Artigo de Alexandre Abreu.
O colapso do banco Lehman Brothers há precisamente dez anos simbolizou a eclosão da crise financeira que viria a dar origem à maior recessão mundial desde a Grande Depressão. Esta ficaria conhecida como a crise do sub-prime, em virtude da sua origem próxima nos incumprimentos ao nível dos empréstimos para habitação por parte de alguns dos segmentos relativamente mais pobres da população norte-americana. Com efeito, este segmento do mercado de crédito cedeu em primeiro lugar devido à sua especial vulnerabilidade. No período que antecedeu a crise, era comum nos Estados Unidos a concessão de empréstimos a mutuários de baixos rendimentos, com elevado risco de incumprimento e sem garantias reais (nalguns casos extremos conhecidos como empréstimos ninja: “no income, no job, no assets”) com vista à sua posterior titularização em combinação com empréstimos de menor risco. A ideia seria que o risco menor de uns compensasse o risco maior de outros, mas o processo de titularização e revenda sistemáticos fez com que o risco sistémico se tornasse cada vez maior e a vigilância fiduciária por parte das instituições de crédito cada vez menor.
No entanto, esta não é senão a primeira camada da explicação desta crise. Indo um pouco mais fundo, devemos recordar a evolução da política monetária norte-americana, que passou de muito acomodatícia nos primeiros anos deste século em resposta ao pessimismo decorrente da crise do dot.com e do 11 de Setembro a bastante contraccionista no período antes da crise. Entre 2004 e 2006, a taxa directora da Reserva Federal subiu de 1% para mais de 5%, o que terá desencadeado a catadupa de incumprimentos que levaria ao pânico generalizado e ao congelamento do crédito. Mas o Fed não esteve sozinho na adopção de uma orientação de política que, em retrospectiva, quase parece desenhada para provocar uma recessão: na zona euro, o BCE também subiu gradualmente a sua taxa directora de 2% para 4,25% entre 2005 e 2008.
Por outro lado, é também verdade que a crise financeira não teria tido as características ou a magnitude que teve sem a profunda desregulamentação do sistema financeiro que teve lugar nas décadas anteriores, cujo exemplo mais acabado terá sido provavelmente a revogação em 1999, pela administração Clinton, da Glass-Steagall Act, que datava do tempo da Grande Depressão e que impunha a separação entre as actividades de banca comercial e de investimento. Foi esta desregulamentação que permitiu a acumulação e ocultação de um risco sistémico cada vez maior a coberto de instrumentos financeiros cada vez mais bizantinos e opacos, sem contrapartidas adequadas ao nível da solidez das instituições financeiras.
Mais profundamente, porém, o enorme aumento do endividamento cuja insustentabilidade subitamente desvendada provocou a crise financeira não pode deixar de ser considerado uma consequência do projecto político de transferência de rendimento e restabelecimento do poder das elites cuja implementação remonta ao início da década de 1980 e a que damos o nome de neoliberalismo. Em grande medida, este endividamento sem precedentes correspondeu à reciclagem, sob a forma de concessão de crédito, da parte do rendimento crescentemente apropriada e acumulada pelas elites em resultado do aprofundamento da desigualdade. É nesse sentido que se pode afirmar que a crise financeira de 2007-2008 e a Grande Recessão que se lhe seguiu constituem a primeira grande crise do neoliberalismo: porque resultaram directamente da conjugação dos processos de desregulação, sobre-endividamento, financeirização e aumento da desigualdade que são característicos do neoliberalismo.
É a esta luz, mais do que com base na evolução conjuntural das taxas de crescimento, que faz sentido analisar até que ponto é que a economia global superou a crise. Se tomarmos como critério a alteração ou manutenção destes factores mais profundos, somos forçados a concluir que esta não foi ultrapassada. Embora a regulação e supervisão financeiras tenham sido aprofundadas tanto nos Estados Unidos como na Europa, a tendência actual é novamente de desregulação (por exemplo, com o processo em curso nos EUA de revogação de parte substancial dos requisitos introduzidos em 2010 pela Dodd-Frank Act em resposta à crise). E mais fundamentalmente ainda, nem os níveis de desigualdade, nem os níveis globais de endividamento, nem o enorme poder da finança sofreram qualquer tipo de redução significativa desde a crise – antes pelo contrário. A crise demonstrou os limites e vulnerabilidades do neoliberalismo, mas ao contrário do que chegou a supor-se não o pôs verdadeiramente em causa.
Entretanto, a nível político, as ondas de choque da Grande Recessão incluíram a chegada ao poder por parte de um conjunto diverso de líderes de perfil iliberal e autoritário, na maior parte dos casos cavalgando o descontentamento popular resultante da própria crise. Porém, independentemente do carácter frequentemente populista dos seus discursos, as agendas políticas destes líderes continuam a servir as elites, muitas vezes de forma especialmente agressiva, pelo que eles próprios não deixam de contribuir para acentuar os factores profundos da crise. São, no fundo, sintomas mórbidos de um regime velho que resiste enquanto o novo não consegue nascer.
Artigo publicado no site do Expresso.