Draghi, Temer, Macron e Centeno

Artigo de João Ramos de Almeida.


As reformas estruturais que reforçaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima.”

A afirmação não é de Manuel Carvalho da Silva, mas de Mario Draghi, na sua intervenção no Fórum do BCE, que se realiza até hoje na Penha Longa, em Sintra.

Há alguma ironia, como assina Sérgio Aníbal neste artigo do Público, de ver o presidente do BCE a criticar a excessiva moderação salarial. Mas a sua preocupação não tem directamente a ver com a vida desgraçada de quem recebe baixos salários, na sua vida em gueto social que força a um injusto adiamento do seu futuro, ou no futuro de países em desigualdade social, sem pleno emprego, em desequilíbrio constante e submisso por inerência.

Os macroeconomistas, uns certos macroeconomistas, têm esta carapaça associal que os faz aceitar a desgraça alheia sem revolta, porque supostamente as suas ideias serão melhores para esses desgraçados. A sua preocupação não está no desemprego que provoca esses baixos salários, mas no facto de que a retoma não está a traduzir-se em mais inflação, o que implicaria um fim mais rápido das polémicas medidas expansionistas (taxas de juro muito baixas e compra de dívida pública nos mercados).

Draghi até pode estar sinceramente tenso. Mas o problema é que esse tipo de reformas estruturais ainda se encontra em preparação por todo o mundo, como que conduzido por uma batuta geral, impregnada de uma filosofia vitoriosa. Não se trata de uma questão de eficácia económica e social, mas de uma questão de poder social, do enfraquecimento social de uma determinada visão do mundo, aquela que Corbyn gritou no festival Glastonbury como sendo possível caso a maioria da população lesada se mantenha unida.

É, aliás, significativo que aquilo que Draghi assinala – com punhos de renda – seja precisamente o que visam as reformas laborais defendidas por Temer, Macron (aprovada hoje) e até por… Mário Centeno, fosse ele ministro da área laboral. Aliás, resta saber se o adiamento para 2018 das mexidas na legislação laboral portuguesa não se prenderá, tanto com pressões comunitárias para nada mexer na reforma de 2012, como para evitar medidas mais gravosas, sem fazer perigar o entendimento parlamentar à esquerda.

Veja-se um resumo dos vários programas.

O que defende Temer?

Se quer ouvir uma reforma com banda sonora, veja aqui. E depois diga se acredita. Nalguns aspectos, Portugal está bem “à frente” do que se visa…

Acordos de empresa: a lei vai ser revista para permitir a assinatura de acordos de empresa, regulamentando para tanto a eleição dos representantes dos trabalhadores nas empresas com mais de 200 trabalhadores. Terão mandatos de dois anos, podendo ser reeleitos. Esses acordos de empresa passarão a poder abranger a divisão dos períodos de férias (quando hoje são indivisíveis), aumentar a jornada de trabalho para 12h diárias e 48h semanais (hoje de 8h a 10h diárias e 44 semanais), exclusão do tempo de transporte como horário de trabalho (hoje está incluído caso não haja transporte público), intervalos de trabalho no mínimo de 30m e que o intervalo seguinte seja suprimido (quando hoje são de uma hora para repouso e alimentação em caso de mais de 6h de trabalho num dia e, em caso de ser feito apenas 30m o Supremo Tribunal considera que o intervalo seguinte será de 1h30).

Acções contra empresas: se o trabalhador interpuser uma acção judicial contra a empresa terá de pagar as custas periciais, só sendo gratuito para quem não tiver recursos.

Limites na jurisprudência: Diz a Edição do ElPais: O novo projeto quer requisitos mínimos para a edição de súmulas e outros enunciados de jurisprudência do TST, tomando por base procedimentos já previstos no Código de Processo Civil e para o STF. “Assim, com a redação dada ao art. 702 da CLT, pretendemos limitar as interpretações ampliativas, e em alguns casos criativas, por parte do TST.” Claro, não é?

“Terceirização” para todas as actividades e para algumas do Estado: a duração dos contratos temporários passa de três para seis meses, com possibilidade de extensão por mais 90 dias, ou seja, até nove meses de trabalho temporário. Segundo o El Pais, o texto aprovado inclui a possibilidade de contratação de temporários para substituir grevistas, se a greve for declarada abusiva ou houver paralisação de serviços essenciais. Cada vez mais claro! Não há vínculo contratual entre a empresa e o trabalhador “terceirizado”, nem há qualquer garantia (hoje 4% do valor do contrato é retido como garantia do cumprimento dos direitos laborais). O pagamento de direitos laborais fica limitado à empresa que directamente o contrata (quando hoje, escreve o El Pais, “o trabalhador terceirizado poderia cobrar o pagamento de direitos trabalhistas tanto da empresa que terceiriza quanto da tomadora de serviços, a chamada responsabilidade solidária”). Vantagem suprema: “O empregador não poderá demitir o trabalhador efetivo e recontratá-lo como terceirizado durante de 18 meses. Depois de ano e meio… Ao que parece, o projecto recupera um projecto de Fernando Henrique Cardoso, com 19 anos. Os seus apoiantes vêem a capacidade de criação de empregos – sempre naquela lógica, quanto mais selvagem, maior o estímulo para a criação de emprego (nunca falando dos que morrem). O projecto foi criticado pelas centrais sindicais por fragilizar e precarizar as relações laborais, reduzindo salários e elogiado pelo Governo porque “ajuda muito porque facilita a contratação de mão de obra temporária, e facilita a expansão do emprego”.

Corte nas quotizações sindicais: Passam a ser facultativas (quando hoje era de um dia de trabalho por mês, qualquer coisa como 3% do salário, sejam sindicalizados ou não).

Despedimento por mútuo acordo: O trabalhador pode rescindir por mútuo acordo que continua a receber o fundo criado em seu nome, reduzindo-se a multa da empresa de 40 para 20%: pode retirar 80% desse Fundo, mas perde o direito a receber o seguro-desemprego (quando hoje pode ter acesso aos seus fundos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço).

E o que defende Macron?

A edição de hoje do Mediapart consagra a sua manchete ao tema. O governo pediu um pedido de legislação para alterar a legislação laboral, que deverá ser apresentado no conselho de ministros hoje, a 28/6/2017.Foi no Mediapart que encontrei um artigo clarificador das intenções. Mas também aqui.
Como é possível de verificar no projecto de autorização legislativa, é dada grande atenção à negociação de condições laborais ao nível de empresa, seja no quadro de relações individuais como colectivas. Essas alterações incluem as áreas em que a negociação não pode ultrapassar a negociação colectiva sectorial (o mesmo é dizer: as áreas em que se sobrepõe à negociação sectorial), rescisão de contrato em caso de recusa pelo trabalhador, primazia ao diálogo em concertação ao nível de empresa, amálgama da representação dos trabalhadores (das áreas laborais e de higiene e segurança no trabalho), tudo a par de uma representação dos trabalhadores na administração e órgãos de supervisão.

Sobre outros temas, veja-se aqui. Eis um resumo:

Tudo definido na empresa: Despedimento: fazer depender as razões de despedimento das condições de cada empresa, definidas pelo patronato (quando hoje os despedimentos, se podem ocorrer devido a baixas de actividade, têm de ser observáveis durante um dado período de tempo consoante a dimensão da empresa). Definição das condições para contratos a prazo: o patronato definiria a duração, o motivo, o número de renovações, o período de carência, a forma de rescisão. Acordos de empresa: Os acordos sectoriais apenas aconteceriam em casos marginais e os acordos de empresa teriam primazia sobre as condições contratuais sectoriais.

Apoio aos sindicatos minoritários: o patronato poderá colocar à votação dos assalariados um acordo assinado com sindicatos com pelo menos 30% dos votos nas eleições profissionais. O projecto prevê mesmo que o patronato poderá colocar à votação um acordo cuja negociação não tenha sido concluída…

Reduções de indemnizações por despedimento: O projecto prevê um limite máximo às indemnizações por despedimento sem justa causa.

Despedimento facilitado: Nos casos dos trabalhadores pertencentes a multinacionais, é admitido como válido razões nacionais para o despedimento de trabalhadores, mesmo que o grupo tenha lucros a nível internacional. Redução de 12 para dois meses o prazo fixado para recorrer à primeira instância judicial em caso de litígio laboral. Aumento de número de trabalhadores a partir do qual a empresa, em caso de despedimento, tem de desencadear um plano de salvaguarda de emprego.

E o que defende Centeno? 

Mário Centeno não é o ministro da área laboral, mas tem um pensamento estruturado sobre essa área. Partindo do livro publicado pela Fundação Manuel Soares dos Santos, com o sugestivo título: “O Trabalho, uma visão de mercado”, que resume as suas ideias, aproveita-se a própria síntese feita por Mário Centeno.

Uma ideia interessante: quem despede deve ter uma taxa social única agravada. Porque, na prática, essas empresas transferem para toda a comunidade aquilo a que Centeno frisa ser o “custo privado” do despedimento que realizaram. Mas esta ideia de “internalização” nas empresas do custo do desemprego tem, porém, outras vertentes.

Centeno defende que o subsídio de desemprego deveria se tornar em contas individualizadas, que o trabalhador ia usando ao longo da sua vida activa. Quando se reformava recebia o remanescente – “é o seu dinheiro”. Mais uma individualização versus solidariedade. E com mais cambiantes:

  • privilégio da relação negocial ao nível da empresa: “Empresários e trabalhadores têm de compreender que o alargamento das possibilidades de negociação directa é benéfico para ambos. Esta atomização do paradigma social tornaria a determinação salarial um fenómeno essencialmente interno à empresa e, como tal, mais próximo da realidade económica”. Ou seja, como se não houvesse uma relação de poder enfraquecida que puxasse o salário para baixo. Centeno defende a consagração de um Acordo Geral de Empresa, figura que, embora seja semelhante ao acordo de empresa, pode ser negociado “sem intermediação do sindicato sectorial” e “permitindo acomodar ciclos económicos próprios de cada empresa”. Ou seja, como se vivêssemos num mundo perfeito. “A concorrência entre sindicatos e comissões de trabalhadores só pode trazer bons resultados”. Até agora a concorrência entre centrais sindicais apenas tem trazido maus resultados…
  • Contrato único: Centeno defende o fim dos contratos a prazo e a existência de apenas um tipo único de contrato. Mas isso requereria “um quadro legal que estipule um novo equilíbrio entre a componente processual da protecção dos direitos dos trabalhadores e das empresas”. Mas a sua ideia de “direito” tem um enfoque conceptual muito economês, mesmo quando se fala da vida dos trabalhadores: “direito tem o significado muito preciso de garantir o retorno dos investimentos de cada um dos intervenientes na relação laboral”. Como? Compensações “mais generosas” por despedimento – ao contrário do que feito desde 2010, quando se cortou 30% – , períodos de pré-aviso mais alargados (supõe-se para o trabalhador procurar emprego, algo que o patronato recusará…), mas, por outro, “prolongar o período experimental” – “suficientemente longo é um ingrediente essencial para promover a formação de pares trabalhadores-empresa (…), mas não pode ser demasiado longo, caso contrário, corre o risco de promover a rotação ineficaz de trabalhadores”. Limitar a intervenção judicial aos despedimentos por causas não económicas e de justa causa, “sem interferir nas decisões económicas das empresas”. O resto pressupõe-se que não aconteça porque o patronato não necessitará de outras figuras. O risco desta ideia é o de que a instabilidade existente hoje, se alargue aos contratos únicos, supostamente permanentes.

Draghi poderá estar preocupado com o fim da política expansionista. Mas o mundo real é outro. E a poderosa política dominante, por muito que diga o contrário, quer um mundo do Trabalho de baixos salários e trabalhadores dominados, com a justificação de que assim se criarão mais postos de trabalho. Até é possível que sim. Mas que vida será essa? Que país será esse?

O dilema não está entre quem tenha trabalho e quem não tenha (ou seja, na distribuição entre assalariados), mas na repartição do rendimento que assentam os baixos salários e, sistematicamente articulado, os “buracos negros” dos paraísos fiscais, por onde certo rendimento – bastante avultado – se esquiva à tributação geral.

Tudo o resto pode ser discutido, mas nunca se chegará ao fim do tema.

Artigo publicado no blogue Ladrões de Bicicletas.