacional, Cooperação e Prosperidade. In Revista de Relações Internacionais. Dezembro: 2013, p. 93.