Artigo de Pedro Adão e Silva.
E se a União Europeia tiver resultado de uma convergência de interesses conjuntural e irrepetível? 60 anos passados do Tratado de Roma, com uma Europa presa ao ressentimento, marcada pela paralisia política e por bloqueios institucionais, há sinais de que assim é.
A inclinação para o álcool e as mulheres que Dijsselbloem identificou nos povos do sul está longe de ser o principal problema da declaração do presidente do Eurogrupo. A propensão ao vício, que nos caracterizaria a nós, pecadores, por contraponto aos virtuosos do norte, movidos a uma moral irrepreensível, é apenas um sintoma de um problema profundo, que não se resolve com nenhum dos cinco cenários em torno dos quais a Comissão Europeia quer reformar a Europa.
Há 60 anos, uma combinação única de idealismo político, aprendizagem com falhanços coletivos e necessidades funcionais de natureza económica permitiu a uma parte dos europeus gozar de um período ímpar de paz, liberdades e bem-estar económico. Mas a integração europeia encerrou também um paradoxo: os fundadores aceitaram alienar soberania para reconstruir o Estado-nação. A Europa foi fundamental para resgatar Estados que haviam colapsado com a guerra.
De certa forma, vivemos uma crise de sucesso do projeto europeu. Com a paz, a pressão para que a soberania regresse ao Estado-nação é crescente e, para onde quer que olhemos, há duas tendências que ganham terreno eleitoral: a nostalgia face a um passado mitificado, assente em sociedades homogéneas, e uma vontade de reganhar controlo sobre os destinos nacionais. O que, por facilidade, etiquetamos como populismo é, no essencial, uma reação à diversidade cultural (os mediterrânicos que gastam tudo em álcool e mulheres) e uma resistência à transferência das decisões para entidades distantes que não controlamos (da burocracia tecnocrática europeia ao sistema financeiro, passando por políticos que capturaram o interesse comum).
É esse o drama europeu. Com níveis de ressentimento difíceis de ultrapassar entre os do norte e os do sul, com declínio da competitividade das economias e com imbróglios institucionais complexos (à cabeça um euro que nasceu com uma arquitetura coxa), bem pode a Comissão cenarizar futuros que chocará sempre com o presente. As agendas políticas dos Estados-membros são conflituantes, a cultura de compromisso ao centro está a desfazer-se e não há como compatibilizar o princípio (que, convém recordar, é sacrossanto) do autogoverno com o que é necessário fazer para reformar a União.
Na apresentação do Livro Branco, Juncker afirmou que “a Europa não pode ficar refém de eleições”. A declaração revela os dilemas europeus: num momento em que a Comissão abdica de ter um papel promotor da mudança e no qual a natureza intergovernamental do projeto europeu é reafirmada, a Europa fica refém de eleições nacionais. Mas deveria estar refém exatamente do quê?
Publicado no site do Expresso.