Os outros que carreguem o fardo

Artigo de Paulo Coimbra.


Ficámos recentemente a saber que o “superávite da balança corrente da Alemanha, o saldo comercial entre exportações e importações, está prestes a atingir quase 300 mil milhões de dólares, ou 7,8 por cento do Produto Interno Bruto, o maior do mundo”.

A divisão do fardo do ajustamento entre países superavitários e deficitários é um assunto discutido há pelo menos 80 anos e não é necessário ser socialista, eurocético ou soberanista para perceber que, na impossibilidade de exportar para Marte, superávites e créditos de uns são inevitavelmente défices e dívidas de outros. Os superávites comerciais da Alemanha são um problema, escrevia, já em 2015, Ben Bernanke; a Alemanha é o maior problema da zona euro, defendia, em 2016, Martin Wolf no Financial Times.

A este propósito partilho excertos de dois textos que escrevi em Junho de 2015 e em Fevereiro de 2017.

“Em Abril de 2014, o Tesouro Americano, num dos seus relatórios semianuais sobre comércio internacional e manipulação cambial, destaca a Alemanha atribuindo-lhe especial responsabilidade pelo fraco desempenho da procura interna na Zona Euro ao mesmo tempo que afirma que o ajustamento tem estado a ser realizado sobretudo pelos países deficitários através do aumento da sua poupança interna, o que tem sido um obstáculo ao crescimento da economia global. No mesmo relatório, o Tesouro congratula-se pelo facto dos superávites alemães terem sido identificados no Procedimento relativo aos Desequilíbrios Macroeconómicos (mecanismo de supervisão e controlo destinado a prevenir e corrigir desequilíbrios macroeconómicos na UE) como um desequilíbrio que requer monitorização e obriga a correção das políticas, mas mostra-se céptico quanto à capacidade da União Europeia para produzir recomendações capazes de induzir um reequilíbrio simétrico entre os países deficitários e superavitários da zona Euro.
Cerca de um ano mais tarde, a publicação das previsões económicas de primavera da Comissão Europeia tornou claro que a descrença do Departamento do Tesouro dos EUA se justificava plenamente: a propósito da previsão de que no final de 2015 os superávites da balança corrente alemã atinjam o valor historicamente recorde de 7,9%, Pierre Moscovici, Comissário Europeu dos Assuntos Económicos, afirma que “ninguém pode negar que um há desempenho económico muito forte na Alemanha, o que não pode ser punido”. Recorde-se que o Procedimento relativo aos Desequilíbrios Macroeconómicos estatui que a Comissão Europeia deve abrir um procedimento por incumprimento sempre que um país tenha ultrapassado os limites definidos em três anos consecutivos; o superávite da balança corrente alemã está acima do limite (limite arbitrário e assimetricamente definido) desde 2013. Que aquela afirmação possa ter sido proferida por um Comissário Europeu não pode deixar de possuir um significado forte na economia política do poder na Europa.”

Revista Crítica Económica e Social (n.º 5, páginas 96 a 101)

“O paralelismo com os acontecimentos dos anos subsequentes à Grande Depressão de 1929 torna-se inevitável: num contexto de um regime monetário internacional assente no padrão ouro (regime semelhante ao Euro no que diz respeito à não existência de prestamista de último recurso e às taxas de câmbio fixas), as dificuldades da Alemanha foram enormemente agravadas pela recusa dos EUA e da França, países com excedentes nas suas balanças de pagamentos e determinados em manter as suas reservas de ouro, em prosseguir políticas expansionistas. Nas palavras de Barry Eichengreen e Peter Temin:
Com estes países [EUA e França] com balanças de pagamento excedentárias, alguém tinha de estar em déficit. Com a sua recusa em expandir, quando a Depressão eclodiu, alguém teria de contrair. Com a sua recusa em prestar auxílio financeiro de emergência, a amplitude da contração a que os países de deficitários foram submetidos tornou-se quase inimaginável. No fim as consequências políticas foram desastrosas. Agora, quando os países superavitários são a Alemanha e a China, estamos a assistir ao desenrolar de um processo similar. A Grécia compra e vende aos seus parceiros Europeus e, sobretudo, à Alemanha, país fortemente superavitário. Com a relutância da Alemanha em aumentar a sua despesa, a Grécia, desprovida de liquidez, é obrigada a deflacionar […]. O atual problema da Grécia, tal como o problema da Alemanha nos anos da década de 1930, é que cortar custos apenas torna o fardo da dívida mais pesado”.
Concluindo, se a Alemanha quer manter um lugar de parceiro responsável na comunidade das nações e, parafraseando Joseph Stiglitz, não quer ser responsabilizada por destruir a Europa uma terceira vez num século, deve rever rapidamente a sua política, deixar de usar os salários como forma de desvalorização interna competitiva e tomar medidas para incrementar a sua procura interna e eliminar os seus esmagadores excedentes partilhando com os países de deficitários o fardo do ajustamento.
É provável que isto aconteça? Receio bem que não. A solução da Alemanha para a divergência competitiva com o resto da Zona Euro tem sido a de obrigar todos os restantes países a seguir o pior do seu modelo económico. Em resultado disso, em 2016, todos os membros da Zona Euro, com a exceção da França, obtiveram balanças correntes excedentárias. A balança corrente da Zona Euro, deficitária em 1,2% do seu PIB em 2008, apresentou um superávite de 3,4% em 2016. No entanto, a divergência na competitividade-custo entre os países membros da moeda não foi revertida, ainda que, desde 2010, tenha cessado de se aprofundar. Os desequilíbrios competitivos permanecem, em larga medida, por resolver, embora temporariamente aliviados à custa do resto do mundo, para onde a Zona Euro passou a exportar o seu desemprego. É muito improvável que esta estratégia possa ser prosseguida sem retaliação. A continuar este caminho, com a recusa simultânea da Alemanha em aumentar significativamente os salários dos seus trabalhadores e a provável recusa do resto do mundo em aceitar trocas comerciais deficitárias com a Zona Euro, a França e os países da periferia sul da Europa serão novamente obrigados a períodos prolongados de deflação competitiva e austeridade orçamental. Neste cenário, aquelas economias serão confrontadas com uma nova fase de crescimento marginal ou recessão, com as correspondentes incapacidades para combater os elevados níveis de desemprego que as assolam, a erosão do Estado Social e o crescimento das suas dívidas públicas. Se isto acontecer, como parece provável, será uma questão de tempo até uma qualquer Le Pen ganhar eleições. Neste contexto, será que o país pode dar-se ao luxo de não se preparar para uma saída da moeda única?”

Economia Com Todos (páginas 179 a 193)

Entretanto, a guerra comercial à escala global está instalada e o ritmo da produção industrial na Europa desceu em Junho para o nível mais baixo dos últimos 18 meses. À escala nacional, a Navigator, alvo de taxas alfandegárias de 37,34%, diz que não o esperava (!). Em termos de representação política, a extrema-direita não cessa de ganhar terreno e a Europa, tão expedita a cortar cerce qualquer veleidade dos governos suportados por forças de esquerda na Grécia e em Portugal, assiste impávida ao desastre em curso enquanto, na prática, convenientemente, permite ao xenófobo Salvini ditar a política de fronteiras e vai fazendo umas ameaças vagas e inconsequentes aos governos autoritários da Polónia e da Hungria.

Trágico, não?


Artigo publicado no blogue Ladrões de Bicicletas.