A “boa ciência económica” e a crise: Peregrinatio ad loca infecta?

Artigo de António Carlos dos Santos.


Recuso-me a aceitar o que me deram

Recuso-me às verdades acabadas

Jorge de Sena

Em março de 2010, publiquei um pequeno artigo que visava chamar a atenção para as relações entre o pensamento económico convencional e a crise financeira de 2007 “made in USA”, depois globalizada e originando crises económicas, sociais e políticas em particular na Europa[1]. Passados oito anos, penso ser útil revisitar esse texto e recuperar o essencial do que então escrevi, pois a situação, no que respeita às suas causas e fundamentos, não mudou tanto como isso.

Começava esse artigo parafraseando uma célebre frase de Clemenceau sobre a guerra que, por ser algo demasiado grave, não devia ser uma coisa confiada aos militares, para lembrar que as crises (se não mesmo, a economia no seu conjunto) constituem fenómenos demasiado complexos para serem deixadas apenas nas mãos de economistas. Por muito importante que seja o trabalho destes cientistas sociais (e é-o certamente), há neles, com frequência, um certo tique para se autorrepresentaram como os verdadeiros cientistas sociais. Talvez porque recorram profusamente a técnicas matemáticas (esquecendo que outras ciências, como a linguística e a demografia, também o fazem), talvez por haver um prémio Nobel da Economia que os põe no mesmo patamar dos físicos, talvez por quadrantes da esquerda e da direita defenderam, na teoria ou na prática, o primado da economia (da base económica ou dos fenómenos mercantis) e tal facto rapidamente se convertesse em primado dos economistas e, dentro deste grupo, dos “bons economistas”. Ou seja, dos cultores da ciência económica convencional – com larga audiência nos media – que, não raro com olímpica ignorância, relegam os contributos de outras ciências sociais e humanas (dos literatos) e dos próprios economistas heterodoxos para o caixote do lixo da História.

Certo é que as crises interessam a todos os cidadãos (embora atinjam mais profundamente uns que outros). O que é suficiente para justificar o interesse de não economistas, como eu, pela literatura económica sobre as crises. Quem tem outras formações académicas e profissionais e não possui uma teoria infalível para prevenir e resolver as crises, é obrigado a transportar consigo algumas lanternas, com proveniências várias, para, tateando, orientar-se na crescente complexidade do mundo, incluindo as fornecidas por académicos e profissionais com formação em Economia.

Existem hoje muitos estudos sobre a “crise made in USA” que começou a manifestar-se na transição de 2006 para 2007 e irrompeu violentamente a partir de então, a maioria provindas de economistas, que buscam descrever e, por vezes, explicar as razões da sua eclosão[2]. Essas descrições (a posteriori, tal voo da coruja de Minerva) permitem-nos já saber como as coisas começaram, efetuar comparações com crises anteriores, em particular com a Grande Depressão dos anos trinta do século passado, desencadeada pouco tempo depois de Keynes ter proclamado o fim do laissez-faire[3] mas não nos permitem infelizmente saber se e como vão acabar ou, como ocorre com os terramotos, se e quando voltam a eclodir.

O pós 2ª Guerra, com a derrota do nazi-fascismo e a necessidade de reconstrução dos territórios em escombros saídos do conflito bélico, abriu uma época de crescimento económico conhecida pelos Trinta Anos Gloriosos que durou até à década de 70. Apesar de algumas sombras (reveladas pelas revoltas do Maio de 1968), tudo parecia correr no melhor dos mundos: uma “economia concertada”, caraterizada pela conjugação de mecanismos mercantis, poderes públicos (com importantes sectores de propriedade de meios de produção) e com controlo da inovação e da produção científica; uma paz neocorporativa, decorrente da existência de sindicatos fortes e da contratação coletiva; e um Estado que se autorrepresentava como social e democrático (saúde, educação, segurança social tendencialmente universal, direitos laborais centrados no princípio da proteção dos trabalhadores). Durante esses anos, consolidou-se, para muitos, a crença de que as crises económicas e financeiras eram coisas do passado ou, pelo menos, fenómenos domesticados. Continuavam a existir, por certo, “falhas de mercado” (assimetrias de informação, bens públicos, “externalidades”, etc…). Mas as teorias económicas em vias de se tornarem hegemónicas, a do Hayek da maturidade (a “ordem espontânea”) e, num outro registo, a do monetarismo de Friedman e a da escolha pública de Buchanan, descriam da  intervenção política, por definição, discricionária (mas não da intervenção judicial ou da intervenção de autoridades administrativas independentes), pois as falhas dos governos seriam tão grandes ou maiores que as eventuais falhas do mercado livre. Além disso, os agentes económicos antecipariam racionalmente as medidas dos governos e, deste modo, estas não seriam eficazes, sendo, as mais das vezes, contraproducentes. Mesmo quando aceitava uma evidência – a de que a concorrência perfeita no mercado era um tipo ideal, isto é, na realidade, um mito – alargou o conceito de concorrência até nele integrar o seu contrário (concorrência oligopolista ou mesmo monopolista), contentando-se com noções de concorrência potencial ou de concorrência praticável, conceitos centrais na regulação jurídica dos mercados. A noção de mercado (e de economia de mercado), de livre troca entre sujeitos económicos (e jurídicos) iguais, oculta, porém, não apenas a questão da produção (onde a desigualdade entre as partes contratantes é, em regra, manifesta), como a própria realidade, uma vez que existem mercados no plural e não o mercado no singular[4]. É visível neste discurso, que afirma o primado do mercado livre, a ideologia subjacente, um pensamento tecnocrático com o inevitável preconceito antipolítica e, consequentemente, um horror, nem sempre disfarçado, em relação à democracia (recorde-se, sem surpresa, o namoro de Hayek e de Friedman com o Chile de Pinochet[5]). É igualmente visível a tendencial redução da ideia de crise ao mundo da economia e finança, como se não proliferassem, em paralelo ou simultaneamente, crises de outra ordem (ambiental, climática, demográfica, de transição de sistemas socioeconómicos ou de sistemas políticos, etc.). Mesmo no plano económico, foi-se obnubilando, não apenas a ideia de que a crise é congénita ao sistema capitalista (orgânica), mas que ela se manifesta ou emerge sistematicamente, ora em curtos períodos de tempo (v.g., os ciclos de investimento de Juglar), ora em ondas de longa duração, retomando, por exemplo, os ciclos de  Kondratiev e Imbert[6].   

A ideia de que não há crises, ou de que as crises estão sob controlo, revelou-se de novo claramente falsa. Qualquer observador mais atento facilmente se poderá lembrar que, pelo menos desde a crise dos anos 70 (crise do petróleo, fim de Bretton Woods, estagflação), o mundo, no seu conjunto (não apenas os países do centro desenvolvido), nunca deixou de conhecer múltiplas crises.

Alguns espíritos mais lúcidos, mesmo de personalidades saídas de dentro do sistema (ou talvez por isso mesmo), há muito que se preocupam com a emergência e com as consequências das crises. Eis, entre vários outros possíveis, dois testemunhos qualificados, ideologicamente distintos, e, por razões distintas, preocupados com o evoluir do capitalismo, particularmente após a aceleração da globalização financeira, acompanhada por uma revolução tecnológica nos meios de informação e comunicação[7].

O primeiro é de Stiglitz[8], prémio Nobel da Economia, alto quadro do Banco Mundial e conselheiro do presidente Clinton. Em 2003, dava conta da profunda transformação da atividade bancária nos Estados Unidos (em particular com a fusão dos bancos de investimentos e comerciais e a emergência de grandes conglomerados financeiros) e do seu impacto no funcionamento global da economia, a partir do crescimento das chamadas “bolhas especulativas”[9]. Fenómenos como a desregulamentação, as opções sobre títulos e outras formas ínvias de remuneração, os derivados e as modernas técnicas de engenharia financeira, a contabilidade criativa, o fornecimento de informações falsas aos mercados e aos acionistas (em particular nos sectores de telecomunicações e no high-tech) potenciaram as crises dos anos 90, acompanhadas, entre outros, dos grandes escândalos da Enron, da World Com, do Citigroup e da Merrill Lynch e de uma recessão dura e prolongada nos  Estados Unidos. Na periferia do sistema, tivemos ainda, nessa década, as crises asiáticas (em especial na Rússia, na Indonésia e na Tailândia), latino-americanas (sobretudo, no México, no Brasil e na Argentina) e diversas outras na África. O desastre das políticas (não apenas as militares) de George W. Bush e a ação seguidista do FMI ajudaram a prolongar os efeitos dessas crises. Stiglitz tem, desde então, produzido uma profícua obra, factualmente bem documentada, abrangendo temas cruciais (sobre o papel do FMI, sobre o euro, sobre as desigualdades sociais, etc.), que é de leitura obrigatória para quem quer compreender o mundo de hoje.

O outro é George Soros, um conhecido especulador e filantropo, um enfant terrible do sistema, que, em 1998, ao analisar as crises financeiras dos anos 90, criticava duramente o integrismo dos mercados e punha em dúvida que estivessem a ser consideradas as medidas necessárias para prevenir futuras crises[10]. A discussão girava em torno da necessidade de melhorar a supervisão bancária e de obter informação mais fiável e transparente acerca da situação das economias dos diversos países e sobre a conveniência de regulamentar os fundos especulativos (hedge funds) e desencorajar os fluxos de capitais a curto prazo. Na verdade, nem sequer estas pequenas reformas por ele propugnadas foram levadas à prática. O véu ideológico do integrismo dos mercados não se mostrava favorável à sua adoção. Numa das suas diversas obras, o mesmo autor refere que a atual crise foi lenta a chegar, mas podia ter sido prevista com vários anos de avanço, pois as suas origens remontavam ao rebentar da bolha da Internet no final dos anos 2000 (antes ainda do ataque terrorista às Twin Towers), tendo havido um precedente com o mercado das obrigações hipotecárias “colateralizadas” que se havia começado a desenvolver nos anos 80.

Este véu ideológico (Lucien Goldmann falava de “consciência possível”)[11] desempenhou um significativo papel na União Europeia e na forma ziguezagueante como ela lidou com a crise, em especial a financeira que, por magia, acabou por ser transformada em “crise das dívidas soberanas”[12]. Após a adoção temporária de políticas neokeynesianas, rapidamente as instituições europeias começaram a falar das políticas pós-crise. Ou seja: Ainda a crise não tinha acabado (diversos economistas e cientistas sociais afirmavam que a crise não seria  em V ou mesmo em W), e já os centros de decisão europeus regressavam  às políticas neoliberais, muitas vezes induzidas por instituições financeiras (em socorro de quem saiu o dinheiro dos contribuintes para prevenção de riscos sistémicos e em detrimento do chamado risco moral)[13]. E esta ajuda às instituições too big to fail, foi, as mais das vezes, efetuada sem a criação de mecanismos que assegurassem formas de controlo e de responsabilização do sistema financeiro. A desorientação que invadiu a (Des)União Europeia e os seus principais centros de decisão numa situação hoje agravada pelas migrações, pelo terrorismo, pelo Brexit, pela inépcia em lidar com a questão dos nacionalismos agressivos, pelas tensões com o governo Trump, com a inação relativamente à emergência de regimes políticos fascizantes no seu seio, pela passividade com que assiste ao regresso de velhas práticas do sistema financeiro que estiveram na origem da crise, tem-se mostrado verdadeiramente aflitiva.

Vem isto a propósito da ingénua e pertinente pergunta da rainha Elizabeth II feita, em finais de 2008, depois da apresentação na London School of Economics, sobre as causas da crise financeira: “Se era algo tão grande, por que ninguém a previu?”.

A teoria económica dominante (um conglomerado de teorias que dá pelo nome de neoliberalismo[14]) foi, de facto, incapaz de prever a crise, ao contrário do que ocorreu com teorias heterodoxas (a “má economia” no dizer de Harberger[15]). Essa teoria impregna o processo de decisão da União Europeia, mormente através da preparação dos dossiers pelos diversos comités que apoiam os trabalhos da Comissão e do Conselho (para não falar do Banco Central Europeu), em regra, pouco abertos a propostas que se desviem do mainstream. Isto explica que a  União Europeia, quando (tardiamente) deu pela crise, tenha hesitado na formulação de um diagnóstico consistente e optado, após um primeiro momento em que promoveu políticas de auxílios de Estado[16] (que, necessárias no contexto da época, muito contribuíram para o crescimento dos défices e das dívidas públicas), pelo emergir de um “novo normal”, de que o principal expoente é o vulgarmente denominado Pacto Orçamental (2012)[17]. Sobretudo a partir de meados de 2009, assistiu-se, em formações sociais como a grega ou a portuguesa[18], em fase recessiva ou mesmo depressiva, a um  tratamento de choque e a uma sangria inútil, batizada de “austeridade expansionista”[19], que teve por real objetivo a salvação do sector financeiro das suas reiteradas tropelias. Esta política, por via do FMI, havia, aliás, sido experimentada, sem êxito, em vários países da América Central e do Sul, da África e da Ásia[20].

Estas políticas não só não resolveram as questões da dívida, como incrementaram as desigualdades socioeconómicas e abriram caminho a distintos movimentos e partidos políticos, com largo apoio popular, que rejeitam a União Europeia (nacionalistas, separatistas, de extrema-direita neofascista, basistas). Contudo, apesar de tudo isto, e contra  as previsões de muitos que acreditavam na superação da ideologia neoliberal, esta, após o forte abalo sofrido por não ter previsto a crise e ter sido responsável pelas suas consequências,  rapidamente recuperou do estatuto de moribunda[21].  O regresso da velha senhora, longe de afastar do horizonte o espetro de novas crises, volta a contribuir para que esta possibilidade se torne realidade.

Há, pelo menos, dois ensinamentos a retirar da crise que, desde 2007, nos conduziu à Grande Recessão, segundo alguns, ao Grande Retrocesso[22], e cujo espetro continua a perseguir-nos.

O primeiro é que nunca devemos aceitar acriticamente o discurso económico, os enfoques teóricos, as previsões económicas, como se fosse, por definição, a ciência, pois a realidade revela-nos, com a sua crueza, que é impossível separar economia e política, que toda a Economia, ao contrário da fábrica de ilusões do positivismo, é sempre «Economia política». A Economia é uma ciência social (em que, como nas restantes ciências sociais, o observador integra, num grau muito mais acentuado do que nas ciências físico-químicas e naturais, a realidade observada) e, como tal, necessariamente histórica e cultural, que tem por finalidade estudar, com as metodologias disponíveis ao tempo da investigação, uma dimensão que se convencionou chamar  económica dos fenómenos sociais. A Economia pode apresentar um caráter mais descritivo ou mais normativo e constrói o seu próprio objeto científico, não havendo quanto a este ponto unanimidade, pois, de acordo com Pimenta, pode falar-se de diferentes objetos (a produção, a repartição e a troca; a gestão da escassez; a escolha racional) que correspondem a distintos paradigmas. Longe de ser uma ciência de “pensamento único”, conhece hoje (como outrora) várias escolas, como a neoclássica, a neokeynesiana, a neomarxista ou a institucionalista, todas com diversas variantes[23]. Sem esquecer que a Economia não é a única disciplina a ocupar-se dos fenómenos económicos, sendo igualmente legítimas as análises, com base noutras perspetivas e metodologias, provindas de outras ciências sociais e humanas. É o caso, por exemplo, da história económica e do pensamento económico, da sociologia económica, da psicologia económica, da antropologia económica, da análise política do poder económico e da própria política económica (que é, antes de tudo, política) ou da análise jurídica da economia. Para nos cingirmos a esta última, deve recordar-se que propriedade, posse, contrato, herança, responsabilidade são, entre outros, conceitos com enorme lastro jurídico; que não é possível compreender as formas de concentração empresarial ou os mecanismos da globalização financeira, sem conhecer minimamente os mecanismos jurídicos de natureza contratual que  sustentam tais fenómenos, como as formas societárias ou a lex mercatoria[24]; enfim, que não são percetíveis as questões da intervenção do Estado à margem das instituições jurídico-políticas, dos procedimentos e dos atos administrativos que a concretizam. Sem esquecer, para além de tudo isto, os fundamentos das teorias são de natureza filosófica (epistemológicos, lógicos, linguísticos, semióticos ou ideológicos).

Desconhecendo tais contributos e tendo a pretensão de colonizar os discursos das diversas dimensões da vida social mediante a exportação da análise económica para, v.g., estudar a família, a democracia, a política, o direito, etc., a Economia arrisca-se a esgotar-se numa mera praxeologia, de que a análise custo-benefício é um exemplo. Ora, por muito importante que seja o contributo da Economia para o estudo dos fenómenos sociais, ela não é «a» ciência social. Deve, assim, ser posto em causa o «imperialismo económico» que pretende dar à Economia a última palavra sobre todas as dimensões do social. Não se trata, pois, de articular Economia e Sociedade, mas de compreender a Economia em Sociedade.

O segundo ensinamento é que não existe um paradigma teórico consensual na Economia. O positivismo na ânsia de criar uma ciência liberta de impurezas (a exemplo do que se passou com a teoria pura do Direito de Hans Kelsen) transformou a Economia Política em (simplesmente) Economia e crismou-a de Análise Económica. Os impasses da teoria keynesiana e do marxismo ortodoxo, a implosão da URSS, o fim da guerra-fria e do equilíbrio do terror (substituídos por guerras a quente e pelo desequilíbrio do terror) possibilitaram a emergência de um paradigma teórico dominante, o neoliberal, que, saído do seu anterior estatuto de subalternidade, onde permaneceu durante décadas, salientava as virtudes do mercado e da concorrência. Difundido por  inúmeras faculdades a partir dos países anglo-saxónicos, por clubes e grupos de reflexão (think thanks), pelos meios de comunicação social, este paradigma conquistou uma enorme influência na formação dos atuais economistas, de tal modo que  rapidamente se arvorou em posição de (quase) monopólio. Daí a pretender fazer passar as suas leis (as únicas “científicas”), como se de leis da natureza se tratassem, e transformá-las em norma comportamental, isto é, alcandorá-las do mundo do ser (do Sein) ao mundo do dever ser (do Sollen), evitando o espaço público da discussão e sobrepondo-se mesmo a normas decididas democraticamente, foi um pequeno passo. E este foi dado pelo chamado «consenso de Washington» que impôs um modelo económico baseado na desregulamentação da atividade económica, na liberalização mercantil, nas privatizações, na contenção de gastos públicos em políticas sociais, na redução do défice público. Ou seja: um modelo que visava moldar o todo social em função das “leis económicas” definidas pela teoria dominante (isto é, pelo ensino e investigação com maior apoio financeiro), como se as leis nas ciências sociais tivessem o mesmo estatuto que as leis nas ciências físico-químicas e naturais[25].

Esta pretensão de tornar natural o que é eminentemente social (o mercado, a produção, a distribuição, o consumo, a escassez, ou as escolhas) e, a partir daí, transformar essas leis naturais em ação política, mostra bem que a busca do monopólio da produção científica em ciências sociais é, simultaneamente, uma questão de poder. Esta visão neoliberal do mundo copia idêntica pretensão da vulgata ortodoxa marxista em que o primado da base económica tendia frequentemente a servir de prévia explicação para todos os fenómenos sociais. Agora, no paradigma neoliberal, a resposta para as contradições existentes, é simples e igualmente dada a priori: se algo não funciona de acordo com a cartilha, é porque é preciso mais mercado.

A crise, porém, como o espanto do antigo presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan, perante a incapacidade de autorregulação das instituições financeiras bem demonstra, pôs a nu as falhas desta perspetiva e a impossibilidade de, num mundo complexo e conflitual, existir um único paradigma económico. Ao lado da combalida análise económica cuja palavra de ordem era simples (deixem os mercados – essa instituição de origem quase divina – trabalhar) ressurge a Economia Política, a importância das instituições na ciência económica, a importância da teoria da grande empresa na ciência económica, acompanhada de uma renovação dos paradigmas marxistas (desprovidos agora de projeções messiânicas), keynesianos (procurando reequacionar-se em espaços supranacionais) e institucionalistas (em articulação com a realidade social, jurídica e política). Este incremento da concorrência teórica é de saudar e os primeiros a fazê-lo deveriam ser os apóstolos da concorrência como um fim em si mesmo. Ela pode contribuir para evitar a redução da Economia à Psicologia (a crise como mero produto da ganância de especuladores financeiros – que também é; a crise  como resultado da imprevisão dos reguladores – que também foi; ou da falta de contenção dos cidadãos de baixos rendimentos no recurso ao crédito – que, em menor grau, também existiu). A crise tornou transparente aquilo que a Economia sempre foi: uma ciência social com os defeitos e virtudes das restantes. E permitiu, pelo menos, reduzir a posição rentista da teoria económica dominante.


* Professor associado da Universidade Europeia.

Notas:

1 “A ciência económica e a crise de 2007/8-20??: crónica de um terramoto anunciado”, TOC, Revista da OTOC, n.º 122, maio de 2010, pp. 63-66 (disponível em antoniocarlosdossantos.com). Na esteira de PIMENTA, Carlos (2017), Racionalidade, Ética e Economia, Almedina, p. 58, usam-se aqui a letra maiúscula para designar a ciência económica (a Economia) e a minúscula para se referir às dimensões do real (a economia, os fenómenos ou factos considerados económicos) estudadas por aquela disciplina.

2 Eis apenas algumas obras, a partir de perspetivas distintas, publicadas na sequência da irrupção da crise atual: ARTUS, P. et alii (2008), La crise des subprimes. Rapport du Conseil d’Analyse Économique, La Documentation Française; KRUGMAN, Paul (2008), The Return of Depression Economics and the Crisis of 2008, Allen Lane; WOLF (2009), Martin, Fixing Global Finance, Yale University Press; ALEXANDRE, F. et alii (2009), Crise Financeira Internacional, Imprensa da Universidade de Coimbra e a síntese de STIGLITZ, J. (2010), Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy, Penguin.

3 Cfr. KEYNES, J. M. (1926), “O fim do laisser-faire”, in A Grande Crise e Outros Textos, Lisboa: Relógio de Água, 2009, p. 95 e ss., cuja leitura é, ainda hoje, muito útil. Sobre a Grande Depressão de 1929, ver a clássica obra de GALBRAITH, J. Kenneth (1998), A Crise Económica de 1929, Anatomia de uma Catástrofe Financeira, Dom Quixote, (reimp.).

4 Cfr. REICH, Norbert (1985), Mercado y Derecho, Ariel, p. 26-27 que distingue, nas sociedades capitalistas, três tipos de mercado interdependentes, o de trabalho, o de capitais e o de bens de consumo. Recorde-se ainda que POLANYI, Karl (1944), La Grande Transformation, Gallimard, 1983, pp. 122-13, considerava o trabalho, a terra e a moeda, elementos essenciais da indústria, como não mercadorias (ou mercadorias fictícias). Acresce que a noção de mercado é também produto de uma construção política, como, de resto, bem o revela a construção do mercado único europeu, um mercado de criação e natureza institucional. Sobre a construção política do mercado, cfr. ROSANVALLON, Pierre (1979), Le capitalisme utopique. Critique de l’idéologie économique, Paris: Seuil e, bem assim, sobre a sua artificialidade, IRTI; Natalino (2003), L’ordine giuridico del mercato, 3ª ed., Laterza.

5 Sobre o tema, cfr. SAPIR, Jacques (2002), Les économistes contre la démocratie. Pouvoir, mondialisation et démocratie, Paris: Albin Michel.

6 Para uma acessível descrição da questão da periodização das crises, vide ROSIER, Bernard (2001), As Teorias das Crises Económicas, Lisboa: Bizâncio, em especial, quanto a crises contemporâneas, pp. 144 e ss. Ver igualmente o desafiante livro de MASON, Paul (2016), Pós-Capitalismo, Um guia para o nosso futuro, Lisboa: Objectiva. nomeadamente, pp. 29 e ss., bem como, sobre a forma como o capital tende a ultrapassar as crises, HARVEY, David (2011), O Enigma do Capital E as Crises do Capitalismo, Lisboa: Bizâncio.

7 Sobre a globalização há uma vasta literatura. Por ser menos difundido entre nós, elejo um título desafiante, o de ZOLO, Danilo (2009), Globalizzazione. Una mappa di problemi, Laterza. “Um dos efeitos da globalização – como sublinha Bauman, Zigmunt (2010), Vida a Crédito,Zahar, p. 84-85, é o divórcio entre o poder e a política, o poder, evaporado no ciberespaço, livre da política e a política desprovida de poder. 8 STIGLITZ, Joseph E. (2003), The Roaring Nineties: A New History of the World’s Most Prosperous Decade, N. YorK: W.W. Norton & C. [há traduções francesa: (2003), Quand le capitalisme perd la tête, Paris: Fayard, e portuguesa (2005), Os Loucos Anos 90 – A década mais próspera do mundo, Lisboa: Terramar].

9 A “bolha especulativa” no imobiliário radica-se nas práticas bancárias (e não, como alguns insinuam, essencialmente no comportamento dos consumidores, dos adquirentes de habitação – um bem social – que se endividaram sem terem em conta as dificuldades para pagarem os empréstimos e as hipotecas). Mas ela alimenta-se sobretudo do pensamento económico dominante, sendo, fora deste quadro mental, previsível.

10 SOROS, George (1998), La crise du capitalisme mondial, L’intégrisme des marchés, Paris: Plon (tradução de The Crisis of Global Capitalism). Cfr.ainda do mesmo autor (2008), O Novo Paradigma para os Mercados Financeiros, A crise de crédito de 2008 e as suas implicações, Coimbra: Almedina. Cfr., ainda com interesse, CHESNAIS, F. & PLIHON, D. (coord., 2000.), As Armadilhas da Finança Mundial, Lisboa: Campo da Comunicação.

11 GOLDMANN; Lucien (1970), Marxisme et sciences sociales, Paris: Gallimard, p. 126.

12 Cfr. sobre o tema, PHILIPS, Tony (coord., 2014), A Europa à Beira do Abismo. A Crise das Dívidas Soberanas. Memorando da Periferia, Lisboa: Bertrand. Cfr. igualmente ATALLI, J. (2010), Estaremos Todos Falidos dentro de Dez Anos? Dívida Pública: a última oportunidade, Lisboa: Alethéia.

13 Cf. os meus textos (2011), “A resposta bipolar da União Europeia”, in REIS, J. & RODRIGUES, J., Portugal e a Europa em Crise. Para acabar com a economia da austeridade, Lisboa: MD , Actual, pp. 149-156 e (2011), “A crise financeira e a resposta da União Europeia: Que papel para a fiscalidade?”, in MONTEIRO, S. & COSTA, S. & PEREIRA.L., A Fiscalidade como Instrumento de Recuperação Económica, Porto: Vida Económica, pp. 21-42 (disponíveis em antoniocarlosdossantos.com).

14 Constelação de teorias desenvolvidas no quadro do pensamento neoclássico que engloba, como identificou LOPES, J. Silva (2010), “As políticas orçamentais de combate à presente crise económica“ (in FERREIRA, E. Paz et alii (org.), Conferência Crise, Justiça Social e Finanças Públicas; Lisboa: Ideff & Almedina, p. 41), “as teorias do monetarismo, das expectativas racionais, dos ciclos reais, do princípio da equivalência ricardiana e da eficiência dos mercados financeiros”, às quais poderíamos acrescentar, numa vertente mais política, as teorias da public choice. Aquelas teorias – escreve o mesmo autor – “terão dado origem a exercícios matemáticos sofisticados que valeram prémios Nobel aos seus autores, mas assentam em hipóteses sem correspondência com a realidade, escolhidas por forma a facilitarem a manipulação matemática ou para corresponderem às preferências ideológicas das correntes neoliberais dominantes”.

15 Esta afirmação é alicerçada num livro, editado em 2011, de um economista australiano lucidamente crítico dos fundamentos da economia neoclássica, Steve KEEN, (Debunking Economics. The Naked Emperor Dethroned? New York: Zec Books, traduzido para francês em 2014, L’Imposture économique, Ivry-sur-Seine: Les Éditions de l’Atelier, pp. 40-42) que elenca onze textos em língua inglesa de autores como Baker, Godley, Harrison, Hudson, Janszen, Keen, Madsen, Sorense, Richbächer, Roubini, Schiff e Shiller que, em 2006 e 2007, alertavam para a crise imobiliária e a recessão que se lhe seguiu.

16 Cfr., do autor (2010) “Crise financeira e auxílios de Estado – Risco sistémico ou risco moral?”, C&R, Revista de Concorrência e Regulação, n.º 3, 2010, pp. 209-234.

17 O Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, um tratado construído à margem dos procedimentos comunitários, foi assinado, a 2 de março de 2012, pelos Chefes de Estado e de Governo dos Estados-Membros da União Europeia (com exceção do Reino Unido e da República Checa), tendo como objetivo o reforço da disciplina orçamental, nomeadamente a necessidade de as Partes Contratantes assegurarem o cumprimento de um (enigmático) “défice estrutural”.

18 Ver, para a Grécia, dois testemunhos distintos, o de um fundador de um fundo de investimentos, MANOLOPOULOS, Jason (2011), La dette odieuse. Les leçons de la crise grecque, Les Echos & Pearson, e outro, de natureza mais política (e não

restrito à Grécia) de VAROUFAKIS, Yanis (2016), And the Weak Suffer What They Must? Europe, Austerity and the Threat to Global Stability, Penguin. Quanto a Portugal, ver, por todos, Ferreira, E. Paz. (coord. 2013), Troika Ano II – uma avaliação de 66 cidadãos, Lisboa: Edições 70 e (coord. 2013), A austeridade cura? A austeridade mata?, Lisboa: AAFDL.

19 A paternidade desta “teoria” é atribuída a membros da influente Escola da Universidade de Bocconi, ALESINA, Alberto & ARDAGNA, Sílvia (1998) ‘Tales of Fiscal Adjustment’, Economic Policy, October.13, 27, pp.498-545. Para a crítica ver, por todos, BLYTH, Mark (2013), Austeridade, A História de uma Ideia Perigosa, Lisboa: Quetzal, em especial, pp. 304 e ss.

20 Como reconhece um insider e defensor da globalização de nome David ROTHKOPF (2008) que, em Superclasse – A Elite do Poder Global e o Mundo que ela está a construir, p. 405, escreve “O atual sistema global parece, para muita gente, ser fundamentalmente injusto. Os mais ricos tornam-se muito mais ricos e a grande maioria dos restantes esforçase por se manter como está. Durante a maior parte do período em que houve maior criação de riqueza – nos anos 1980m e 1990 -, a mensagem oferecida às nações mais pobres, pelos principais países desenvolvidos e pelos seus amigos da comunidade financeira, foi a de que a austeridade de hoje produz os benefícios de amanhã. Mas, para lá de todos os méritos que uma abordagem destas tem a nível económico [questão, quanto a mim, a demonstrar: corresponde à ideia difundida pelo sempre sorridente Luís Montenegro em 2014 de que “a vida das pessoas não está melhor, mas a do País está muito melhor”], ela revelou-se politicamente insustentável; e também, de alguma maneira imoral, sugerindo que o pagamento das dívidas às maiores instituições financeiras deveria , automaticamente, ser considerado prioritário em relação às necessidades humanas mais urgentes. “ [notas minhas em itálico e entre parêntesis].

21 Ponto este bem salientado por LOUÇÃ, Francisco & ASH, Michael (2017), Sombras – A Desordem Financeira na Era da Globalização, Lisboa: Bertrand.

22 Cfr. GEISELBERGER, Heinrich (ed., 2017),O Grande Retrocesso. Um debate internacional sobre as grandes questões do nosso tempo, Objectiva, com particular destaque para os perturbantes textos de MASON, Paul, “Vencendo o medo da liberdade”, pp. 149-170 e MISHRA, Pankaj, “Política na era do ressentimento. O legado obscuro do Iluminismo”, pp. 171-186.

23 PIMENTA, C., op. cit., em especial, p. 139 e ss.

24 Cfr. GALGANO, Francesco (2005), La globalizzazione nello specchio del diritto, Il Mulino, pp. 43 e ss.

25 Ao contrário, por exemplo, do que ocorre com a Física, em que as leis se exprimem matematicamente (há uma relação de implicação), a relação entre a Matemática e a Economia é uma relação de aplicação. O recurso às técnicas matemáticas quando visto como um fim em si mesmo e não como um instrumento, evoca a conhecida história do bêbado que, numa noite escura, andava à volta de um lampião, procurando as chaves que não encontrava e que, quando um amigo, vendo-o há horas naquele rodopio, questionou se ele sabia se as chaves estavam perdidas ali, ele respondeu que não tinha a certeza, mas que ali é que estava a luz. Por outras palavras: a iluminação matemática.