Artigo de Henrique Pinto | Impossible – Passionate Happenings
“Dacché esiste l’umanità, le generazioni che hanno sacrificato più tempo al lavoro sono quelle che hanno avuto la sfortuna di nascere sotto il capitale.”
“Se per il capitalista il tempo è denaro, perl’ozioso o il vedente il loro ‘capitale’ è il tempo.” “Solo il movimento artistico ha perseverato nel ‘diritto all’ozio’.” Maurizio Lazzarato, Il governo dll’uomo indebitato
Condição de todas as coisas: Contingência e Justiça
Há uma vida que estudo a condição humana, e com ela a condição de todas as coisas. O facto de existirmos sem razão, e do diálogo-cooperação se colocarem como interacção absolutamente necessária à sustentabilidade de tudo o que existe, estão na génese das reviravoltas por que tenho passado, e dos contínuos processos de construção de mim mesmo e das causas que abraço.
Não nascemos livres nem iguais, mas temos em comum, para além da absoluta necessidade da “Contingência” ou deste “Super Caos” que nos deu à luz, e a que chamo de Gratuidade (“gratuitus” – sem razão), a capacidade de pensar o Eterno, manifesto numa obstinada esperança que não desiste nunca de desejar e esperar a JUSTIÇA em cada embate com o mundo, com os outros. Como o afirma o filósofo francês Quentin Meillassoux, se existe algum agir que possa alguma vez estar à altura da dignidade do pensamento e traduzir os seus mais altos anseios, esse chama–se Justiça – realidade que não existe, que não tem rosto, que não é propriedade de partido, religião ou governo algum, que é pura ilusão, mas que incansavelmente desejamos e esperamos quando o emprego se perde, a mulher dos nossos sonhos nos morre nos braços, as crianças são vitimas da guerra e engolidas pelo mar, os inocentes morrem em selas de prisão, os animais se violentam e torpedeiam e as plantas com tantos ecossistemas se tornam cinza em dias e noites quentes de verão.
Com maior ou menor consciência, é por esta imanente e objectiva ilusão que vivemos, e por ela ansiamos por entre as mais terríveis barbáries e catástrofes. E é com base numa contínua e actualizada reflexão sobre as exigências inerentes à nossa condição, que abordo criticamente actuais formas de governo individual e colectivo.
Desigualdade e o enfraquecimento das democracias: redistribuição voluntária e impostos
Nasci no seculo XX, no Ocidente, e nunca conheci senão o liberalismo, esta realidade que tem na produção da liberdade a sua condição, como o sublinhava Michel Foucault – uma liberdadeque no liberalismo, como o aponta Maurizio Lazzarato (um foucaultiano também ele), é
sempre liberdade de propriedade e dos proprietários.
A nossa realidade não é certamente a do domínio, exploração e protecção, típicos de sociedades com população predominantemente escrava e feudal, muito menos a de um tempo pré-estatal, em que clãs e tribos partilhavam entre si dádivas, presentes, e as dívidas eram finitas e canceláveis. No entanto, uma certa forma de solidariedade comunal existe hoje na ideia de Nação, como o domínio directamente exercido sobre populações está hoje presente na realidade do Estado, sendo o Capital o que hoje traduz uma troca económica feita não apenas de produtos, mas de trabalho, serviços, investimentos. A nossa realidade é feita hoje de Nação, Estado e Capital e são estes os ingredientes que se apresentam necessários à reprodução de um sistema dito capitalista, como o refere Slavoj Žižek, ao invocar, em Kojin Karatani, o desenvolvimento progressivo das trocas entre humanos ao longo do tempo.
Os centros de um capitalismo global são hoje múltiplos, com diferenças específicas, mas todos eles defendem o capitalismo. O americano insiste sobre o neoliberalismo capitalista, o europeu sobre o que resta do estado social capitalista, o chinês sobre o autoritarismo capitalista dos valores orientais e o sul-americano sobre o capitalismo populista. O que coloca cada um destes e outros sistemas em profunda crise e questionamento é a lógica que lhes é imanente, produtora de uma sempre crescente desigualdade e de um real enfraquecimento das democracias. Um sistema que prometia justiça, bem-estar, trabalho, igualdade, liberdade, revelou-se e continua a ser um total fracasso, um real e doloroso drama na vida de milhões de pessoas.
Ao tentar recuperar uma ancestral troca de dádivas entre pessoas, Peter Sloterdijk propõe que as desigualdades se corrijam através de uma redistribuição da riqueza pelos mais pobres. Em vez da transformação do modo de produção capitalista, Sloterdijk limita a intervenção sobre o sistema a uma correcção operada através de uma distribuição da riqueza feita voluntariamente pelos mais ricos. Por seu lado, Thomas Piketty, defende uma maciça regulamentação estatal feita através de uma pesada cobrança de impostos. Sem que se posicionem contra a maquinaria capitalista, ambos têm clara noção de que para surtirem algum efeito, estas medidas teriam de ser aplicadas globalmente. O problema porém, concordando com Žižek, é que a visão kantiana de uma ampla e Mundial Federação de Estados, como nova ordem mundial, se revela impossível. É verdade que as questões ambientais, a crise dos migrantes– refugiados, o terrorismo, as off-shores, a protecção social, a propriedade intelectual, as tecnologias e comunicações, entre outros temas, exigem, clamam por uma intervenção global. Mas como defende Žižek, neste emergente mundo de múltiplos centros, a humanidade procura ainda as regras que deveriam regular as relações entre si. Face à sua ausência, o que acontece é que antigos e novos superpoderes se provocam, medindo forças, tentando cada um, na defesa e gestão de interesses próprios, impor sobre os outros a sua versão de hipotéticas regras globais. Por outro lado, o que Žižek chama de principal contradição da Nova Ordem Mundial é a estrutural impossibilidade de se encontrar uma ordem politica global que corresponda ao capitalismo económico global. Uma democracia à escala mundial ou um governo mundial podem de facto não existir de todo, como ele o diz, por razões estruturais. Por conseguinte, na política parece que os oprimidos da economia hão-de estar sempre de volta.
Empreendedorismo e Economia Social: como o Capitalismo lida com crise de si mesmo
Mas como está a economia neoliberal a contornar ou a resolver a crise que a interroga?
A Crise do Subprime não só agudizou um insustentável estado de coisas, como as soluções encontradas não têm sido outra coisa que remendo em pano velho. A economia neoliberal é hoje a economia da dívida infinita, impagável… e é com ela que uma verdadeira reconfiguração do individuo trabalhador e da forma de como este deve ser governado se definem e implementam. Da passividade e fechamento dos regimes disciplinares actuados pelas escolas, fábricas, prisões, clinicas… e do tratamento biopolítico das populações de que tanto falou Foucault, passamos a um individuo constituído capital humano, empreendedor de si. A dualidade capitalista e trabalhador assalariado dos séculos XVIII-XIX, iguais ao abrigo da lei, deixa de existir para existir apenas o capitalista, empreendedor de si, patrão e proprietário. O grande e último triunfo do capitalismo dá-se de facto quando este consegue tornar cada trabalhador assalariado num capitalista. “Todos proprietários” foi slogan, há uns anos, da campanha de Sarkozy na França, como a construção de “sociedades de proprietários” também foi horizonte na de George W. Bush, nos Estados Unidos da América. No actual cenário da economia mundial, o da dívida soberana, social e particular, acesso a direitos e deveres fundamentais não se fazem no âmbito de um contrato social celebrado sobre a confiança entre sujeitos livres e de direitos, mas sobre uma relação credor-devedor, dentro da qual estes direitos e deveres básicos surgem privatizados e como dívida de cada um. Outro aspecto importante é que ao colocar sobre os ombros do empreendedor de si os riscos e custos de uma Nação, de um Estado e do Capital, a economia da dívida é também moralizadora, ou seja, geradora de uma nova subjetivação do ser humano.
O empreendedor, antes de ser candidato a alguma coisa, é o individuo que o neoliberalismo tornou capaz de prometer e de cumprir o que promete, o individuo que se culpabiliza pelo incumprimento no pagamento da dívida, e pelo seu insucesso. Este é o capital humano a quem se fala de autonomia e liberdade, mas que nunca se tem por norma, nem se pode avaliar a partir de si mesmo, mas sempre a partir das entidades que lhe concedem o crédito e das condições que o viabilizam.1 Esta é a pessoa processualmente escrutinada, avaliada, a que precisa de coaching, de regulares actualizações e validações de antigas e novas competências. O empreendedor de si não tem apenas o seu presente hipotecado, como a dívida lhe confisca o tempo e as possibilidades de um futuro diferente. Mais, o desespero, o drama, as perdas de saúde física e mental, no cumprimento do pagamento da dívida, tornam-se frequentemente puro divertimento para o credor observador-escrutinador.
Hoje são todos chamados, convocados, obrigados a serem empreendedores. Ficar de fora significa deixar de existir, ou existir num estado de pura natureza. Também as organizações, sobretudo as que dependem de dinheiros públicos, são hoje obrigadas a serem organizações empreendedoras.[2] Com as organizações, também os utentes dos serviços sociais do Estado se veem obrigados a serem gestores de si mesmos, dos subsídios, das míseras pensões, dos apoios que recebem. O RSI não tem de ser só conquistado, merecido através do cumprimento de um específico contrato, como também tem de ser bem gerido. Para todos estes são os cursos de formação profissional, muita da literacia financeira em voga, os workshops de culinária, conduzidos por conceituados chefes de cozinha, as dinâmicas que visam a aquisição e o melhoramento de competências. Nunca como hoje houve em cada esquina, em cada bairro, tantas agências de coaching, consultadoria, validação de conhecimentos e competências, especialistas capazes de fazer render e multiplicar o capital adormecido ou pouco rentabilizado e valorizado em cada um. E ai de quem falhar em todo este processo.
Sem representar uma total ruptura com a economia da dívida, a Economia Social será sempre um seu remendo. Esta procura repor níveis de equidade, inclusão, justiça, gratuidade dentro dela, mas a verdade é que a relação credor-devedor permanece o campo, a estrutura de fundo onde os players ou protagonistas são os mesmos: por um lado, o empreendedor precário, pobre ou não, desempregado de longa duração, jovem, migrante… com o seu projecto, candidato a fundos públicos ou particulares; por outro, o distribuidor de riqueza em forma de crédito, prémio, fundo social nacional ou europeu. A filantropia de quem tem muito dinheiro, o seu colonialismo, nas palavras de Peter Buffett (filho do Warren Buffett), emerge como a soberana auto-negação da acumulação de riqueza, ao gastar riqueza acumulada em coisas sem preço e fora das prateleiras ou corredores do mercado. Falamos, a título de exemplo, do bem público, das artes, das ciências, da saúde, da educação… É aqui, nesta soberana distribuição de riqueza, que o capitalista se torna no seu oposto, numa passagem do eros para o tymos, ou seja, da lógica perversa da acumulação de riqueza para o reconhecimento, a notoriedade e a reputação pública. A oferta de 25% nos mais variados produtos de hipermercado, as promoções, o 2 em 1, que fazem rodopiar de felicidade os olhos de milhares e milhares de pessoas, são, em paralelo com campanhas de recolha de alimentos e bens, que sempre apelidei de “solidariedade burguesa e da esmola”, expressão desta auto-negação do capitalista dos nossos dias. Esta é frequentemente a caridade de quem se diverte e distrai com a prática de boas obras, sendo-lhes, no entanto, totalmente indiferente, como o denuncia Žižek, usando a expressão latina: “velle bonum alicui”. À imagem do que já hoje acontece, quando tantos se perguntam pela justiça do comércio justo, temo que bem rapidamente nos encontremos aqui, um dia, para nos perguntarmos sobre o paradeiro do social que hoje serve de adjectivo à economia dita social. E esta, na sua base, será sempre uma pergunta sobre a natureza da justiça desta mesma economia.
Revolução interior e o exercício da Justiça
Neste sentido, o meu mais recente percurso, apelidado de IMPOSSIBLE – Passionate Happenings, entende romper com a relação credor-devedor e recuperar espaços de autonomia e liberdade, para que o que pela dívida infinita nos é vedado, limitado, proibido… se torne possível e trespassável. A Justiça que possa vir a suceder ao mundo do pensamento, num possível quarto mundo (e invoco aqui novamente o brilhante materialismo especulativo de Quentin Meillassoux[3] não pode viver apenas do desejo de si. Ela tem de ser já hoje, no dia- a-dia de indivíduos, organizações e povos uma incansável forma de ser. E é precisamente neste exercício da Justiça que o Movimento Pobreza Ilegal, como revolução interior, postula e defende uma economia e ética da dádiva, que acredita estar mais em consonância com as exigências imanentes à realização da condição de todas as coisas.
A acumulação de coisas, de riqueza, parece estar em total contradição com a nossa contingência e a factualidade que a coagula como entende, sem qualquer necessidade. A nossa sustentabilidade revela-se de facto possível na partilha do que existe e vamos transformando, num movimento que vai de cada um, mediante as suas capacidades, na direcção do outro, mediante as suas necessidades.
Notas
1 De facto, como explica Lazzarato, o capitalismo nunca foi liberal mas sempre “capitalismo de Estado”. O liberalismo é apenas uma possível forma de subjetivação do “capitalismo de Estado”. Na crise, os neoliberais não procuram governar o menos possível, pelo contrário, procuram governar tudo até ao mais ínfimo detalhe. Não produzem liberdade, mas a sua limitação. Não propõem articular a relação entre Mercado Livre e Estado de Direito, mas suspendem a já enfraquecida democracia (cf. Maurizio Lazzarato (2013), Il governo dell’uomo indebitato, p. 8).
2 É óbvio que muitas delas nunca deveriam ter existido por variadíssimas razões – e seria certamente dictatorial, antidemocrático, que o Estado alguma vez tentasse travar ou impedir a sua criação. Mas fazer depender a acção social do Estado das organizações existentes, como acontece entre nós, sem um plano nacional e uma concreta estratégia de implementação do mesmo, não só coloca o Estado ao serviço das organizações, dos seus interesses, como o torna seu refém. As organizações que executam a acção social do Estado deveriam resultar de concursos públicos, não podendo ficar depois entregues à sua capacidade de empreender e inovar. Serviços pagos pelo Estado não podem ser entendidos como assistência, apoio, subsídio, mas como pagamento por um serviço que o Estado por si só não poderia disponibilizar. Por isso, cortes nos pagamentos ou a transferência dos custos e riscos do Estado Social para as organizações são uma clara privatização dos direitos e deveres dos cidadãos mais vulneráveis.
3 Quentin Meillassoux defende que ao terceiro Mundo, o Mundo do pensamento, possa suceder o Mundo da Justiça, o quarto Mundo. O primeiro e o segundo mundo são o Mundo da matéria e o da vida (“L’inexistence divine” in Graham Harman (2011), Quentin Meillassoux – Philosophy in the Making, Edinburgh: Edinburgh University Press).
Bibliografia
HARMAN, Graham (2011), Quentin Meillassoux – Philosophy in the Making, Edinburgh: Edinburgh University Press
MEILLASSOUX, Quentin (2013), After Finitude, Great Britain: Bloosmsbury
LAZZARATO, Maurizio (2012), La fabrica dell’uomo indebitato – Saggio sulla condizione neoliberista, Roma: DeriveApprodi
(2013), Il governo dell’uomo indebitato – Saggio sulla condizione neoliberista, Roma: DeriveApprodi
ŽIŽEK, Slavoj (2014), Trouble in Paradise – From the end of history to the end of capitalism, England: Allen Lane
SLOTERDIJK, Peter (2006), Zorn und Zeit, Frankfurt: Suhrkamp
(2012), Repenser l’impôt, Paris: Libella
KARATANI, Kojin (2014), The Structure of the World History, Durham: Duke University Press
BUFFETT, Peter (2013), ‘TheCharitable-Industrial Complex’, New York Times
NIETZSCHE, Friedrich (2011), Genealogia della morale, trad. It. Di F. Masini, Adelphi, Milano
FOUCAULT, Michel (2007), Nascita della biopolitica: corso al Collège de France (1978-1979), trad. It. M. Bertani e V. Zini, Milano: Feltrilini
(2011), Leçons sur la volonté de savoir, Paris: Gallimard
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix (2002), L’anti–Edipo. Capitalismo e Schisofrenia, trd. It. Di A. Fontana, Torino: Einaudi
PIKETTY, Thomas (2014), Capital in the Tewnty-First Century, New York: Bellknap Press