Artigo de Ricardo Cabral.
O estudo que apresenta e defende uma Variante ao Programa de Estabilidade (PE) do Governo visa contribuir para a discussão em torno do Orçamento do Estado dos próximos anos.
Defende um aumento da despesa nominal total de 15,1% entre 2016 e 2021 (9,2% entre 2017 e 2021), acompanhado por “alívios fiscais”. A despesa é superior à prevista no Programa de Estabilidade do Governo de Abril de 2017: +1750 milhões de euros em 2018 que cresceria para +4200 milhões de euros em 2021, acompanhado de reduções de impostos em cada um desses anos (entre 200 e 1200 milhões de euros). Argumenta-se que a estratégia resultaria numa queda da dívida pública, em percentagem do PIB, maior do que a prevista no PE, acompanhada por um maior crescimento do PIB. E defende-se que uma prioridade política do Governo deveria ser a negociação em torno do “Objectivo de Médio Prazo” que a Comissão Europeia irá “recalcular” em 2018.
Numa Zona Euro com demasiadas políticas económicas irracionais, o que fazer? A resposta, afigura-se-me, é bater-se, fundamentadamente, em prol do que se consideram as políticas económicas mais sensatas, em cada fórum de discussão.
Isso significa que, apesar de não se concordar com as regras do Pacto de Estabilidade e do Tratado Orçamental, se vai às vírgulas e às notas de rodapé das referidas regras e se procura defender uma “variante” que cumpre com a quase totalidade das regras travão, que constituem esse Pacto e esse Tratado.
Também significa definir objectivos para o défice nominal que, se antecipa, serão considerados razoáveis pelo Governo e autoridades europeias e, por conseguinte, não serão, na sua perspectiva, excluídos à partida como “wishful thinking”.
Mas o paradoxal neste “diálogo construtivo”, que traduz uma cedência, no curto prazo, em questões e princípios importantes, de modo a procurar contribuir para uma alteração da política orçamental em até 24 décimas do PIB, é que a estratégia orçamental, defendida na referida variante, torna as actuais políticas económicas um pouco menos insustentáveis. Ou seja, ao propor ao Governo uma estratégia orçamental um pouco menos restritiva, se este a adoptar em parte, está a dar-se um contributo que aumenta a probabilidade do Governo ser capaz de prosseguir, com sucesso, a estratégia acelerada de consolidação orçamental e de redução de dívida, que definiu como objectivo. Ou seja, pode-se estar apenas a contribuir para adiar a data em que a actual estratégia “virtuosa” de consolidação orçamental fracassa, com a consequente possível entrada em incumprimento do País.
Porque é que vale a pena, por conseguinte, defender a Variante ao Programa de Estabilidade?
A resposta é que o dia do “juízo final” pode demorar muitos anos até ocorrer, ou pode até nem vir a ocorrer. As acções de Mario Draghi, desde 2012, demonstram o poder de certos decisores em alterar o enquadramento macroeconómico da Zona Euro de forma temporária, é certo, mas decisiva, salvando-a da implosão.
E, no entretanto, as décimas de ponto percentual do PIB – as alterações de pormenor da Variante –, que não alteram a dinâmica da dívida externa do País no longo prazo, têm um impacto enorme na vida de muitos portugueses.
Esta procura, passo a passo, décima a décima do PIB, onde obter ou reduzir receita ou realizar ou cortar despesa, não significa o abandono de causas maiores. Estou plenamente consciente de que não é através da consolidação orçamental que o País irá, mesmo em três, quatro ou cinco décadas, reduzir a dívida pública ou externa para valores sustentáveis.
Aliás, como se sabe, uma parte significativa do desempenho orçamental português no presente resulta de factores exógenos externos, que contribuíram para uma melhoria da balança corrente e de capital, i.e., da poupança externa, de cerca de 12,6 pontos percentuais (p.p.) do PIB entre 2008 e 2016, para +1,7% do PIB em 2016.
Os excedentes da balança comercial que o país regista desde 2012 são, em termos históricos, uma anomalia. Mais de metade da evolução da balança corrente e de capital, nesse período, é explicada pela queda do preço dos combustíveis (quase +3 p.p.), pela evolução da balança do turismo (+2,3 p.p.), pela redução da taxa de juro (+1,1 p.p.) e pela desvalorização do euro face ao dólar e outras moedas. É improvável que esses excedentes externos sobrevivam durante as décadas que seriam necessárias para reduzir o peso da dívida externa e, em consequência, da dívida pública para o limiar do sustentável. E, como se sabe, só é possível pagar dívida externa com poupança externa e não com poupança doméstica.
Note-se ainda que no presente, mesmo às baixas taxas de juro actuais, o excedente da balança comercial conseguido desde 2012, pela primeira vez desde 1941-43, é apenas suficiente para suportar o défice da balança de rendimento primário.
Imagine-se agora, por exemplo, que Jens Weidmann é escolhido para a presidência do BCE e adopta uma política de euro forte e de taxas de juro elevadas. Imagine-se ainda que os turistas, cansados de hotéis caros em Lisboa, Porto, Algarve e Funchal, com longas filas de espera em aeroportos e infraestruturas inadequadas, escolhem outras paragens, que o preço dos combustíveis sobe, tudo resultando num choque negativo nas contas externas de alguns pontos percentuais do PIB. Alguém acredita que o saldo orçamental primário positivo sobreviva porque “só depende” das nossas escolhas orçamentais? E que mais austeridade, em tal situação, resolveria o problema?
Não, o risco da actual estratégia orçamental do País é que, até se pode reduzir a dívida pública 20 pontos percentuais do PIB até 2021, mas depois fracassar. A política económica do País e da Zona Euro está a replicar os erros da Argentina antes de 2001. O cenário mais provável para o País continua a ser a entrada em incumprimento, após anos e anos consecutivos de suposta consolidação orçamental virtuosa.
Por conseguinte, concordo em larga medida com os comentários que são feitos ao estudo, nomeadamente e de forma simplificada, que o contributo encontrado na Variante ao Programa de Estabilidade é marginal e que ignora o peso excessivo da dívida pública e da dívida externa. Mas, a Variante não é só isso. É também o ganhar algum tempo e o ganhar alguma margem orçamental, que pode ser utilizada, como no OE2018, para promover um pequeno aumento de rendimentos e algum aumento do investimento.
E, claro, não invalida que se continue a insistir na tese de que é necessário reestruturar a dívida externa de Portugal.
Cumpre-me, por último, agradecer os excelentes e pertinentes comentários ao estudo “Estratégias orçamentais 2017-2021: as opções de política”, incluídos nesta edição da Revista Crítica Económica e Social.
Notas:
[1] Ricardo Cabral, Luís Teles Morais, Paulo Trigo Pereira e Joana Andrade Vicente, “Estratégias orçamentais 2017-2021: as opções de política”, Policiy
Paper 10, Instituto de Políticas Públicas, 21 de Setembro de 2017.