Artigo de Francisco Louçã
Parece que há uma espécie de consenso sobre o efeito fulminante do veto do Presidente contra o decreto-lei do levantamento do segredo bancário. As análises só se interrogam sobre as consequências quanto às relações com o governo e outras implicâncias dramáticas. Lamento discordar. Acho que o Presidente vetante recuou e não foi pouco.
Tendo Belém sugerido ao longo da semana que o Presidente levaria o decreto ao Tribunal Constitucional, Marcelo acabou por escolher o veto político com o vulnerável e volúvel argumento da “inoportunidade” – o que o tempo sempre pode corrigir. Então a pergunta é: qual foi a razão para nada pedir ao Tribunal Constitucional?
A resposta parece-me óbvia: o Presidente perderia qualquer que fosse a decisão do Tribunal Constitucional.
Se o Tribunal declarasse que o decreto é constitucional, derrota do Presidente e luz verde para o fim do segredo bancário nas condições propostas. Ora, como é que o Tribunal poderia sequer considerar inconstitucional que, sem qualquer violação do que é privado (e só é privada a escolha das despesas que fazemos), o fisco tenha acesso somente ao valor de juros, dividendos, mais-valias e outros ganhos financeiros recebidos na conta (página 15 do Decreto-Lei)? Porque é que o Tribunal haveria de considerar constitucional que o fisco conheça os salários que recebemos – já reparou que a declaração do IRS vem pré-preenchida com o salário? – e haveria de considerar inconstitucional que o mesmo fisco venha a saber dos dividendos e ganhos financeiros? Creio que o Tribunal consideraria este decreto constitucional e suspeito que o Presidente o sabe melhor do que ninguém.
Mas admitamos que o Tribunal considerasse o decreto inconstitucional, alegando que o fisco não pode ter acesso aos ganhos em dividendos e mais-valias. Isso colocava um novo problema e não é de somenos. É que, então, teria que declarar que o acordo com os Estados Unidos e a Directiva Europeia são inconstitucionais, porque se aplicam, entre outros, a cidadãos portugueses que passariam a estar sujeitos a uma norma inconstitucional.
Considere o exemplo: António Silva e Manuel Silva são irmãos, vivem em casas geminadas em Mem Martins, um tem uma conta em Sintra e outro tem uma conta em Montreuil, Paris, ou Newark, Nova Iorque, onde trabalhou. Tudo legal, gente séria. O fisco português vai receber informação da conta do Manuel (enviada por França ou pelos EUA) mas não do António (porque a conta é em Portugal). Dois cidadãos portugueses passam a estar em situações contrárias: um é abrangido por uma norma que, alegadamente por razões constitucionais, impede o fisco de conhecer os seus dividendos e mais-valias, e o outro é obrigado a ceder essa informação que em Portugal é considerada inconstitucional. O acordo com os EUA e a Directiva Europeia seriam, nesta lógica, inconstitucionais.
Portanto, o Presidente perderia em todos os casos a batalha constitucional. Ou perde no Tribunal e o decreto passa ou ganha no Tribunal e os acordos internacionais não passam. Foi por medo deste imbróglio jurídico que Marcelo recuou, abandonando a ideia de ir ao Tribunal Constitucional e se limitou a uma frágil alegação de “inoportunidade política”.
Ao evitar o confronto, o Presidente preferiu adiar a questão. Essa é a vitória de Pirro dos que acham essencial defender contra o fisco o segredo dos ganhos de capital. Não consigo dar-lhes os parabéns.
Artigo publicado no blogue Tudo Menos Economia