Mutação e metástases: uma década de crise europeia pós-2008

Artigo de Vicente Ferreira.

Comentário aos artigos de Viriato Soromenho-Marques e Ricardo Cabral


Mais de uma década depois da crise financeira de 2007-08, a recuperação na União Europeia tem sido lenta. Apesar dos sinais positivos nos números do crescimento económico, a recuperação parcial do emprego não tem sido acompanhada pelos salários, cuja estagnação surpreende as instituições internacionais.

O Employment Outlook 2018, relatório anual publicado pela OCDE, confirma a tendência de estagnação salarial e agravamento da desigualdade, apesar da recuperação registada nos níveis de emprego. O relatório conclui que apesar de no final de 2017 o número de pessoas empregadas nos países membros da OCDE ter superado pela primeira vez o nível que se registava antes da crise financeira de 2007, o crescimento dos salários não acompanha esta evolução favorável do emprego. Na verdade, os redatores do estudo referem que “no final de 2017, o crescimento dos salários nominais na OCDE era apenas metade do que era há dez anos”. A estagnação salarial afeta principalmente os países mais afetados pela crise (como Espanha, Itália ou Portugal) e os trabalhadores mal remunerados.

As interpretações sobre a recente década divergem. Paul Krugman considera que o regresso dos países europeus ao crescimento económico é a prova da recuperação, apontando o Banco Central Europeu como a instituição que “salvou” o euro, sobretudo após o célebre discurso de Mario Draghi em 2012, quando prometeu estar disposto a utilizar todos os meios ao seu alcance para manter a moeda única. A atuação do BCE, essencial para conter o “pânico nos mercados financeiros europeus”, e a “desvalorização interna”, através da compressão dos salários nestes países, teriam sido indispensáveis para a recuperação das exportações e a retoma do crescimento, levando Krugman a concluir que “a Europa está de volta ao funcionamento económico normal”.

Contudo, nem todas as análises são tão otimistas. Steve Keen tem uma opinião diferente, defendendo que a recuperação aparente das economias europeias tem sido sustentada pelo recurso ao crédito (facilitado pelo programa do BCE de compra de ativos no mercado secundário, conhecido como quantitative easing, ou QE), não sendo sustentável no longo prazo. Neste sentido, argumenta que as políticas de austeridade inscritas nos tratados europeus impedem uma verdadeira recuperação por limitarem o investimento público. Bill Mitchell vai mais longe e acusa os responsáveis europeus de tomarem “uma opção ideológica para provocar uma recessão”, baseando-se na diminuição dos índices de produção na Europa para demonstrar o impacto devastador que a austeridade orçamental tem sobre as economias.

A atuação do BCE também tem sido alvo de análises críticas. Ann Pettifor, diretora do Policy Research in Macroeconomics, escreveu recentemente que “a criação de liquidez numa escala sem precedentes, através da aquisição de títulos por parte dos bancos centrais, teve um contributo virtualmente nulo na consolidação da recuperação económica nos países onde o QE é o instrumento central da política económica (Japão, EUA e Reino Unido). Além disso, o QE não se revelou inflacionário – apesar do esforço dos banqueiros centrais e da preocupação alarmista dos economistas ortodoxos. Pelo contrário, o QE e as outras operações dos bancos centrais repuseram o valor inflacionado dos ativos detidos pela elite”.

Contudo, a conclusão do QE no final de 2018, e a consequente subida esperada das taxas de juro, pode colocar em causa a recuperação da atividade económica na zona euro e fazer reemergir problemas que apenas foram ocultados na última década. É por esse motivo que no seu recente livro Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, Adam Tooze afirma que “o cenário com que nos deparamos agora não é de repetição, mas de mutação e metástases”. Uma década de estagnação acentuou os desequilíbrios da Zona Euro e revelou a descoordenação das elites europeias.

Encruzilhadas

Num discurso sobre as perspetivas europeias na Universidade de Goethe, em Frankfurt, Jurgen Habermas confessou o receio de que a oposição alemã às reformas da UE propostas por Emmanuel Macron poderia constituir “a última oportunidade perdida” para a Europa, acrescentando que “apenas se reconhece o ponto a partir do qual não há retorno quando é demasiado tarde”. O próprio presidente francês afirmou esta semana, a propósito da contestação social mobilizada pelos coletes amarelos, que uma crise é uma “oportunidade para (…) reagir com mais força e profundidade”. Contudo, a reforma da Zona Euro que Macron anunciou durante a campanha eleitoral parece nunca ter sido uma prioridade, não tendo voltado a figurar entre as discussões sobre o futuro do projeto europeu.

No entanto, a reforma da União Europeia tem sido amplamente discutida nos últimos tempos. Ricardo Cabral e Viriato Soromenho-Marques descrevem duas das propostas de reforma institucional que reúnem maior consenso atualmente: a criação de um Fundo Monetário Europeu (FME) e o aprofundamento da União Bancária na Zona Euro. O FME, cujo desenho seria idêntico ao do FMI, não constitui uma mudança significativa em relação ao atual contexto, excetuando o facto de este passar a ser a principal instituição responsável pela execução das regras do Tratado Orçamental. Além disso, as políticas impostas como contrapartida dos empréstimos deste fundo (austeridade fiscal e liberalização do mercado de trabalho) não resolvem os problemas dos países endividados, como se tornou evidente após a última crise. A aposta na desvalorização interna num contexto recessivo apenas agrava os seus efeitos.

Quanto ao aprofundamento da União Bancária, que passaria pela “harmonização da legislação e regulação bancárias” entre os países da UE e pela “transferência dos instrumentos de supervisão e regulação dos países europeus para instituições europeias”, os autores duvidam da eficácia da medida devido a três ideias falsas: (1) a ideia de que a união bancária permite ultrapassar a necessidade de transferências entre os países, (2) a ideia da competência que se afirma pelo “músculo”, e (3) a ideia de que é positivo romper a ligação entre os bancos e o estado a que pertencem.

Nenhuma destas propostas resolve o problema fundamental da Zona Euro – a acumulação de desequilíbrios estruturais entre países com estruturas produtivas e níveis de desenvolvimento muito distintos. Estes desequilíbrios devem-se à arquitetura da moeda única, que permitiu um enorme afluxo de capitais do centro para a periferia (ao eliminar o risco cambial e tornar insignificante o risco de crédito, ou risco de incumprimento, tornando o investimento nestes países atrativo). São estes desequilíbrios que têm permitido à Alemanha construir uma indústria exportadora forte e acumular excedentes, ao passo que os países da periferia acumulam défices.

Nos últimos tempos, várias soluções têm sido sugeridas para o problema dos desequilíbrios estruturais da UE, desde a alteração das restrições orçamentais de cada estado membro (Achim Truger propõe que as despesas com investimento público deixem de contar para o cálculo do défice estrutural), ao reforço da abrangência do Orçamento Comunitário (cujo nível de despesa é manifestamente insuficiente para fazer face às assimetrias regionais da EU, como referem os autores), passando por mecanismos de mutualização de dívida (emissão conjunta de dívida para financiar investimento nos países e promover a convergência, como sugere Jörg Bibow), ou a alteração das regras de funcionamento do BCE.

No entanto, todas estas alternativas requerem esforços de coordenação macroeconómica que não parecem estar ao alcance da União Europeia, por implicarem maior partilha de riscos e maior grau de integração política entre os estados. O principal entrave às reformas é a ausência de legitimidade política da UE, que não se afirmou como projeto de desenvolvimento partilhado.

O esvaziamento dos mitos

A discussão sobre a desilusão do projeto europeu ganhou destaque com a crise financeira e com a incapacidade de resposta eficaz por parte das autoridades responsáveis. Martin Höpner, investigador da Universidade de Colónia, escreveu um artigo sobre os mitos da ‘Europa Social’. Segundo o autor, a promessa de um projeto progressista associado à integração económica à escala europeia (numa primeira fase com o mercado comum, nos anos 80, e mais tarde com a adoção da moeda única, o euro, no início do século XXI) é dificultada pela crescente heterogeneidade dos países da UE, que impossibilita a uniformização de políticas sociais. Além disso, a integração económica teve efeitos muito prejudiciais para as populações, devido às “dinâmicas destrutivas da globalização”.

Na origem destas dinâmicas estão (1) a Lei da Concorrência Europeia (proibições de apoios estatais às empresas, o que coloca entraves à participação pública em setores em que o setor privado também atua, como a banca, as telecomunicações, energia, as infraestruturas, etc.), (2) as “liberdades” do mercado comum (liberdade de circulação dos agentes de mercado, que vem associado à liberalização de atividades económicas, e que acaba por significar um aumento da concorrência fiscal entre estados-membro), (3) o orçamento comunitário, sujeito a limitações na política social que o tornam inoperante, e (4) a ideia de que a integração europeia conduziria ao reforço do Estado Social, desmentida sobretudo a partir da constituição da Zona Euro. O autor recorda ainda o papel das “intervenções da troika, arrasadoras do ponto de vista social (…) que incluem o enfraquecimento dos sindicatos e da negociação coletiva”.

Desta forma, os mitos referidos pelo autor manifestam-se numa dissonância entre o discurso inclusivo dos responsáveis europeus e as políticas concretas que acentuam as desigualdades sociais e a insegurança das populações. Vítima do esvaziamento dos seus próprios mitos, o apelo do projeto europeu tem perdido força a nível eleitoral, ao passo que os partidos que se opõem à integração europeia têm saído reforçados.

A evolução da EU nas últimas décadas parece confirmar o “triângulo das impossibilidades” proposto por Dani Rodrik no livro The Globalization Paradox. De forma simples, o autor sugeria que a democracia, a soberania nacional e a globalização eram mutuamente incompatíveis, apenas sendo possível combinar dois destes vértices, já que a existência de estados-nação cria o espaço para a descontinuidade geográfica das políticas fiscais e aduaneiras, o que é incompatível com a regulação internacional requerida pelo processo de integração.

Turbulência no horizonte

Percebe-se por isso a desorientação dos atuais líderes europeus que, incapazes de elaborar respostas para os problemas estruturais da Zona Euro, apenas conseguem estar de acordo em reforçar a aplicação das políticas austeritárias que causaram a recessão. Tal como no poema A Caça ao Snark, de Lewis Carroll, o mapa apresentado pelo Sineiro para guiar a tripulação revela-se vazio.

Se o cenário descrito é pouco promissor para o futuro da UE, as notícias dos últimos tempos não são mais animadoras. À indefinição do Brexit causada pela rejeição pelo parlamento do acordo negociado entre o governo britânico e a Comissão Europeia, juntam-se a ascensão dos partidos de extrema-direita em vários estados-membro e os anúncios dos governos de França e Itália de medidas que colocam em causa o cumprimento das regras do Tratado Orçamental. Além disso, com o fim do programa de compra de ativos do BCE é expectável uma subida das taxas de juro e um possível regresso das dificuldades de financiamento de países sobreendividados. Os próximos tempos afiguram-se turbulentos.

Sem espaço aparente para reformas progressistas e sem capacidade de resposta concertada aos desafios que enfrenta, o projeto europeu parece destinado ao fracasso. O “ponto sem retorno”, para o qual alertava Habermas, pode já ter passado.