Os despojos do ‘Brexit’

Artigo de Pedro Adão e Silva.


1.

O ‘Brexit’ torna evidente uma patologia europeia aguda, cujos sintomas só não via quem não queria, ao mesmo tempo que agudiza as causas da doença.

Durante seis décadas, a construção europeia assentou em pressupostos lineares: a paz traria prosperidade e a prosperidade reforçaria a paz e as democracias liberais. A crise interrompeu este ciclo de otimismo e fez renascer velhos fantasmas: a xenofobia, os egoísmos de base nacional, o desemprego estrutural e a anemia económica. Estas tendências enraizaram-se e traduziram-se em clivagens sociais profundas, com uma natureza nova. Onde antes existia uma “guerra de classes”, ainda assim traduzível pelo sistema partidário, instaurou-se uma “guerra” de novos contornos, marcada pela globalização, entre os de cima e os de baixo. As elites que gerem o sistema e aprofundam a integração e um grupo crescente de excluídos dos benefícios económicos, culturais e sociais deste processo.

A consequência imediata do ‘Brexit’ é, precisamente, abrir a possibilidade de fragmentação política da Europa

Enquanto estilhaçou as clivagens partidárias do Reino Unido do pós-guerra, o referendo britânico funcionou como uma prova dos nove desta tendência. Mas para onde quer que nos viremos na Europa percebemos que os fundamentos estão presentes: uma parte muito significativa da população europeia não acredita na União Europeia e o sistema partidário do pós-guerra não sabe o que fazer com essa descrença. Umas vezes ignora os sinais e é dizimado; noutras, cavalga a onda, cede ao populismo e viola o seu código genético demoliberal.

A consequência imediata do ‘Brexit’ é, precisamente, abrir a possibilidade de fragmentação política da Europa. Passou a ser possível realizar referendos e um Estado-membro pode negociar a saída. Se, agora, para vacinar a Europa, a UE impuser condições draconianas ao Reino Unido, as consequências económicas e financeiras serão devastadoras; se a UE permitir uma saída suave, as consequências políticas serão trágicas — outros países perderão o receio.

Com a crise económica por resolver, com uma crise financeira prestes a regressar — até com maior intensidade — e com a crise dos refugiados, a Europa só tinha uma saída política: aprofundar a integração e desenhar uma “união mais perfeita”. Mas como a UE é formada por 28 democracias, onde a soberania popular impera, este caminho é, hoje, inviável. A combinação de desemprego estrutural, projeto europeu construído nas costas dos europeus e eleitorados envenenados por retórica populista não permite qualquer veleidade parafederalista.

Dificilmente será possível continuar a falar de uma Europa unida. O Reino Unido terá agora de gerir uma saída de contornos financeiros difíceis de antecipar e que pode fragmentar politicamente as ilhas, mas as consequências para uma Europa amarrada de forma ligeira a uma moeda única podem ser igualmente profundas. Se tudo continuar como nos últimos anos, chegará o momento em que teremos a Alemanha a repetir: “nós não somos a França”.

2.

Menos escolarizados, mais idosos, com menos rendimentos e residentes em zonas que beneficiaram de fundos comunitários. Como tem sido notado, este é o perfil dos votantes do ‘Brexit’. Se o presente repetisse o passado, haveria uma forte probabilidade de estes deserdados da globalização votarem à esquerda. Não é o que tem acontecido. É-nos dito que tal acontece porque há uma horda crescente de eleitores que, levados por líderes populistas e campanhas alicerçadas em mitos, estão apreensivos com o futuro e votam de forma errada. No fundo, uma justificação que atualiza o argumento da ‘falsa consciência’, adaptando-o às democracias hipermediatizadas. De novo, as massas alienadas não sabem o que querem ou, iludidas, votam contra os seus interesses de classe.

Um dos equívocos da esquerda nos últimos anos foi pensar que as clivagens políticas radicavam, exclusivamente, em fatores económicos. Mais cedo ou mais tarde, os eleitores, fustigados pela austeridade, votariam nas formações políticas da esquerda tradicional. Não tem sido assim: a mudança nos mapas eleitorais um pouco por toda a Europa (e, já agora, nos EUA) revela transformações na cultura política e nas clivagens sociais que vão para lá das explicações materiais. É também isso que explica a desagregação dos partidos do centro e resultados como o do ‘Brexit’.

Hoje, vários países caminham para uma situação de orfandade política, em que os partidos hegemónicos se fragmentaram, as condições de governabilidade andam pelas ruas da amargura e as lideranças escasseiam. Uma parte dos eleitorados deixou de confiar nas elites e passou a ignorar os factos por estas propalados.

Faz sentido: desindustrialização, desemprego, e ruturas provocadas pela globalização alimentaram uma nostalgia de um período mitificado em que os cidadãos controlavam os seus destinos. Pelo caminho, a modernidade passou a ser, para muitos, uma ameaça. A erosão da confiança social e uma gestão oportunista da verdade feita pelas elites fizeram o resto. Teorias da conspiração reproduzidas nas redes sociais, corrupção, mentiras nas promessas eleitorais e nos governos (da Guerra do Iraque à política orçamental durante a crise) e sugestões xenófobas repetidas, de forma incessante, por líderes que se querem passar por respeitáveis, e que poucos contrariam, formaram o caldo cultural que nos trouxe até aqui.

Agora, estamos perante uma doença que encontra na desesperança uma alavanca eleitoral. Para mobilizar o voto, já não é necessário elaborar nenhuma promessa de mudança realista e uma parte do eleitorado vota como forma de recusar o que existe e para penalizar o abandono a que foi condenada. As promessas de mudança e de melhoria das condições de vida são, para muitos, apenas mais um exemplo de uma retórica política na qual, por razões fundadas, deixaram de acreditar. O que aconteceu no Reino Unido é apenas o início.


Publicado no Expresso online