O elefante na Variante ao Programa de Estabilidade 2017-2021

Artigo de Eugénia Pires.


O Instituto de Políticas Públicas (IPP) apresentou um policy paper[1], da autoria de Ricardo Cabral, Luís Teles Morais, Paulo Trigo Pereira e Joana Andrade Vicente, em que se pretende debater as condicionantes da actual estratégia orçamental em antecipação da proposta de Orçamento de Estado para 2018.

Tomando como referência o Programa de Estabilidade (PE) submetido à comissão Europeia em Abril último, argumenta-se, dentro do mesmo contexto macroeconómico, que uma estratégia de consolidação orçamental menos intensa pode produzir resultados mais favoráveis que aquele programa, a Variante a Programa de Estabilidade (VPE).

Figura 1. Evolução do Saldo Orçamental Primário, 2017-2021

Um contexto favorável de crescimento superior ao esperado, menor despesa com juros e aumento da política de dividendos pagos pelo Bando de Portugal se coadjuvado por um objectivo de saldo orçamental estrutural de médio prazo menos exigente, em linha com o Tratado Orçamental de -0.5% em vez de +0.25%, cria margem orçamental que permite necessários aumentos da despesa pública com pessoal, dos consumos intermédios, das prestações sociais e do investimento público, bem como significativo desagravamento fiscal em 2021 (1.2 mil milhões de euros em IRS, IRC e Iva), melhorando a trajectória da sustentabilidade da dívida pública no imediato e marginalmente em 2021.

A VPE tem o mérito de lançar o debate sobre o projecto de Orçamento de Estado para 2018 e sobre o condicionamento do exercício da soberania fiscal imposto pelas autoridades europeias. Ela torna pública a margem orçamental que o Ministério das Finanças beneficia com a melhoria do crescimento e quebra dos juros e alerta para oportunidade que a renegociação com as autoridades europeias do objectivo de médio prazo para o saldo primário estrutural aquando da revisão trianual em 2018 poderá, havendo vontade política, configurar.

Porém, a designada “variante ao programa de estabilidade” propõe-se a este exercício dentro, não só, do mesmo contexto macroeconómico mas, acima de tudo, dentro de um mesmo quadro ideológico, o que dá aso a algumas contradições e torna o estudo pouco ambicioso na proposta para renegociação das metas de política orçamental. Reconhece o indesejável impacto social e político, e a irracionalidade económica de um saldo primário “excessivo, todavia reitera a prioridade à consolidação orçamental, sobretudo, a prioridade a uma política orçamental gerida em função da reputação internacional da economia e suas finanças públicas e dos compromissos com as autoridades europeias. Sugere a revisão do objectivo de médio prazo, de +0.25% para -0.5%, contudo considera que isso é inverosímil porque não é politicamente aceitável –nem as autoridades portuguesas se atrevem a incumprir, nem as autoridades europeias estão abertas a relaxar as suas exigências.

Figura 2. Evolução Dívida Pública

O enviesamento ideológico, que é o do neoliberalismo, e dentro deste, na sua variante promotora da estrita obediência a regras de contenção orçamental, o ordoliberalismo alemão, limita da azo a contradições e limita as propostas de reforma política, como se o estudo estivesse incompleto. Dito de outro modo, o elefante na sala na VPE é o problema do sobreendividamento público e a necessidade de uma restruturação da dívida pública. Os autores sabem que quando se tem uma dívida de 130% do PIB, a terceira maior dívida da União Europeia, falar do défice é falar da dívida pública porque a despesa com os juros da dívida não é desprezível. Ela representa 4% do PIB, cerca de 8 mil milhões de euros, quase tanto quanto o orçamento da Saúde.

Como a trajectória da dívida da figura 2 evidencia, não existe grande diferença entre a proposta do PE e a da VPE. Ambas pretendem reduzir a dívida pública 20 p.p. em 5 anos. Isso implica, que além da despesa em juros, existe pressão para reduzir a dívida a um rácio de 4 p.p ao ano, num país depauperado pela intervenção da troika, com grandes necessidades de investimento público e privado. Os objectivos expressos no PE do governo, mais cauteloso em relação à dinâmica do crescimento, requerem que um excesso de receita pública seja afectado não só ao pagamento da despesa com juros da dívida pública como também se angarie fundos em excesso para reduzir directamente a dívida. Por seu turno, a VPE assume que essa convergência da trajectória da dívida se fará essencialmente por via do crescimento (e dos preços).

Porém, os próprios autores reconhecem a fragilidade da sua proposta face às necessidades estruturais da economia portuguesa. Reconhecem que não é desejável, social e politicamente, um saldo primário “excessivo”, por exemplo de 4.8% em 2021, evidenciando mesmo que será contraproducente e comprometedor da recuperação da economia um saldo global superior a 1% a 2% do PIB. Dada a actual despesa em juros, isto significaria um saldo orçamental global de -2.5% a -1%. Acontece que a sua proposta, de 3.6% (saldo global de +0.1%) fica ainda bastante longe das metas consideradas social, politica e economicamente adequadas, mais precisamente, se tomarmos o ponto médio, a cerca de 4.7 mil milhões acima do objectivo.

O estudo reconhece ser importante uma renegociação da dívida pública, pelo menos com os credores oficiais. Porém, o problema é adiado. Por um lado, argumenta-se que ele cai fora do âmbito do estudo. Por outro, argumenta-se que por questões reputacionais, uma estratégia de consolidação orçamental como a que propõem cria melhores condições para que essa renegociação ocorra.

Articula-se o dilema entre o impacto sobre os juros que a prioridade à defesa dos interesses do mercado e dos interesses dos países que controlam os credores oficiais implica, e a urgência de uma redução do serviço da dívida nas suas múltiplas valências –despesa com juros e refinanciamento de capital, mas fica-se ideologicamente refém dos mercados e agentes externos. Fala-se em dinâmicas distintas mas não se enfatiza a sua distinta dimensão temporal, nem se reconhece a lógica conflictuosa da agenda dos agentes económicos envolvidos neste dilema. A um mercado constrangido por os investidores com dinâmicas de curto prazo, o chamado hot-money que investe numa lógica de curto prazo e vende ao desbarato o investimento mal apareçam os primeiros indícios de problemas, tal como durante a intervenção da troika, opõem-se uma urgente estratégia de médio e longo prazo de desenvolvimento económico sustentado para um povo empobrecido pela actuação dos credores oficiais.

O estudo atribui uma importância desproporcionada ao mercado, reduzindo o leque de instrumentos de política económica à disposição das autoridades e resolve o dilema com uma longínqua e vaga promessa de uma eventual renegociação dentro do contexto do euro a ocorrer no futuro, se e quando os agentes externos o decidirem. Apesar do FMI, através do IEO, denunciar o excesso e as implicações de uma consolidação orçamental excessiva para Portugal (de precisamente 4.8 pp) face a outras alternativas, a penalizadora consolidação orçamental é aceite como a norma, como se não existissem outros instrumentos de política económica que pudessem ser utilizados pelas autoridades nacionais e europeias.

O favorecimento das elites capitalistas, em particular os credores financeiros e os capitalistas multinacionais endividados, em detrimento dos segmentos mais pobres e desprivilegiados evidenciada durante a intervenção da troika e continuada de forma abusiva posteriormente pelas autoridades europeias, supostamente neutras, não é denunciado nem invocado como o maior impeditivo para uma necessária restruturação da dívida em termos que sejam vantajosos para a maioria do povo português. Nem tão pouco se tenta propor soluções mais audaciosas que reponham a injustiça do tratamento imposto pelos agentes externos e que permitam a entrada de fundos de magnitude significativa, como no caso do repatriamento dos juros pagos indevidamente ao BCE e seus accionistas no âmbito do primeiro programa de recompra de dívida pública em mercado secundário, o designado SMP, ou se lute pela supressão da injusta sobretaxa do FMI, aceitando como normal que entidades supranacionais de resgate, regidas pelo enquadramento regulamentar das Nações Unidas, lucrem substancialmente à custa dos povos em crise.

Em suma, a restrição ideológica impede que se recomende o elevar da fasquia da negociação com as autoridades europeias e se alargue o leque de possibilidades em termos de instrumentos de política no que respeita ao problema da dívida pública. Além disso, havendo o reconhecimento de que a estratégia de contenção orçamental não é a forma de resolver os problemas estruturais do país, e de que a intrínseca instabilidade financeira que uma estratégia de financiamento exclusivamente assente nos mercados implica, surpreende que o estudo não mencione a necessidade de começar a avaliar criticamente os mecanismos de resgate existentes e de começar a articular e a debater um plano contingente para quando a estratégia de contenção orçamental falhar e ou para quando a próxima crise financeira chegar.

Neste âmbito, é urgente debater as fragilidade do sistema financeiro nacional e internacional e avaliar criticamente o actual enquadramento institucional de resgate, formulando soluções que assegurem que não são os 99% que vão mais uma vez pagar a crise. É necessário avaliar criticamente o actual Mecanismo Europeu de Estabilidade e os planos de o transformar num Fundo Monetário Europeu, denunciando que a sua abordagem em caso de crise de sobre-endividamento externo é idêntica à da intervenção da troika entre 2011 e 2014 porque ela assenta na mesma fórmula de ajustamento macroeconómico e rápida consolidação orçamental. É urgente denunciar que ainda continua a não ser reconhecido o direito inalienável de um estado soberano desenhar as sua próprias políticas macroeconómicas, incluindo o direito de unilateralmente restruturar a sua dívida e de não ser, por isso, coagido por nenhuma outra nação ou credor, incluindo os oficiais. Urge igualmente implementar, à escala global, um verdadeiro mecanismo de restruturação de dívida soberana que não proteja apenas os interesses dos credores financeiros e sujeite a intervenção dos credores oficiais ao escrutínio constitucional e da carta internacional dos direitos humanos, colocando a sustentabilidade financeira da dívida a par do desenvolvimento económico e da sustentabilidade social, política e ambiental, e que medeie a relação entre devedor e credores de forma transparente e independente, tendo em atenção os múltiplos e conflituosos interesses sociais envolvidos nesta delicada operação.


Notas:

[1] Aqui: http://www.ipp-jcs.org/wp-content/uploads/2017/09/VPE-2017-2021_20set_VF2-corr.pdf