As minhas alegres casinhas

Artigo de Tiago Antunes.


Todos os anos é a mesma história: aproxima-se o Orçamento de Estado (OE) e começa a especulação sobre o seu conteúdo. A oposição, desesperadamente procurando um diabo que teima em não aparecer, põe-se logo aos berros: “vem aí um aumento de impostos!”

De nada serve o Governo – o único que conhece o conteúdo do OE em preparação – garantir que, no próximo ano, haverá um desagravamento fiscal, isto é, haverá uma carga tributária globalmente mais baixa. Ainda assim, a oposição insiste em rasgar as vestes por um aumento de impostos que supostamente se avizinha.

O que não deixa de ser curioso, porque os atuais partidos da oposição são os mesmos que, quando estavam no Governo, decretaram o maior aumento de impostos de que há memória em Portugal (um “enorme aumento de impostos”, nas palavras do próprio Vítor Gaspar). Confiam agora na falta de memória dos Portugueses. Só que estes lembram-se bem da autêntica avalanche fiscal, que atingiu praticamente todos os impostos que existem, subindo-os.

Indo ao pormenor, a coisa torna-se ainda mais irónica:

– o PSD e o CDS, que em 2015, à pala da “tributação verde”, aumentaram brutalmente o imposto sobre os combustíveis, em 2016 passaram a escandalizar-se com qualquer subida, ainda que de 1 cêntimo, no custo da gasolina ou do gasóleo.

– o PSD e o CDS, que acabaram com a cláusula de salvaguarda que impedia aumentos bruscos do IMI, passaram a bradar aos céus contra qualquer mexida neste imposto, ainda que essa mexida seja norteada por um elementar imperativo de justiça fiscal.

Sim, sim, é disso mesmo que se trata nas alterações em curso quanto à tributação do património imobiliário: promover uma maior justiça fiscal. E como é que se faz isso? Repondo a cláusula de salvaguarda (o que já foi feito no OE2016) e introduzindo uma lógica de progressividade no imposto sobre imóveis (o que, tudo indica, constará do OE2017).

De resto, não há aqui qualquer novidade ou motivo de surpresa. É exatamente o que consta do Programa de Governo:

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No que toca à progressividade, em vez de cada imóvel ser tributado de per se, passará a ter-se em atenção o valor acumulado de todo o património imobiliário detido por cada sujeito. E, consequentemente, quem tiver um património imobiliário de maior valor pagará uma taxa de imposto mais elevada; quem tiver um património imobiliário de menor valor pagará uma taxa de imposto mais baixa. Será, indiscutivelmente, um sistema mais justo e equitativo do que aquele que temos hoje.

Os pormenores e valores desta tributação imobiliária progressiva ainda estarão a ser calculados pelo Governo e negociados com os parceiros parlamentares. Em todo o caso, tem sido referido que as casas de 1.ª habitação não deverão chegar a ser afetadas; e que haverá uma ressalva para as casas que sejam arrendadas.

Deste modo, ao afetar sobretudo imóveis ociosos, que não são usados para habitação permanente própria ou de terceiros, esta medida serve também para promover a ocupação do parque habitacional. Era, de resto, com tal intuito que a medida se encontrava já prevista no célebre “documento dos economistas” do PS:

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Trata-se, assim, por um lado, de introduzir maior justiça fiscal, combatendo as desigualdades na distribuição da riqueza por via de um imposto patrimonial de cariz progressivo, e, por outro lado, de incentivar uma maior eficiência e racionalidade no aproveitamento habitacional do património edificado. Justamente os dois objetivos que constavam expressamente do Programa Eleitoral do PS:

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Sendo um instrumento de combate às desigualdades, através da tributação progressiva da acumulação patrimonial imobiliária, esta medida não é obviamente dirigida à classe média, mas sim aos detentores de património muito valioso e ocioso, designadamente os especuladores imobiliários. O que deverá ficar claro quando se conhecer o valor patrimonial a partir do qual se aplicará uma tributação agravada.

Não deixa de ser curioso, portanto, ver algumas elites fundiárias a travestirem-se de classe média para fazerem de calimeros fiscais. Essas elites bem sabem que a única forma de combaterem esta medida é apresentá-la como um ataque à classe média. Tudo não passa de uma manobra, porém. Enchem-se de dores pela classe média, mas o que realmente querem é evitar a tributação agravada das suas alegres casinhas. Assim, invocando o sufoco fiscal das famílias remediadas, o que na verdade pretendem é o perpetuar das desigualdades existentes.

Ao invés, a medida em preparação visa reduzir as desigualdades. Refira-se, aliás, que a tributação progressiva do património imobiliário com intuitos redistributivos é recomendada pela própria Comissão Europeia:

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Em desespero, surge ainda um derradeiro argumento: então a tributação progressiva da acumulação patrimonial imobiliária não acabará por funcionar como um entrave ao investimento, em particular o investimento estrangeiro?

Eu diria que o investimento estrangeiro que queremos acarinhar e incentivar é aquele que vem cá abrir empresas, montar indústrias ou abrir comércio e serviços, criar empregos e gerar riqueza. Mas afinal parece que, para certas mentes bem pensantes, o investimento estrangeiro que queremos proteger é o dos magnatas que cá vêm comprar casas.

Seja como for, mesmo estes magnatas não parece que venham a ter a tentação de fugir para outras paragens, uma vez que, em termos comparativos, Portugal tem níveis de tributação do património bastante mais baixos que os de outros países desenvolvidos:

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(Fonte: OCDE. Atente-se nos casos da Irlanda e da Espanha, cujos processos de ajustamento orçamental nos últimos anos levaram a um aumento da tributação sobre o património, diferentemente do que sucedeu em Portugal)


Artigo publicado no site Geringonça.