Artigo de Ricardo Cabral.
As acções do Deutsche Bank têm vindo a cair acentuadamente nos últimos quinze meses, de mais de 30 euros no final de Julho de 2015 para cerca de 10,9 euros hoje, acentuando-se essa queda na última semana, após a divulgação da informação que o Departamento de Justiça dos EUA se preparava para recomendar a aplicação de uma multa de 14 mil milhões de dólares ao banco.
O Deutsche Bank é um dos maiores bancos do mundo, como revela a Tabela abaixo do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC) dos EUA (analisar coluna (7)), mas apresenta o rácio de alavancagem (“leverage ratio”) mais baixo de todos os maiores bancos (2,68%), ou seja, é, de acordo com este indicador, o banco mais alavancado dessa lista, um indicador financeiro que sugere um grande grau de risco.
Explicado de forma simplificada, basta o património do banco (activos) desvalorizar-se, em média, 2,69% para o banco se tornar tecnicamente insolvente. E basta uma desvalorização média de 0,35% do valor dos activos para o rácio de alavancagem, que o banco argumenta que possui, cair abaixo dos 3%, o que, em teoria, deveria obrigar à intervenção do supervisor (BCE).
Evidentemente o Deutsche Bank dispõe de activos que pode procurar alienar para melhorar os seus rácios de capital e já começou a fazê-lo, tendo começado igualmente a procurar reduzir custos, por exemplo, encerrando balcões em Portugal.
As regras sobre os requisitos de capital na União Europeia (CRR/CRD IV), após muito lobby dos grande bancos europeus, deixaram por especificar qual o rácio de alavancagem mínimo, ficando a Autoridade Bancária Europeia (EBA) de especificar qual o rácio de alavancagem mínimo. A ideia inicial para esse adiamento seria que os rácios de alavancagem mínimos seriam sempre muito superiores a 3%, mas não era possível chegar a consenso sobre o valor na altura, por conseguinte, adiou-se a decisão final.
Mas os acordos de Basileia III, indicam que a comissão “irá continuar a testar um requisito mínimo de 3% para o rácio de alavancagem” entre 1 de Janeiro de 2013 e 1 de Janeiro de 2017. Ou seja, o rácio de alavancagem implícito mínimo é de 3%. O certo é que a EBA finalmente recomendou em Agosto deste ano um rácio de alavancagem mínimo de 3%, que deverá se tornar vinculativo a partir de 2018.
Ora o Deutsche Bank, nas suas contas do segundo trimestre de 2016 (Junho), apresenta um total de activos de 1,8 biliões de euros. Porém, as regras na União Europeia permitem que depois possa acontecer o seguinte: os activos ponderados pelo risco baixam para 402 mil milhões de euros, i.e., como se os activos no balanço do Deutsche Bank só tivessem cerca de 1/5 (22%) do risco de activos bancários “normais”. Em resultado desse artifício (utilizado por quase todos os grandes bancos europeus), o rácio de capital CET1 e solvabilidade do Deutsche Bank, que são importantes para o Mecanismo Único de Supervisão do BCE, são de 10,8% e de 14%, (muito acima dos declarados, por exemplo, pelo Banif em Setembro de 2015 (8,5% e 9,5%), pese embora o rácio de alavancagem do Banif (5,9%) nessa data fosse mais do dobro do registado pelo Deutsche Bank em Junho (2,68%).
Em Dezembro de 2015 o Banco de Portugal resolveu expropriar e literalmente dar[1] parte do Banif, cheio de dinheiro público, ao Santander, após impor, sem direito a contraditório, imparidades que deixaram o rácio CET1 e de solvabilidade do Banif em 7,65% (0,35 p.p. abaixo de só um dos 3 mínimos regulamentares, cumprindo esse banco os restantes 2 requisitos de capital – art. 92º da CRR4 -, bem como o requisito mínimo para o rácio de alavancagem que está implícito à regulamentação europeia e aos acordos de Basileia e obrigatório a partir de 2018).
As regras na União Europeia ainda permitem algo completamente surreal: que no cálculo do rácio de alavancagem se excluam parte dos activos do banco. Assim o Deutsche Bank pode declarar que o seu rácio de alavancagem é de 3,4% (acima de 3% e muito acima dos 2,68% calculados pelo FDIC), porque exclui dos seus activos quase 400 mil milhões de euros de activos.
Segundo o Deutsche Bank, o seu capital tangível, em Junho de 2016, era de cerca de 48 mil milhões de euros. As provisões para a diversa litigância jurídica em que está envolvido ascendem a cerca de 5 mil milhões de euros. O Deutsche Bank viu-se ainda forçado à medida, pouco habitual, de indicar que discordava e que iria contestar a multa do Departamento de Justiça dos EUA. Parece-me que assim poderá melhor defender junto dos respectivos auditores que não serão necessárias mais provisões.
Mas no teste de stress da EBA, o rácio de alavancagem do Deutsche Bank caiu abaixo dos 3%.
Vimos o que ocorreu à banca portuguesa em resultado dos “testes de stress” da EBA. A banca portuguesa tem dos melhores rácios de alavancagem da banca europeia. Mas porque alguns bancos falharam nos testes de stress em relação a outros rácios de capital ocorreram verdadeiros actos de terror (e.g., confisco dos obrigacionistas seniores do Novo Banco a 29 de Dezembro de 2015).
Dois pesos, duas medidas? É certo que as regras europeias determinam que, o rácio de alavancagem, a medida mais apropriada da robustez financeira de um banco, não tenha ainda a importância dos restantes rácios de capital de um banco. Mas o rácio está lá para todos verem, e torna-se difícil compreender que o supervisor (BCE) possa assobiar para o lado quando o rácio de alavancagem de alguns grandes bancos cai abaixo de 3%.
[1] Os 150 M€ pagos pelo Santander foram injectados na parte do Banif que foi adquiridos pelo Santander e não foram contabilizados como ajudas de Estado.
Publicado no blogue Tudo Menos Economia.