As leituras eleitorais simplistas chegam para explicar o Brexit?

Artigo de Nuno Serra.


1. Assim que foram conhecidos os resultados do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia instalou-se uma narrativa que tratou de carregar nas tintas do nacionalismo, da xenofobia e do racismo (apresentados como as principais motivações do voto «Leave» e os grandes vencedores do referendo), sendo amplamente suavizado o significado político-económico dessa escolha (no que respeita à profunda desilusão, mal-estar e descrença no projeto europeu e na governação europeia).

2. Essa narrativa sobre as razões que conduziram à vitória do «Leave» parecia encontrar suporte sociológico na análise dos resultados a partir de variáveis como a idade, o nível de instrução ou as diferenças entre voto urbano e voto rural. Nesses termos (como o João Rodrigues já assinalou neste blogue), o Brexit foi interpretado como a escolha de um eleitorado envelhecido, desinformado, nacionalista, racista e retrógrado, provindo o Bremain de um eleitorado jovem, esclarecido, cosmopolita, adepto do multiculturalismo e progressista.

3. Sucede, contudo, que um inquérito muito difundido nas redes sociais («How the United Kingdom voted on Thursday… and why») desaconselha leituras eleitorais do referendo demasiado simplistas e lineares. Nessa análise, em vez de se tentar deduzir a motivação do voto a partir da sua distribuição segundo a idade, o contexto de vida ou o nível de escolaridade, colocou-se de modo muito direto a questão que verdadeiramente importa: «por que razão votou como votou?». E eis que a «narrativa xenófoba», nos termos em que foi formulada, perde aderência à realidade:

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4. De facto, para metade (49%) dos eleitores do «Leave», a principal razão para votar Brexit decorre da perda de soberania política no contexto da pertença à UE. Um argumento bastante mais relevante que o da imigração, associado a apenas um terço desses eleitores (e não necessariamente relacionado com sentimentos xenófobos). Por seu turno, constata-se que a parcela mais relevante (43%) dos votantes no «Remain» não é propriamente entusiasta da UE. Apenas estima que os riscos e impactos decorrentes da saída são superiores aos da permanência. E que, para 31% dos apoiantes do «Remain», sair significa abdicar da situação de privilégio que o Reino Unido tem na UE, onde beneficia do acesso ao mercado único sem ter que submeter a Schengen nem às regras do Euro.

5. Quer isto dizer que a questão da imigração não é relevante? Não, não quer. Não só é relevante como é indissociável, para o melhor e para o pior, do próprio «processo europeu», nos moldes absolutamente trágicos em que o mesmo tem sido desenhado e conduzido, como de resto o João Ramos de Almeida já aqui assinalou. O que não se pode é agitar a questão da imigração (e da sua vertente xenófoba) como sendo a explicação essencial do resultado do referendo e muito menos fazê-lo para afastar os olhares e dissociar esse resultado do desastre europeu, no intuito de proteger e alimentar um otimismo cada vez mais infundado sobre a capacidade de a Europa se regenerar.

6. De facto, quando raspamos o «verniz sociológico» simplista (o tal das linearidades entre voto jovem e multiculturalismo ou entre voto grisalho e aversão aos imigrantes, por exemplo), surge uma teia de questões bastante mais complexa e que se presta pouco a leituras intuitivas. Um idoso que vota a favor do «Leave» tanto o pode fazer por considerar que a Europa deixou de constituir um espaço de internacionalismo progressista e solidário, como o pode fazer por um simples nacionalismo saudosista e xenófobo. Tal como um jovem tanto pode ter votado «Remain» porque continua a acreditar no projeto europeu, como o fazer apenas por não conseguir conceber um enquadramento diferente para a sua vida quotidiana (apesar de reconhecer o fracasso europeu e os danos que o mesmo produz). Como lembrava há uns dias o João Rodrigues, nacionalismos há muitos (e internacionalismos também).