O Programa de Estabilidade e os limites da leitura inteligente

Artigo de Alexandre Abreu.


O desempenho económico deste governo, especialmente neste ano de 2017, é uma quadratura do círculo que a grande maioria, eu incluído, não julgava possível: crescimento próximo de 3%, forte descida do desemprego e criação significativa de emprego a par do cumprimento das regras orçamentais europeias, incluindo a consecução de saldos orçamentais primários muito positivos – acima de +2% em 2016 e 2017 -, que, como é sabido, têm um considerável efeito de arrefecimento sobre a economia.

Para este feito notável têm contribuído factores alheios ao governo (como a evolução da procura externa e a manutenção dos juros em níveis historicamente baixos) mas também, decisivamente, as opções de política económica do próprio governo, nomeadamente as diversas medidas de reposição de rendimentos e os seus efeitos directos e indirectos sobre a procura. Este governo tem assim demonstrado que havia mesmo alternativa à orientação do governo anterior, sendo esta alternativa claramente preferível não só do ponto de vista da recuperação dos rendimentos e dignidade dos trabalhadores e classes populares como também ao nível do desempenho macroeconómico agregado.

Sucede que mesmo este desempenho notável pode ser considerado insuficiente e insustentável. O investimento público encontra-se em níveis historicamente baixos, o que compromete a evolução futura da produtividade. A maioria dos trabalhadores em funções públicas (pese embora a reposição dos cortes salariais que tem vindo a ser efectuada e o descongelamento das carreiras que deverá iniciar-se em breve) não beneficia de qualquer aumento salarial há quase uma década, o que compromete a ambição de construir uma administração moderna, motivada e produtiva. A insuficiente dotação orçamental para sectores tão fundamentais como a saúde e a educação implica a progressiva degradação dos serviços. Cada uma destas formas de poupança no curto prazo é uma forma de ilusão fiscal, um tipo de défice não contabilizado projectado no futuro, na medida em que reduz as receitas futuras, aumenta as necessidades de despesa futuras e/ou compromete a satisfação de necessidades colectivas fundamentais.

O problema da trajectória actual é, pois, que apesar de extraordinária é ainda assim insuficiente e insustentável a prazo. Como sabemos, isso deve-se ao fardo do endividamento acumulado, o qual tem obrigado – e continuará previsivelmente a obrigar – a um gap de 4% do PIB ou mais entre o saldo orçamental e o saldo primário. Com uma tal parcela do orçamento do estado destinada à partida ao pagamento de juros, é impossível, mesmo em circunstâncias muito favoráveis, alcançar o equilíbrio orçamental sem ser através do tipo de ilusões fiscais e défices não contabilizados referidos no parágrafo anterior.

Esta insustentabilidade torna-se ainda mais notória quando projectada no futuro. No Programa de Estabilidade (PE) 2017-21 publicado em Abril de 2017 pelo Governo (no qual este apresenta a sua estratégia de consolidação orçamental de médio prazo no cumprimento das regras europeias, designadamente as decorrentes do Tratado Orçamental), as metas anunciadas para o saldo orçamental são tanto mais absurdas quanto mais distante o horizonte temporal: -1,5% em 2017, -1,0% em 2018, -0,3% em 2019, +0,4% em 2020 e +1,3% em 2021, correspondentes a saldos primários de, respectivamente, +2,8%, +3,0%, +3,6%, +4,2% e +4,8%. Facilmente se percebe que os elementos de insustentabilidade referidos em cima, desde já detectáveis na actual conjuntura singularmente favorável e com metas orçamentais de curto prazo relativamente menos restritivas, não deixarão de se mostrar explosivos se estas outras metas orçamentais muito mais exigentes forem mesmo para cumprir.

É no contexto deste debate que é muito bem-vindo o Policy Paper publicado em Setembro de 2017 pelo Institute of Public Policy, da autoria de Ricardo Cabral, Paulo Trigo Pereira, Luís Teles Morais e Joana Vicente, intitulado “Estratégias orçamentais 2017-21: opções de política”. O Policy Paper do IPP procede a dois exercícios principais. Em primeiro lugar, analisa com um elevado grau de detalhe e fundamentação técnica a razoabilidade e exequibilidade da estratégia de consolidação orçamental subjacente ao PE 2017-21, à luz da expectável ou indispensável evolução das principais componentes da despesa da administração pública no período em questão. Em segundo lugar, propõe uma estratégia alternativa, mais expansiva e mais protectora da sustentabilidade da administração pública, mas que ainda assim cumpre no essencial com as regras europeias.

Através da análise constante da primeira parte, os autores concluem pela insustentabilidade do PE 2017-21, mostrando não ser possível, nomeadamente se o Governo cumprir os diversos compromissos que tem assumido, que as principais componentes da despesa pública evoluam no período em questão de uma forma consistente com a evolução dos agregados orçamentais e macroeconómicos prevista no PE. Por exemplo, os autores mostram claramente que a evolução da despesa com pessoal da administração pública prevista no PE não é consistente com a prossecução simultânea da reversão dos cortes salariais, do descongelamento das carreiras e da estabilização do volume do emprego público. Das duas uma: ou algum destes objectivos terá de ser sacrificado no todo ou em parte (não falando já de novos aumentos salariais) ou a evolução da despesa com pessoal terá de ser superior ao previsto no PE. Da mesma forma, a previsão constante do PE para a evolução nominal da despesa com consumos intermédios da administração pública (dos quais 70% correspondem ao sector da saúde) não poderá ser alcançada sem implicar uma redução da despesa real ao longo do tempo e, com forte probabilidade, uma degradação significativa dos serviços.

Em suma, o PE (que constitui uma expressão do respeito estrito pelas regras europeias sob a forma de estratégia de consolidação orçamental) é em última instância inconsistente face aos compromissos e objectivos que têm vindo a ser assumidos pelo próprio governo e, no limite, insustentável do ponto de vista político e social. Ou, colocando a questão de outra forma ainda, as restrições europeias, nomeadamente na sua interpretação mais estrita, são incompatíveis com uma trajectória minimamente harmoniosa de desenvolvimento económico e social do nosso país. Se esta conclusão dificilmente surpreenderá quem há muito vem criticando o carácter nefasto das regras orçamentais europeias, importa dizer que esta análise vem fundamentar esse ponto de vista através de uma abordagem mais integrada, detalhada e rigorosa do que dispúnhamos até agora.

O segundo objectivo do Policy Paper consiste na formulação de uma proposta alternativa de estratégia orçamental de médio prazo, denominada Variante ao Programa de Estabilidade (VPE). A designação é adequada, uma vez que a VPE parte do cenário macroeconómico e das premissas do PE 2017-21 para lhes introduzir algumas alterações. Por um lado, actualizando o cenário macroeconómico de modo a ter em conta a poupança em juros decorrente dos pagamentos antecipados ao FMI (que o PE não havia considerado), bem como os dados económicos mais favoráveis que ficaram disponíveis entre Abril e Setembro deste ano (o que amplia a base de partida, criando margem orçamental adicional em cada um dos anos do exercicio). Por outro lado, assumindo metas orçamentais um pouco menos restritivas ao longo do período em análise, de modo a ganhar margem orçamental adicional e assim acomodar dotações adicionais, principalmente ao nível das despesas com pessoal e dos consumos intermédios no sector da saúde.

O acréscimo anual de despesa face ao PE proposto na VPE é bastante maior do que o impacto negativo resultante sobre o saldo orçamental, uma vez que o aumento da despesa tem um efeito expansivo de segunda ordem sobre o produto e, consequentemente, sobre a receita fiscal e o saldo orçamental, que compensa parcialmente o efeito negativo de primeira ordem sobre o saldo orçamental. Juntamente com a margem adicional que advém da revisão do quadro macroeconómico, isto permite aos autores elaborarem um cenário alternativo que permite dedicar entre 600 M€ e 1100M€ anuais adicionais (conforme os anos) a mitigar as consequências sociais e políticas da insuficiente dotação orçamental constante do PE que havia sido identificada na primeira parte do Policy Paper, continuando no entanto a alcançar saldos primários fortemente positivos (entre +2,6% e +3,6% entre 2017 e 2021 na VPE, que comparam com +2,8% a +4,8% no PE). Embora os autores assinalem que mesmo esta revisão relativamente modesta dos saldos primários exigiria o acordo das autoridades europeias na medida em que dependeria da uma redefinição em termos mais favoráveis do Objectivo de Médio Prazo para a consolidação orçamental, defendem que respeita no essencial as regras europeias, ao mesmo tempo que permite prosseguir a consolidação orçamental de uma forma menos restritiva e mais equilibrada. A VPE pode assim ser considerada um novo exemplo da “leitura inteligente” das restrições orçamentais europeias que o Partido Socialista tem advogado como estratégia: uma abordagem mais expansiva, mais flexivel e menos restritiva à estratégia orçamental dentro das restrições dos tratados e normas, tirando partido da ambiguidade e falta de clareza das próprias restrições para maximizar a margem de manobra orçamental, mas evitando porém qualquer confronto aberto com as autoridades europeias. E não há dúvida que esta leitura é efectivamente mais inteligente do que a alternativa mais restritiva: a consolidação orçamental de médio prazo menos brusca e exigente que aqui é proposta é sem dúvida preferível do ponto de vista dos efeitos sociais e políticos.

Dito isto, deve também dizer-se que esta proposta alternativa, em virtude da opção metodológica de utilização do cenário do PE 2017-21 como base de partida, fica inevitavelmente contaminada pelos problemas originais do PE, incluindo o seu profundo irrealismo. Recorde-se que o cenário macroeconómico do PE 2017-21 assume taxas de crescimento do PIB real sempre em redor de 2% até ao ano de 2021 apesar do saldo primário cada vez mais superavitário, que no ano de 2021 atinge os +4,8% (!). Muito mais do que um exercício técnico de previsão do futuro, os Programas de Estabilidade elaborados em cada ano pelos governos europeus no âmbito do braço preventivo do Pacto de Estabilidade e Crescimento são um exercício político que se destina a demonstrar perante as autoridades europeias a consistência entre as opções de política económica de curto prazo (patentes nos orçamentos do estado de cada ano) e as regras europeias em matéria de consolidação orçamental de médio prazo. Para permitir demonstrar esta consistência, mesmo quando ela não exista (porventura felizmente), não admira que os cenários macroeconómicos dos PE errem quase sempre por excesso de optimismo, especialmente na parte mais distante do período que em cada momento está em análise. Também por isso, não surpreende que os objectivos de médio prazo (MTO) estabelecidos nos diversos PE, ano após ano, não só pelo governo português como pelos restantes governos europeus, sejam, com raras excepções, sistematicamente falhados. Basicamente, a Comissão Europeia finge que as suas regras orçamentais fazem sentido, enquanto os governos fazem o seu melhor para fingir que as cumprem.

A proposta de VPE formulada neste Policy Paper é, por isso, uma criatura um pouco estranha: por um lado, propõe-se introduzir maior realismo e sustentabilidade política e social na estratégia orçamental do governo; por outro, parte para esse efeito de um cenário-base que é intrinseca e deliberadamente irrealista e que, nesse sentido, obnubila os problemas de sustentabilidade com que a economia portuguesa se confronta. É que se o cenário do PE é preocupante do ponto de vista da sua sustentabilidade, tal como demonstrado pelos autores deste Policy Paper, muito mais preocupados devemos ficar se tivermos em conta que mesmo esse cenário é profundamente optimista e que a probabilidade de que se concretize é bastante diminuta. De onde podemos concluir adicionalmente que o problema da “estupidez” das regras orçamentais europeias, na expressão utilizada em tempos por Romano Prodi, não se resolve simplesmente através de leituras mais “inteligentes” – é mais fundamental e restritivo do que isso.

Em todo o caso, os Programas de Estabilidade servem um propósito principalmente indicativo e performático, ainda que sejam um elemento importante do jogo político com Bruxelas. Em última instância, o que conta realmente para a implementação da política orçamental é o Orçamento do Estado de cada ano e a sua execução. Tal como argumentam os autores, é vital garantir que a consolidação orçamental não põe em causa as perspectivas de desenvolvimento económico e social do país, algo que será tanto mais difícil de assegurar quanto a conjuntura económica possa ser menos favorável no futuro sem que as restrições europeias sejam entretanto alteradas ou postas em causa. Por mais notável que seja o desempenho deste governo, esta tensão fundamental da economia portuguesa não desapareceu e acentuar-se-á com certeza no futuro. Mas é bastante mais provável que vá sendo resolvida a cada ano no plano político, no confronto entre diferentes interesses, objectivos e restrições em sede de discussão do Orçamento do Estado, do que através de aperfeiçoamentos técnicos dos Programas de Estabilidade.