Artigo de Francisco Louçã.
Como todas as paixões, o deslumbramento faz bem à saúde. Anima a circulação, eleva o espírito, compõe a alma. Tudo coisas boas. No entanto, há um problema: o deslumbramento, curativo de tantas maleitas, também tolda a visão, pois o ser amado ocupa todo o universo, a sua voz enfeitiça os passarinhos, os seus passos moldam o tempo. Para os comentadores, a doença dá mais grave: como alguém lembrava, deixam de ver o que está à frente do seu nariz. Creio que é o que se passa com o deslumbramento Centeno e o maravilhamento europeu, agora renascido, logo que há alguma coisinha para oferecer, um presidente simpático no Eurogrupo.
Fazia falta, o défice tem sido tremendo nos últimos anos, com a crise dos refugiados e o acordo com a Turquia, os muros no centro da Europa, o Brexit, as eleições desbaratadas, a incapacidade de relançamento económico, a bolha financeira, a teimosia das “reformas estruturais” para baixar salários, tudo retratos da desagregação europeia. Agora, a pergunta é: e Centeno que pode? Desconfio que ele próprio e o primeiro-ministro terão resposta mais prudente e que sabem que os maravilhadores se estão a esticar.
Um bom critério é olharmos para o que está à frente do nosso nariz, os sinais importantes desta semana na União. O primeiro é que foi votado o Orçamento europeu no Parlamento. Nunca um Orçamento tinha sido aprovado nestas condições: menos de metade dos votos a favor (295, havendo 154 contra e 197 abstenções) e pela primeira vez os socialistas não o apoiaram, rompendo uma tradição de sempre (aprovaram no Conselho e abstiveram-se no Parlamento, a política tem razões que a razão desconhece). As críticas são substanciais: o Orçamento é em termos reais menor do que nos anos anteriores, continuando uma trajectória de desmantelamento das políticas sociais e económicas comuns. Mais, corta a ajuda ao desenvolvimento, desguarnece a Europa na resposta aos refugiados, não responde nem aos riscos nem à realidade. O Orçamento não vê a Europa à frente do nariz, para usar a mesma metáfora. Os maravilhadores podiam começar a falar dos factos.
Mas talvez o segundo sinal seja ainda mais expressivo, porque demonstra o desarranjo das instituições, ou o cansaço e a desorientação dos mandantes. A Comissão Europeia apresentou as suas propostas para a “reforma do euro” e outros grandes desígnios. Já é pelo menos a terceira versão: houve os cinco cenários para proporem “a Europa a duas velocidades”, houve depois um sexto cenário que Juncker desencantou, há agora este mapa. Como era de esperar, ocupa-se mais do poder da própria Comissão do que da Europa: quer que o tal ministro das finanças europeu seja o comissário da pasta e vice-presidente da Comissão. Lá sairia Centeno meio do mandato, reduzido a um funcionário de transição. Depois, tudo o resto é mercearia: não há subsídio de desemprego europeu, não há transferências, não se passa nada.
Teresa de Sousa, europeísta encartada, constatou a óbvia “indiferença” com que os governos receberam as propostas da Comissão, entendendo-as como “ruído desnecessário”, ou até como desespero na defesa dos seus poderes. Assis, que nem por isso deixou de pedir a Costa que aproveitasse o embalo para uma “clarificação” (“clarificação” é o termo para eleições antecipadas por quem tem pudor de o dizer), também deitou água na fervura. Eles, que olham para a frente do nariz, notam que o que se está a passar é o empastelamento da decisão, exactamente como nos últimos anos.
Será assim? Cuidado. O chamado Tratado Orçamental, uma manigância de 2012 para consagrar as normas ajustativas e recessivas, entrará na ordem jurídica europeia pela porta do cavalo dentro em pouco. A máquina move-se. E não é uma maravilha, não é Centeno quem comanda, é a nossa velha conhecida, a austeridade.
Artigo publicado no blog Tudo Menos Economia.