Apogeu e queda da ‘Europa alemã’

Artigo de Viriato Soromenho-Marques.


O texto que se oferece ao leitor nesta edição da Crítica, reproduz integralmente o décimo capítulo da minha obra, Portugal na Queda da Europa (Temas e Debates/Círculos de Leitores, 2014, pp. 257-275). Apesar de ter sido escrito há mais de dois anos, considero que as páginas que se seguem ajudam a compreender os elementos de (ir) racionalidade no comportamento da Alemanha numa crise europeia, perante a qual Berlim assumiu, pelo menos desde final de 2009, o papel de indiscutível gestor hegemónico.

Neste texto analisa-se o modo como o programa da “Alemanha Europeia”, que foi a bússola estratégica da Alemanha Federal no tempo da guerra-fria, se transmutou no regresso à “normalidade”, com Gerhard Schröder, e depois numa afirmação de poderio unilateral na condução da crise, erradamente denominada como “crise das dívidas soberanas”.

A “Europa alemã” (socorro-me de um termo inventado pelo sociólogo alemão, Ulrich Beck, em 2012), está hoje em plena derrocada. Primeiro, com a hostilidade de muitos países, e não apenas os quatro de Visegrado, face à oscilante política de refugiados da chanceler Merkel, hesitando entre uma hospitalidade voluntarista e uma negociação de total capitulação pragmática com Ancara. Depois, com a fraqueza disfarçada de força, na desastrada resposta ao brexit, abrindo hostilidades contra Lisboa e Madrid. Na altura em que seria preciso mudar de rumo, Berlim reitera a sua postura de “hegemonia defensiva” (conceito que se esclarece nas páginas seguintes), acelerando o processo de entropia e de desagregação não apenas da Zona euro, mas também da União Europeia no seu conjunto.

Em 1914 e 1939, respectivamente, a monarquia constitucional de Guilherme II, e a ditadura nacional-militarista de Hitler, lançaram a Europa e o planeta em duas guerras mundiais. O imperador e o ditador foram vítimas da desmesura, do seu excesso de ambição. Em 2016, uma sofisticada democracia germânica, arrisca-se a lançar a Europa no caos, e a economia mundial na desordem, pela sua insistência numa estratégia, completamente irrealista, de manter tudo como está na união monetária, usando as regras do Tratado Orçamental como no passado o II e o III impérios usaram o instrumento militar. Mais do que em 2014, hoje só um improvável milagre poderá impedir a Europa de mergulhar num destrutivo, abismo político, económico, e social, de incertas proporções. Portugal, se essa possibilidade história se vier a concretizar, passará por um período de vulnerabilidade político-económica e sofrimento social que talvez só tenha paralelo com o período das invasões francesas, mas sobreviverá como comunidade política nacional. Não posso dizer que o mesmo aconteça com a Alemanha. A sombra de Cartago mostra-nos que há erros na história que não se cometem quatro vezes.

9 de Julho de 2016

Viriato Soromenho-Marques

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A Alemanha chegou atrasada à história europeia. A sua demorada construção do Estado (completada em 1871, e apenas comparável com a Itália), implicou que quando Berlim se sentou à mesa do poder europeu já lá encontrou comensais muito mais antigos, com interesses bem definidos e rotinas pré-estabelecidas. Como Eça de Queirós, Andrade Corvo e Nietzsche previram, a entrada de um novo país, com a massa e o poderio emergentes de Berlim, iriam trazer ao mundo uma convulsão como ele nunca conhecera antes. Não é por acaso que, hoje, quando se pensa no impacto mundial da ascensão da China no século XXI, se pensa na Alemanha do século XIX…De facto, a chamada Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945) é, em grande medida, uma guerra que foi motivada pela tentativa da Alemanha encontrar e consolidar o seu corpo político próprio num «sistema internacional europeu», e mundial, já muito cristalizado. Não admira que, depois da terrível derrota de 1945, o futuro da “questão alemã” se tenha fundido com a questão central de como construir um corpo político europeu que não lançasse a Europa e o mundo de novo no abismo. Esse foi o esforço declarado por Spinelli em 1941, ainda durante a guerra, ou por Churchill, no seu discurso na Universidade de Zurique, em 1946. Essa foi a longa tarefa iniciada por Jean Monnet, Robert Schuman, e os outros pais fundadores ao longo das décadas que se seguiram ao conflito.

§1. Duas metamorfoses. Ao contrário de 1918, em 1945 a Alemanha estava devastada. O falhanço da conspiração militar contra Hitler, em 20 de Julho de 1944, levaria a guerra até ao coração da Alemanha e aumentaria exponencialmente o número de mortes, sobretudo entre os civis. Testemunhos literários como o Outono Alemão, do jornalista sueco Stig Dagerman, ou filmes como Alemanha, Ano Zero, de Roberto Rossellini, revelam melhor do que qualquer ensaio histórico o estado de devastação a que a desmesura nazi havia conduzido a Alemanha. A divisão do país, e os 12 milhões de refugiados das zonas de ocupação soviética, empurrados pelo avanço dos exércitos de Jukov, transformaram durante muito anos o que restava do III Reich num território de desastre humanitário.

É preciso, na economia do nosso ensaio, perceber que entre 1945 e 2014, a história alemã se divide, claramente, em duas partes. Até 1990, e depois de 1990. São duas épocas, duas metamorfoses claras da Alemanha do segundo pós-guerra, marcadas, simbolicamente, pelas duas capitais: Bona e Berlim. A reunificação alemã, isto é a completa e expedita integração da RDA na RFA, marcou o início da fase em que nos encontramos, e de que a actual crise europeia é o ponto mais dramático.

Entre 1945 e 1990, a Alemanha com capital em Bona estava limitada estrategicamente. Viveu sob tutela. Tanto a sua Constituição federal como a sua nova ordem monetária, incluindo a disciplina e independência típicas do Bundesbank foram-lhes, em larga medida, ditadas pelas autoridades aliadas, sobretudo pelos EUA. Toda a sua política externa e a sua integração em organismos internacionais, desde as Nações Unidas à NATO, passando pelas organizações da construção europeia, como a CECA, em 1951, passavam pelo crivo externo. A parceria franco-germânica, receitada como imperativo por Winston Churchill, foi levada a cabo numa clara atitude de subalternização de Bona perante Paris. A divisão da Alemanha facilitou as coisas. Importa não esquecer que o primeiro chanceler da RFA, Konrad Adenauer, era um renano, que tinha estado, embora com alguma discrição, nos movimentos que entre 1919 e 1924 procuraram criar maior autonomia política (para alguns, o objectivo seria a independência pura e simples) para as regiões mais ocidentais da Alemanha. Muitos alemães estavam descontentes com a hegemonia prussiana no II Reich, que havia conduzido à I Guerra Mundial, e contribuído para o desastre de 1945. A perda dos territórios da linha Oder-Neise para a Polónia, e a criação da RDA, significavam o fim efectivo da Prússia como factor aglutinador, mas também como o grande perturbador da Alemanha e da Europa. Nada indica que Adenauer lamentasse fortemente esse facto.

A divisão da Alemanha também se efectuou no plano das mentalidades. Na RFA houve um processo de “desnazificação”, promovido tanto por pressão das autoridades de ocupação, como também pela exigência ética de exorcizar a “questão da culpa alemã” (die Frage der deutschen Schuld) pelo Holocausto, e restantes crimes do regime hitleriano. Na RDA, sob o regime de ocupação soviético nada de semelhante foi realizado. As várias gerações do pós-guerra foram educadas em regimes completamente distintos no que toca ao passado do expansionismo e do imperialismo germânicos. A Ocidente, com a memória da culpa e o sentimento de responsabilidade pela cumplicidade popular com um regime torcionário. A Leste, numa espécie de suave inocência, os nazis eram considerados como uma força invasora que tinha corrompido e oprimido também o povo alemão.

Três elementos culturais relevantes para o lugar e o papel da Alemanha na Europa foram amadurecidos no tempo de Bona. O primeiro é a tónica numa “Alemanha Europeia”, a constante reafirmação pelos líderes democratas-cristãos, sociais-democratas, liberais ou verdes/ecologistas, de uma fidelidade germânica à construção de um projecto comum europeu. A confissão de que Bona jamais colocaria o seu interesse estratégico em rota de colisão com o do resto da Europa, que, na altura da guerra-fria era apenas a Europa ocidental. O segundo elemento reside numa ruptura profunda com o militarismo, comprovada não só pela exiguidade dos orçamentos militares, como também pelo facto de o conceito prevalecente no interior das forças armadas alemãs (Bundeswehr) ser claramente o da subordinação do poder militar ao poder civil. Mesmo as questões de abusos e crimes cometidos dentro das casernas são objecto de um tratamento de natureza política (saindo fora da esfera exclusivamente castrense), por parte do parlamento federal (Bundestag), no âmbito de uma comissão para tal competente. Finalmente, no plano cultural mais profundo, a sociedade alemã-ocidental desenvolveu uma atitude consistentemente pacifista, que levou mesmo à criação de um forte movimento cívico nos anos 80, em plena crise dos euromísseis. A hostilidade ao belicismo, aliou-se à consciência ecológica e ambiental, que é das mais elevadas na Europa e no mundo. Nenhum outro país revela uma hostilidade tão enraizada ao fenómeno do nuclear, seja na vertente militar (que continua totalmente interdita ao Estado alemão), seja na vertente civil. Em 2011, Angela Merkel, depois do acidente nuclear de Fukushima, no Japão, foi obrigada a reconfirmar a decisão do anterior governo de coligação (entre o SPD e os Verdes) de abandonar o nuclear no prazo de pouco mais de uma década. Estes factores são elementos importantes, embora susceptíveis de erosão e mudança, que não só protegem a Alemanha de si própria, como servem de indicadores de alerta e transgressão para o resto da Europa. Com a condição de esta ser capaz de manter alguma vigilância crítica em relação ao estado de coisas no universo germânico.

§2. A reunificação alemã e as tentações do Leste. Não tinham ainda passado 24 horas sobre a queda do muro de Berlim, em 9 de Novembro de 1989, quando o ex-chanceler Willy Brandt se dirigiu à multidão apinhada na pequena praça em frente do edifício da câmara municipal, de Berlim ocidental, em Schöneberg. Brandt tinha falado desse mesmo lugar, em 1963, tendo a seu lado o jovem presidente dos EUA, John F. Kennedy, que aí pronunciou o seu célebre discurso “Ich bin ein Berliner”, contra a divisão da cidade e a política soviética. Com perfeita consciência de que se estava a viver um daqueles raros momentos “histórico-universais”, mencionados por Hegel, Brandt mediu bem as palavras. Falou num registo onde a emoção jamais perturbou a racionalidade. No final, sintetizou o essencial da sua mensagem: a Alemanha que se iria erguer com o fim da guerra-fria, e com a reunificação (que ficou como possibilidade em aberto, desde a primeira pedra tombada do Muro), teria de ter a sabedoria necessária para conciliar os “interesses alemães” (deutsche Interessen) com “o nosso dever em relação à Europa” (unserer Pflicht gegenüber Europa).

Depois de 1989, a Alemanha de Bona passou à metamorfose seguinte, transformando-se na Alemanha de Berlim. Um país que, depois de décadas de tutela imposta pelos vencedores da II Guerra Mundial, passava a gozar de uma enorme e crescente autonomia estratégica. Por essa altura, em Maio de 1990, publiquei uma reflexão que, relida à luz dos acontecimentos de hoje, se mostrou bastante acertada. Por isso a partilho, apesar da sua extensão, com o leitor:

“Uma arriscada viragem prioritária para Leste, na sequência de uma profunda metamorfose nos alinhamentos partidários da nova Alemanha só pode ser seriamente pensada na sequência da queda em ruptura e fragmentação da URSS. Nesta eventualidade, potencialmente catastrófica, poderiam surgir muitos ingredientes conducentes ao ressurgimento já não de um domínio (Herrschaft), mas de uma “hegemonia” (Vorherrschaft) germânica, sobre o centro-leste europeu, catapultada pelo desvio do seu imenso poderio económico-financeiro (e a prazo também militar) relativamente aos anteriores objectivos de consolidação dos Doze (…) Mas, a verdade é que, pela primeira vez, desde 1945, é aos alemães que cabe, de novo, o quinhão principal na decisão sobre o tipo de Europa em que todos iremos viver.”

Apesar das promessas de Kohl a Gorbachev de que teria um bom comportamento em relação aos países da Europa central e de leste, que haviam integrado o Pacto de Varsóvia, a verdade é que a massa crítica do poder efectivo, neste caso económico, bem como das tradições estratégicas, tem uma voz própria que nenhuma promessa de um político de turno pode deter. A URSS caiu, sem levar o mundo a uma guerra internacional, ou civil (como previam alguns alistas norte-americanos que pensavam não ser possível os Estados da Federação soviética saírem sem luta, à semelhança do ocorrido com a guerra civil nos EUA, entre 1861 e 1865). As portas ficaram escancaradas para a Alemanha poder reinventar-se na Europa e no mundo.

No húmus estratégico alemão, como país do meio, existe uma inegável tentação para projectar a sua influência no centro e leste europeu. Desde os profetas do século XIX que falavam num “impulso para leste” (Drang nach Osten), de que a invasão da URSS por três milhões de soldados alemães e seus aliados, em 22 de Junho de 1941, constituiu a manifestação mais contundentemente brutal, até aos vários projectos de uma “Europa do Meio” (Mitteleuropa), de clara liderança alemã. A combinação entre a reunificação e a implosão soviética criava condições quase irrecusáveis para que Berlim voltasse a olhar para o Leste. Sem atendermos a este contexto não estaremos em condições de interpretar o sentido da insistência francesa na UEM. Paris tinha razão quando antecipou as enormes forças de atracção do leste europeu sobre a Alemanha. Mitterrand tentou amarrar o colosso germânico através de uma união monetária, dando carta-branca aos alemães para ditarem as regras do jogo do seu funcionamento. A intenção de Mitterrand era compreensível, todavia o meio de comprometer Berlim com a Europa ocidental não poderia ter sido mais desajeitado e contraproducente.

Hoje, a influência alemã projecta-se de encontro às próprias fronteiras da Rússia, usando, ou não, a União Europeia como veículo. A chanceler Angela Merkel não escuta os conselhos do ancião Helmut Schmidt que aconselha a Alemanha a liderar, mas sem perder a subtileza: “é uma verdadeira forma de arte ser líder, sem o parecer”. Infelizmente, os conselhos de Schmidt não têm surtido efeito. Na crise ucraniana, a chefe de governo alemã não se tem inibido de mostrar o seu poderio de forma ostensiva. Em Novembro de 2013, num jantar oficial em Vilnius, Merkel cortou, insultuosamente, a palavra ao malogrado presidente Yanukovych, com o assentimento medíocre dos comensais do resto da UE. Depois recebeu o pugilista Viktor Klitschko, o “herói” oposicionista, que Der Spiegel confessa estar a ser “treinado” por Berlim para ser o “seu estadista” em Kiev. Só a reocupação da Crimeia pelas tropas russos, com o apoio esmagador da maioria russófona, parece ter devolvido algum sentido dos limites a Berlim. Mas a tentação do leste ficou visível, logo após a reunificação, quando Berlim, unilateralmente, reconheceu a independência da Croácia e da Eslovénia, em 23 de Dezembro de 1991. Berlim agiu em total isolamento, contra os seus onze aliados europeus (na altura, era a Europa dos Doze). Contra os EUA, que pretendiam suavizar a fragmentação da Jugoslávia, de modo a evitar o banho de sangue que veio a suceder. Assim como, contra o pedido de prudência dos principais responsáveis das Nações Unidas. A atitude voluntarista alemã, que depois recuaria para uma posição de segunda linha, ajudou a incendiar a guerra civil. Não a provocou, mas contribuiu para que o preço em vidas humanas fosse muito maior.

Contudo, onde a marca alemã é hoje clara no centro e leste europeu é na economia. Os antigos países dessa zona, conhecidos como PECO (Países da Europa Central e Oriental) constituem mesmo um verdadeiro Hinterland das grandes indústrias germânicas, com mais de 100 milhões de consumidores. Como vimos, noutro capítulo, o alargamento a leste foi uma ocasião propícia para o investimento e a deslocalização do capital germânico. Não foram só os investimentos que antes iam para a periferia ibérica ou para a Grécia, que foram “desviados” para leste. Como salienta Guillaume Duval, no seu esclarecedor e documentado ensaio sobre a economia alemã, em 2005, os investimentos de Berlim nos PECO ultrapassavam até os investimentos realizados em França.

§3. A aposta em duas frentes e os custos da reunificação alemã. Em 1990 a Alemanha tinha tomado uma decisão que iria colocar à prova as suas reais forças. Aceitava o desafio francês de uma UEM, que se destinava essencialmente aos países da Europa central que cumprissem os critérios de convergência (havendo, ao tempo, dúvidas quanto às reais possibilidades de participação da Itália, Grécia, Espanha e Portugal, estando o Reino Unido e a Dinamarca à partida excluídos por opção própria). E, ao mesmo tempo, lançava-se na aventura da reunificação alemã, que trazia consigo enormes oportunidades no longo prazo. A curto e médio prazo a dupla aposta expressava-se, contudo, através de custos extraordinários.

A reunificação traduziu-se no aumento em 25% da população alemã, com um muito menor crescimento do PIB, de 8%. A nova Alemanha tinha de assumir uma ex-RDA com um aparelho industrial anquilosado, com baixa produtividade e altamente poluente. O esforço financeiro foi imenso, embora muitas vezes a imprensa alemã se esqueça de mencionar as generosas subvenções dos fundos comunitários que ajudaram, por exemplo, empresas como a Opel a instalarem fábricas de topo no leste (em Eisenach, na Turíngia), ou à criação de um moderno pólo de microelectrónica na região de Dresden.

Em linha gerais, o esforço de reunificação pode ser traduzido através dos seguintes indicadores:

•Mais de 1 500 mil milhões (ou 1,5 biliões) de euros, transferidos do ocidente para o leste da Alemanha. O equivalente a uma quota anual de 3% do PIB, ao longo de vinte anos.

•O aumento da carga fiscal, através da introdução de um imposto de solidariedade (o Solidaritätzuschlag, ou, numa abreviatura quase carinhosa, Soli), que incide sobre o rendimento das pessoas e das empresas.

•O aumento substancial da dívida pública, que subiu de 36% do PIB (em 1991) para 60,2% (em 2000), face às crescentes necessidades de recurso ao crédito para suportar as fortes taxas de investimento (que passou de 18% do PIB, nos anos 80, para 23% do PIB, na década de 90).

•Um aumento acentuado do desemprego, com o encerramento de muitas unidades industriais obsoletas no leste: de 2,1 milhões de desempregados em 1991 para 3,8 milhões, em 1997.

•Aumento da taxa de inflação para 5,1% em 1992, o que originou uma resposta brutal do Bundesbank, fazendo subir as suas taxas de juro a curto prazo de 4,3% para 9,5%, sem qualquer espécie de consulta aos outros bancos centrais da União Europeia. Esta foi, aliás, a causa da grande recessão de 1993. O que mostra como também aqui a reunificação alemã foi, de facto, paga por todos os europeus.

•Nos anos 90, a própria balança comercial foi ligeiramente desfavorável à Alemanha, tendo 1994 sido o ano mais negativo, com um défice de 1,4% do PIB.

•Outro impacto duradouro da reunificação foi o do aumento da litigância no interior do sistema federal alemão. Antes de 1990, uma das grandes vantagens do federalismo alemão residia na relativa homogeneidade dos estados federados do ponto de vista económico. Isso implicava baixas transferências das regiões mais ricas para as pobres. Ora, dada a divergência mais acentuada entre os 5 novos Länder do leste e os do ocidente, as transferências têm aumentado ao longo dos anos (com resultados muito positivos para a notável convergência que em duas décadas foi conseguida), mas com protestos dos estados contribuintes líquidos. A Baviera apresentou mesmo uma queixa, em 2012, junto do Tribunal Constitucional de Karlsruhe pelo que considera serem contribuições excessivas para o Tesouro federal.

§4. As dolorosas reformas de Gerhard Schröder. Uma penosa e paradoxal ironia da história recente foi, sem dúvida, a representada pelo governo de coligação entre SPD e Verdes, que se estendeu entre 1998 e 2005. Hoje é difícil perceber a que família política Schröder pertencia, pois os grandes elogios são provenientes da direita mais conservadora. Nem a presença de Joschka Fischer, dos Verdes, na condição de vice-chanceler e ministro dos negócios estrangeiros, contribuiu para amenizar o rumo. No ano 2000, Fischer bateu-se, tanto através de um livro, como em numerosas intervenções públicas, pelo federalismo europeu e por um novo contrato social que defendesse o ambiente e os direitos sociais. Ele escreveu com frontal clareza que o futuro, na Europa e na Alemanha, se iria decidir entre dois modelos de modernização rivais: ou a “modernização neoliberal” (die neoliberale Modernisierung), ou a “modernização social e ecológica” (die sozialökologische Modernisierung). Fischer afirmou-se como intrépido defensor desta segunda via.    Contudo, Schröder, que estava muito mais próximo de Tony Blair do que do seu vice-chanceler, escolheu no sentido contrário. Realizou um novo contrato social sim, mas de natureza neoliberal, que satisfez essencialmente o patronato. Diminuiu os direitos e o rendimento do trabalho, aumentou a desigualdade social, e desenvolveu a indústria exportadora alemã numa lógica estritamente nacional, sem grandes preocupações pelas consequências sistémicas para a zona euro das suas escolhas.

A imprensa económica anglo-saxónica tratava a Alemanha como “o homem doente da Europa” (the sick man in Europe). A receita de Schröder, que é bem conhecida dos portugueses, foi clara; reduzir a despesa pública, comprimir a procura interna, reduzir os custos do trabalho, apostar no alargamento dos mercados de exportação da indústria alemã.

De modo sintético, poderemos destacar os seguintes aspectos:

•Entre 1997 e o ano 2000, a despesa pública contraiu-se de 48,4% para 45,1% do PIB.

•A procura interna, que em 1997 representava um terço do PIB, caiu para 25% em 2005.

•Nas contas correntes, passou-se de um défice de 0,8% do PIB, em 1998, para um excedente de 6,5% do PIB, em 2006, correspondendo a 150 mil milhões de euros.

•As Leis Hartz (de I a IV), inseridas num programa neoliberal designado como Agenda 2010, visaram fazer “reformas estruturais” e “flexibilizar o mercado de trabalho (num país que ainda não tem sequer um ordenado mínimo). Foram criados milhões de empregos temporários e mal remunerados (os Minijobs).

•Na segurança social, foi adoptado o Plano Riester, que privatizou parcialmente o sistema de reformas. Com o crash financeiro de 2008, muitos dos planos de reforma viram os seus rendimentos baixar drasticamente, existindo hoje um sério problema de idosos com baixos rendimentos, essencialmente devido a esta causa.

•O grande sucesso registou-se nas exportações. Não só a percentagem das mesmas no PIB cresceu significativamente, como, devido ao bom momento das economias emergentes fora da Europa, a Alemanha começou a exportar mais acentuadamente para o mercado mundial. Essa política foi continuada por Angela Merkel. Os resultados são impressionantes. Em 1995, as exportações valiam 23,7% do PIB (contra 23, 1% das importações). Em 2012, as importações já valiam 51,9% do PIB (contra 47,4% das importações). As exportações para fora da UE passaram de 8,5% do PIB, e 1995, para 27%, em 2012.

•Os custos sociais do “sucesso” das reformas de Schröder foram, todavia, imensos. Em 2006, pela primeira desde que há registos seguros, a Alemanha ultrapassava a França em matéria de desigualdade social: Na Alemanha, os 10% mais ricos tinham um rendimento 7,1 vezes superior aos 10% mais pobres, em 2006. Contra uma relação de apenas 5,3 vezes mais em 1997. Em França, o caminho era o inverso: a desigualdade tinha passado de 7,7 para 6,1 vezes, entre 1997 e 2006.

§5. O significado da “hegemonia defensiva”. A Alemanha transformou-se no país economicamente mais poderoso da Europa, do Atlântico à Ucrânia, mas a maioria da população não sentiu melhorar a sua qualidade de vida significativamente. Bem pelo contrário. Depois de anos de austeridade, de reformas favoráveis apenas ao capital, de contribuições especiais de solidariedade para a RDA, eis que rebenta a grande crise financeira de 2008, que se abate com força sobre o sistema financeiro e toda a economia alemã. O estado federal é obrigado a aumentar a dívida pública para injectar dinheiro nos bancos, cujo comportamento irresponsável tinha colocado o equivalente a 20% do PIB alemão em produtos tóxicos norte-americanos e nas bolhas imobiliárias na Irlanda, na Espanha e na Grécia. A contracção das importações dos tradicionais clientes da Alemanha, incluindo a China, leva a uma queda de 5,3% do PIB alemão em 2009. Contudo, os empregos são mantidos, devido à cultura de co-gestão (Mitbestimmung) que ainda hoje reina no sector produtivo alemão, e ao generoso apoio do governo federal. No final de 2009, Merkel está confrontada com uma população cansada de fazer sacrifícios, sacudida pelas constantes exigências que desde a reunificação os governos sucessivamente lhes colocavam: pela reintegração da ex-RDA, pela entrada no euro, pelo desempenho das exportações, pela irresponsabilidade dos seus banqueiros. O governo está também pressionado pelos seus banqueiros que começam a antecipar perdas, caso a Grécia vá a falência. Não parece que o governo de Berlim tivesse demorado muito tempo a pensar no interesse dos seus outros parceiros quando decide impor a mudança do keynesianismo para uma política europeia generalizada de austeridade. O atraso na aprovação do plano de resgate à Grécia, visou satisfazer o cepticismo dos eleitores alemães cansados de exigências. Pelo contrário, a aprovação final desses planos de austeridade, para além de ser uma condição para evitar a ruptura da própria zona euro, visou satisfazer também os bancos alemães (e de outros países), que foram os primeiros a recuperar os seus empréstimos no processo de reciclagem de credores que teve lugar em todos os países intervencionados.

A resposta alemã à crise foi de um egoísmo de vistas curtas, que agravou a situação geral da zona euro, e, em particular dos países que se viram obrigados a pedir ajudas de emergência. Berlim não apresenta nenhuma saída estratégica para uma situação que, ao contrário do que dizem os responsáveis políticos tenderá a agravar-se, quando a rigidez da UEM começar a atingir o coração da economia francesa, ou voltar a reacender-se em Itália ou em Espanha. O governo alemão tem ocultado a verdade aos seus cidadãos. E essa verdade é que, a sua actuação egoísta acabou por se revelar vantajosa. A Alemanha tem ganho com a crise a vários títulos: a) a baixa do valor do euro em relação ao dólar (passou de 1,6 para 1,3) tem ajudado a aumentar as exportações germânicas, para fora da zona euro; b) o efeito de “sala de pânico”, isto é a fuga de poupanças dos países em dificuldades para a banca alemã tem contribuído para recapitalizar os bancos germânicos, sem recurso aos mercados; c) o mesmo efeito de medo, tem feito cair os juros pagos pelas obrigações da dívida pública alemã para valores negativos, o que significa que entre 2008 e 2012, a crise já trouxe uma poupança de 70 mil milhões de euros em juros não pagos pelo Tesouro alemão; d) embora na Alemanha o cidadão comum pense que só a Alemanha contribui para o fundo de resgate unificado, o MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade), a verdade é que o contributo alemão é apenas de 27% (que permitem um considerável retorno anual para os cofres alemães); e) por último, dado que existe uma duradoura fragmentação financeira no acesso ao crédito dentro da zona euro, isso significa, tanto para os consumidores privados como para as empresas alemãs, uma considerável vantagem competitiva (uma empresa alemã paga 2,3% de juros por um empréstimo a um ano, contra os 3,1% de uma empresa italiana, e os 5,8% de um empresa grega).

O governo alemão abraçou uma mitologia que serve os seus interesses egoístas no imediato, em vez do rigor e da objectividade que permitiriam pensar os interesses estratégicos da Alemanha no longo prazo, e no quadro da União Europeia. A mitologia consiste em elogiar a austeridade, negando os efeitos corrosivos e destrutivos que está a causar em toda a Europa, particularmente nos países sob resgate. Mitologia também quando alimenta o medo dos seus cidadãos, em relação à necessidade de encontrar instrumentos de mutualização da dívida, mas também à urgência de uma estratégia de desenvolvimento sustentável comum, que possa corrigir os erros genéticos da UEM, e apontar numa direcção efectivamente federal. Mitologia ainda quando mantém os seus cidadãos ignorantes em relação à tempestade que rebentará quando a crise atingir os países centrais, e em particular a França. Talvez a mitologia seja uma forma de auto-ilusão. Talvez Merkel e Schäuble acreditem nas suas próprias fábulas.

A hegemonia alemã é assim, uma hegemonia defensiva. Que gere as expectativas dos seus cidadãos, como se a Alemanha não tivesse responsabilidades para com os seus parceiros da zona euro. Mais, como se esses parceiros fossem meros hóspedes, numa zona euro cada vez mais parecida com uma zona alargada do marco alemão. Não tenhamos ilusões. Com a sua dimensão e peso, a Alemanha seria sempre olhada com suspeita. Se tomasse a iniciativa da reforma, seria criticado por aqueles que temem a iniciativa alemã, só por vir da Alemanha. Mas, nesta fase, o que é imperdoável é a Alemanha bloquear aquilo que deve ser feito. Com sabedoria, a Alemanha poderia conhecer nesta crise a sua melhor hora. Um período de “hegemonia benigna”, como o grande país que lideraria a Europa para um novo quadro institucional e constitucional, de natureza vincadamente federal. Em vez disso, a Alemanha agarrou-se ao que sobra da ortodoxia da UEM, como se isso fosse a sua inamovível trincheira. Merkel falhou o código de conduta declarado por Brandt para a futura conduta alemã, depois da queda do Muro. Está a separar os interesses da Alemanha, do seu dever para com a Europa como um todo solidário. O tempo chegará em que até a própria Alemanha será forçada a sair da trincheira dos seus interesses exclusivos, escondidos atrás das regras insustentáveis da UEM. Mas, nessa altura poderá ser tarde demais para salvar a União Europeia. E quem sabe, tarde demais também para preservar os interesses permanentes da própria Alemanha.

31 de Março de 2014