Artigo de Renato Carmo.
A tragédia de Pedrogão Grande impeliu o país a discutir e a debater pela enésima vez a gravidade dos fogos florestais e a sua relação com o desordenamento territorial, o despovoamento e o envelhecimento das populações rurais.
Parte da discussão tem sido rica e até pedagógica. Aliás, convém realçar o esforço de certa comunicação social em qualificar o debate e a análise ao contrário do que sucedeu num passado recente. Face a este debate não é possível avançar com argumentos inovadores relativamente ao que tem sido refletido e discutido. Contudo, gostaria de identificar três questões estruturais que estão a montante dos problemas que o país tem vivido e na base dos seus grandes desequilíbrios territoriais: a questão da população, a questão dos serviços públicos e a questão da propriedade. Estas serão apresentadas sinteticamente, correndo o risco de algum reducionismo.
Como tem sido referido por vários especialistas, não é difícil depreender que a saída continuada de população das aldeias e o respetivo abandono das terras contribuiu decisivamente para o aumento do risco de incêndios que se tornaram mais frequentes, extensos e devastadores. É assim evidente que o problema do mundo rural é cada vez mais uma questão de falta população. No entanto, nestes tempos em que Portugal sofreu e ainda sofre uma profunda crise económica e social, observa-se que o desequilíbrio populacional deixou de ser exclusivo das zonas mais deprimidas. As estatísticas já vinham evidenciando que certos espaços urbanos e suburbanos, alguns deles em contexto metropolitano, estão a envelhecer e em perda de população. A emigração, que atingiu níveis similares aos da década de 60 do século passado, acelerou esta tendência. Neste sentido, parece-me particularmente difícil que, numa altura em que até determinadas áreas urbanas estão perda, se considere como possível a recuperação demográfica de parte significativa dos espaços rurais. Na verdade, dificilmente isto irá acontecer, mesmo que a emigração diminua drasticamente e que os fluxos imigratórios aumentem significativamente. Muitas aldeias vão mesmo definhar no futuro.
Mas esta inevitabilidade não significa o desaparecimento do rural. Bem pelo contrário, é um erro conceber as zonas rurais apenas como territórios de fixação. Recente investigação tem demonstrado que estas são crescentemente zonas de circulação e de mobilidade. Ou, dito de outro modo, os espaços rurais não vivem somente das pessoas que neles habitam, vivem também das pessoas que por eles circulam e que momentaneamente podem fixar-se. De facto, a atração de muitas localidades deriva fundamentalmente de fatores que cruzam o tradicional com o moderno, como o turismo, o consumo, o lazer, a segunda habitação, o desporto, o mero desfrute paisagem, mas também o património, as festas e as romarias, as feiras de produtos tradicionais, etc. Na verdade, este rural de circulação está bem vivo. O problema é que parte da sua dinâmica tende a assentar em pés de barro, correndo, entre outros, o risco de se transformar numa mera montra e não numa realidade com vida própria que derive da relação frutífera entre as atividades económicas, os serviços prestados e as comunidades locais.
E isto remete-nos para a questão dos serviços públicos. Durante as últimas décadas a maior parte dos espaços rurais padeceram de uma certa bipolaridade resultante de políticas públicas contraditórias, que tentarei balizar de forma um tanto redutora. Assim, de um lado, particularmente a nível municipal, verificou-se, desde os anos 80, uma melhoria significativa dos equipamentos e das infraestruturas com consequências relevantes na vida das pessoas. Do outro, sobretudo a nível central, o Estado foi explanando, principalmente a partir dos finais dos anos 90, uma política de redução e de encerramento de serviços públicos prestados às comunidades locais, designadamente nos de apoio social, educativo e de saúde. Esta lógica de desmantelamento teve como resultado a criação de um enorme fosso entre as populações locais e a sua ligação às funções sociais e administrativas do Estado. É no âmbito desta senda regressiva que, por exemplo, se decide acabar com o corpo e a rede de guardas florestais que tanta falta fazem à proteção e à gestão da floresta. Todavia, numa perspetiva de racionalização dos recursos públicos, alguns destes fechos poder-se-iam justificar. No entanto, na maior parte dos casos as medidas foram tomadas sectorialmente, não se desenvolvendo qualquer estratégia global e transversal de articulação entre os diversos ministérios.
Assim, à medida que se investiu no saneamento básico, na construção de equipamentos, no alcatroamento das ruas, nas acessibilidades viárias, deu-se, paralelamente, um desmantelamento dos serviços públicos mais próximos. Estas duas tendências não foram completamente coincidentes no tempo, mas acabaram por acontecer em muitas zonas rurais. Ou seja, o país ficou com vilas e aldeias melhor apetrechadas e limpas, mas mais desprotegidas em termos de serviços públicos. Este paradoxo representou uma das causas principais para que muitos destes territórios não detivessem a capacidade necessária em fixar parte das suas populações.
Perante este estado de coisas, a resposta no presente momento não deve ser a de reabrir escolas e centros de saúde. Isso não só não é financeiramente viável na maior parte das situações como, inclusivamente, não é desejável (tirando algumas exceções). O Estado central tem de se virar para as comunidades rurais mas a partir de soluções inovadoras que não passam necessariamente por reabrir o que no passado foi encerrado. Isto representa um grande desafio para as políticas públicas para o qual as universidades e os institutos politécnicos deveriam ser mobilizados no aprofundamento dos estudos e na conceção de políticas de base territorial capazes de promover a equidade social.
O objetivo passa efetivamente por reforçar a presença dos serviços públicos nestes territórios, todavia, isto não significa inventar a roda, mas sobretudo dar condições de viabilidade às instituições públicas que ainda resistem nestas regiões, como é o caso das instituições de ensino superior instaladas nas capitais de distrito e em certas sedes de concelho e que podem prestar um serviço valiosíssimo nas áreas rurais. A título de exemplo, o país detém uma rede descentralizada de escolas superiores agrárias com competências acumuladas no conhecimento da região onde se inserem. Estas podem ser utilizadas e mobilizadas para o estudo, a elaboração e a conceção das melhores soluções relativamente aos necessários planos de reflorestação e de ordenamento locais, assim como, definir as melhores estratégias a desenvolver no que diz respeito ao levantamento e identificação do cadastro da propriedade rústica e agrícola.
A propriedade é outra das grandes questões do mundo rural. Como se sabe, esta enquadra diferentes configurações fundiárias e lógicas de gestão conforme o contexto territorial, topográfico, ambiental e agrícola. Isto significa que devem existir soluções diferenciadas para a gestão da propriedade agrária que vão desde a constituição de um banco de terras, o emparcelamento de micro propriedades, até à possibilidade de expropriação e nacionalização de zonas florestais completamente abandonadas. A aplicação destas e de outras medidas depende dos variados contextos e dos seus desequilíbrios e necessidades particulares. Também a este respeito o conhecimento produzido pelas escolas agrárias e institutos superiores pode ser decisivo no sentido de implementar as melhores estratégias e as respostas mais viáveis e acertadas. Não existe uma única solução para a questão da propriedade, contudo todas a soluções são difíceis e requerem vontade e até coragem política.
Nem o mundo rural, nem a agricultura acabaram ou vão acabar como, alguns autores vaticinaram no passado. No entanto, estas realidades transformaram-se profundamente e com elas vieram novos desafios em relação aos quais a maior parte dos governantes fecharam os olhos. É hora de os abrir e de enfrentar de vez o que tem de ser enfrentado. O país não pode continuar a esperar e a persistir neste desalento que nos atormenta a todos e corrói o nosso futuro coletivo.
Artigo publicado no Jornal Económico