Artigo de Eugénio Rosa.
A limpeza da banca do crédito malparado e dos imóveis, através da criação de “banco mau”, era uma medida defendida pela “troika” que só não avançou porque os seus custos teriam de ser suportados pela banca, mas que agora foi retomada pelo 1º ministro António Costa dizendo que isso não acarretaria quaisquer custos aos contribuintes, o que depois foi desmentido (a inexistência de custos) pelo ministro das Finanças, segundo alguns media. Mas mais importante que esta polémica é saber se uma medida desta natureza terá ou não elevados custos para os contribuintes. E isto até porque os portugueses já conhecem muito bem, porque tiveram de pagar, o que custou a criação de um “banco mau” no caso do BPN, BES e BANIF, e agora o que está em debate no espaço público é a criação de um “banco mau”, não para um banco apenas, mas para toda a banca. Portanto, aqui a dimensão do problema é maior e a dimensão dos eventuais custos para os contribuintes serão também maiores. E isto até porque a experiência tem provado que a avaliação dos custos pelos governos em relação às medidas que toma nunca é rigorosa (os prejuízos de 800 milhões € de que falava inicialmente Teixeira dos Santos em relação à nacionalização do BPN transformaram-se em quase 6.000 milhões €, continuando em divida à CGD, por financiamentos feitos à operação BPN, mais de 3.500 milhões € como consta das contas de 2014).
A DIMENSÃO DO CRÉDITO VENCIDO E DO CRÉDITO EM RISCO NA BANCA PORTUGUESA
Para se poder ter uma ideia da dimensão dos valores que poderão estar em jogo, observem-se os dados do Banco de Portugal constantes do quadro 1, referentes ao crédito bruto e ao crédito e juros vencidos no período 2007/2015.
Quadro 1 – Variação do crédito bruto e do crédito vencido na banca em Portugal
Segundo a definição do Banco de Portugal, credito vencido é o “Crédito em situação de incumprimento de pagamento ou seja cujos prazos de amortização não foram respeitados pelo devedor”. E entre Março de 2007 e Junho de 2014, e estes são os dados mais recentes disponibilizados pelo Banco de Portugal, enquanto o crédito bruto total (antes de deduzidas as imparidades, ou seja, das perdas prováveis) aumentou apenas 7,7%, o crédito vencido aumentou 327,2% na banca em Portugal, pois passou de 4.955 milhões € para 21.166 milhões €. Em percentagem do crédito bruto total, entre 2007 e 2014, o crédito vencido subiu de 1,9% para 7,4%, ou seja, aumentou 3,9 vezes, e continua a crescer. Isto dá bem uma ideia do tipo e da qualidade da gestão dos banqueiros, nomeadamente antes do início da crise, onde a análise rigorosa de risco estava ausente em muitos bancos.
No entanto, a situação na banca é ainda mais grave que os dados do Banco de Portugal constantes do quadro anterior revelam. O quadro 2, com dados das contas de 2015 dos seis principais bancos, cuja carteira de crédito representa cerca de 80% da carteira total dos bancos em Portugal, dá uma ideia mais clara e rigorosa da situação da banca no nosso país, e dos custos que se teria de suportar para resolver o chamado crédito mal parado que existe na banca em Portugal.
Quadro 2 – Crédito em incumprimento e crédito em risco nos 6 principais bancos em 2015
Segundo o Banco de Portugal, “crédito com incumprimento é igual crédito vencido há mais de 90 dias mais o Crédito de cobrança duvidosa”, e o crédito em risco obtém-se somando ao anterior também o “crédito vencido há menos de 90 dias e o crédito reestruturado”, portanto crédito em que também se corre o risco de não ser recebido, ou pelo menos, uma grande parte dele. No fim de 2015, só nestes 6 bancos, o crédito com incumprimento somava 21.428 milhões €, e o crédito em risco totalizava 28.038 milhões €.
Mas não é apenas a nível do credito malparado que existe na banca que o problema se põe. Para além do chamado crédito malparado, existe também milhares de imóveis e terrenos que a banca tem sido obrigada a receber em dação em pagamento por impossibilidade dos devedores o fazer, que se estão a desvalorizar e cuja existência no Ativo da banca representa um pesado lastro. O quadro 3, com dados dos relatórios e contas de 2015 dos 6 principais bancos, dá uma ideia da dimensão deste problema.
Quadro 3 – Valor dos imoveis na posse da banca entregues por devedores em pagamento de empréstimos (dação em pagamento) – Valores de 2015
Portanto, aos 28.038 milhões € de crédito em risco existente no fim de 2015 nos seis principais bancos haveria que somar ainda mais 7.989 milhões € de imóveis e terrenos que estes 6 bancos receberam em dação de pagamento, que já têm uma desvalorização (perda de valor) de 1.626 milhões € tendo, por isso, constituído imparidades do mesmo montante, e em relação aos quais a banca não sabe o que fazer e que constituem um pesado lastro para o sistema financeiro.
QUAL SERIA O CUSTO DA TRANSFERÊNCIA DESTE CRÉDITO PARA UM “BANCO MAU”
É evidente que crédito com incumprimento e crédito em risco não significa que todo esse crédito esteja perdido para a banca, o mesmo acontecendo em relação aos imóveis apesar da importante perda de valor que se tem registado. Apenas uma parte, coberto por “imparidades”, é que a banca prevê, com fundamento, que não será recebido (o cálculo das imparidades em relação ao credito é feito tendo com base a probabilidade de “default”, ou seja, de incumprimento – PD – e a perda, em percentagem do total, em caso de incumprimento que é a LGD, que é igual à parcela de crédito que o banco prevê perder, ou seja, não receber do credito concedido). O mesmo se poder dizer em relação aos imóveis, cuja cálculo de perda de valor tem como base avaliações feitas por peritos. Portanto, muito daquele crédito tem garantias reais (colaterais), e as garantias dos imoveis são os próprios imóveis, por isso há normalmente uma parcela deste valores que é recuperada.
A transferência do crédito com incumprimento ou em risco e dos imóveis para um “veículo”, chame-se ele “banco mau” de toda a banca em Portugal, ou um outro qualquer nome, representa um custo elevado para este “banco mau”, porque este crédito tem um “preço” que terá de ser pago. Cada crédito ou cada imóvel transferido, por não ter sido abatido ao ativo significa que não tem imparidades a 100% (não está provisionado em 100%), portanto ainda existe uma parte “boa” de cada crédito ou referente a cada imóvel que banca prevê ainda receber. E essa parte “boa” está contabilizada no Ativo liquido da banca, e não pode ser abatida de qualquer maneira porque isso provocaria um “buraco” na banca, causando um desequilíbrio entre Ativo e Passivo (determinaria A < P). Para que isso não aconteça seria necessário que fosse pago ao “banco mau” um valor correspondente ao valor atual desse crédito bom e desses imóveis (ou seja, o que se prevê ainda receber deles) ou por meio de aumento dos Capitais Próprios, o que exigiria a recapitalização da banca nesse valor. Se isso não fosse feito os rácios de capital desceriam certamente abaixo dos regulamentares ou, em caso extremo, o banco poderia entrar mesmo em falência técnica, o que poderia levar ao seu colapso. Portanto, para que isso não suceda seria necessário que fosse pago (a cada banco) imediatamente, pelo “banco mau”, a parte “boa” do crédito e dos imóveis que fossem transferidos para ele. Só assim é que se evitaria o aparecimento de “buracos”, ou seja, de prejuízos que tinham de ser registados nas contas, causando a delapidação dos capitais próprios dos bancos que aderissem a esta solução.
O “banco mau” para toda a banca não possui fundos para o fazer. Alguém teria de fornecer ao “banco mau” os meios financeiros que ele necessita para pagar aos bancos a parte “boa” dos créditos e o valor atual dos imóveis que receberia. Seria a banca? Neste caso, embora o crédito tenha sido transferido para o “banco mau”, o risco associado a esse crédito continuaria a contaminar os balanços dos bancos, já que se o banco mau fosse criado com capitais da banca inevitavelmente as suas contas teriam de ser consolidadas nas dos bancos proprietários. E isso não alteraria significativamente a situação atual. Para que isso não acontecesse seria necessário que fosse o Estado a financiar o “banco mau” dos meios necessários, ou então o Estado a dar uma garantia. Quer num caso quer em outro seria o Estado a assumir o risco e, consequentemente, as perdas que daí resultassem. E seria difícil no futuro recuperar esse dinheiro da banca devido as dificuldades que enfrenta.
Para que se possa ficar com uma ideia mais concreta do que isso significa interessa recordar o que aconteceu com o BPN e que ainda se encontra por resolver. Por decisão do governo, a CGD financiou o “banco mau” do BPN. Nas contas da CGD de 2014, no relatório da comissão de auditoria anexa às contas, consta a seguinte informação: “A exposição da CGD às entidades Parvalorem SA, Parups SA , e Participadas SGPS (veículos que pertencem à esfera do Estado) inclui 2.500 milhões € de obrigações, 38,3 milhões € de crédito, e 1.000 milhões € de papel comercial subscrito pela CGD (2.500M€+38,3M€+1.000M€ = 3.538,3M€). Este montante será amortizado pelas vendas dos ativos daqueles veículos”. É uma divida atual à CGD por credito concedido aos veículos (o “banco mau do BPN”) que ficaram com o crédito “mau” do BPN, e que só será paga com a receita que se obtiver da venda desses ativos “maus” do BPN. E é de prever que a receita não seja suficiente para pagar a divida à CGD que continua por pagar, no montante de 3.538,3 milhões € (em Abril/2016 o ministro das Finanças afirmou que o Estado previa receber do BPN apenas 2.000 milhões € até 2020. Será isso verdade? E o que falta, quem paga?). E o que faltar terá de ser pago pelo Estado, ou seja, pelos contribuintes. Portanto, dizer que um “banco mau” para toda a banca não custará nada aos contribuintes é uma ilusão, para não dizer mesmo uma grande mentira.
UM “BANCO MAU” PARA TODA A BANCA FINANCIADO PELO ESTADO OU COM A GARANTIA DO ESTADO É UMA BOMBA AO RETARDADOR
No entanto, não se pense que o risco que o Estado corre por conceder os meios financeiros ou se der uma garantia reduzem-se apenas aos referidos anteriormente. Um outro problema que existe em relação à criação de um “banco mau” para toda a banca é o cálculo da parte boa do crédito e dos imóveis transferidos. E essa parcela é a diferença entre o crédito bruto e as imparidades constituídas. E estas poderão estar subestimadas no momento de transferência. E é isso que todos os bancos procurarão fazer para receber mais. Para além disso, e após a transferência, o volume de imparidades, ou seja, do crédito e dos imóveis que não receberá não ficará congelada. É de prever que aumente com o correr do tempo, como aconteceria se esse crédito e esses imóveis continuassem nos bancos.
O gráfico 1, mostra de uma forma quantificada a perda de valor anual da carteira de credito dos seis principais bancos no período 2007/2015.
Gráfico 1- Perda de valor anual da carteira de crédito dos 6 principais bancos
Em 9 anos, a perda de valor da carteira de crédito dos 6 principais bancos atingiu 22.461 milhões €, por isso os 6 bancos tiveram de constituir “imparidades” em igual montante.
A questão que se coloca em relação ao “banco mau” é a seguinte: Quem suportará um eventual aumento das imparidades registadas quer no crédito quer nos imóveis transferidos para o “banco mau” após essa transferência? Será a banca? Ou será o Estado se ficar responsável pelo “banco mau” ou se der uma garantia? É evidente que se for o Estado responsável pelo financiamento ou se der uma garantia ao “banco mau” serão também os contribuintes que acabarão por pagar os custos de toda operação para limpar a banca da má gestão dos banqueiros na concessão de crédito.
Um “haircurt” (corte) no crédito transferido, por ex., de 20%, como alguns defendem, para além das imparidades já constituídas não resolve o problema pois mesmo com este corte a receita obtida com a venda dos ativos poderá revelar-se insuficiente e, para além disso, criaria um “buraco” no Ativo dos bancos que teria de ser compensado com mais prejuízos que causariam ou a delapidação dos capitais próprios ou exigiriam recapitalização. A única forma de garantir que os contribuintes não pagarão nada é o Estado não financiar nem dar garantias. Mas interessará isso à banca? Penso que não, pois quando se fala no “banco mau” na banca a pergunta que surge é esta: Quem pagará a fatura? Os banqueiros estão à espera que seja o Estado, ou seja, os contribuintes a pagá-la. Fernando Ulrich já o disse. É bom não ter ilusões.
A ILUSÃO DE QUE A CRIAÇÃO DE UMA “BANCO MAU” PARA A BANCA RESOLVERÁ O PROBLEMA DA FALTA DE CREDITO ÀS EMPRESAS E ÀS FAMÍLIAS
É certo que a transferência do crédito malparado e dos imoveis que os bancos têm na sua carteira para um “banco mau”, desde que os custos dessa operação fossem suportados pelo Estado, ou seja, pelos contribuintes alivaria os bancos, reduzindo as necessidades de capital. E isto porque estas são calculadas com base no crédito concedido pelos bancos, ou melhor no Ativo dos bancos ponderado pelo risco. Quanto menor é esse Ativo e menor for o risco que cada banco tenha na sua carteira menor serão as necessidades de capital, e menor será pressão e a exigência feita aos acionistas para que recapitalizem o seu banco. No entanto, mesmo que isso aconteça, não é condição suficiente para que os bancos aumentem significativamente o crédito às empresas e às famílias. Para concluir isso observe-se o quadro 4, construído com dados divulgados pelo Banco de Portugal
Quadro 4 – Variação do rácio de transformação da banca em Portugal entre 2000 e 2015
Em 2000, o rácio de transformação da banca em Portugal era de 121%, ou seja, por cada euro de depósito que a banca recebia emprestava 1,21€. Com a entrada na zona euro, e com a política de crédito fácil e arriscado, o rácio de transformação disparou atingindo em 2007, início da crise, 150%, ou seja, a banca por cada euro de depósitos emprestava 1,5€. É evidente que pagar juros apenas de um euro de depósitos e com base nesse euro emprestar um euro e meio e receber juro por 1,5€ dava um sobrelucro à banca, o que foi aproveitado pelos acionistas para retirarem da banca elevados lucros, descapitalizando-a e deixando-a na situação em que se encontra. E muito desse crédito concedido, fonte desse sobrelucro, foi feito sem uma análise rigorosa do risco, tendo-se agora de pagar uma fatura elevada, e sendo uma parte dela paga pelos contribuintes. A “troika” impôs a desalavancagem dos bancos estabelecendo como limite máximo o rácio de 120%, ou seja por cada 1€ de depósitos recebidos a banca só podia emprestar 1,2€. No entanto, como os dados do Banco de Portugal constantes do quadro 4 revelam, em 2015, o rácio de transformação médio na banca em Portugal era apenas de 101%, ou seja, por cada 1€ de depósitos emprestava apenas 1,01€. E se a análise for feita em relação aos principais bancos a situação, em relação a alguns deles, é ainda mais grave. Por ex., a CGD, em 2015, por cada 100€ de depósitos que tinha, emprestava apenas 90,1€, pois o seu rácio de transformação era apenas de 90,1%. Portanto, não são as imposições do supervisor nem as impostas pelos próprios que limitam a concessão de crédito. Os bancos até querem conceder crédito para aumentar o negócio bancário, e assim recuperar a rentabilidade, que é um problema grave atual.
A falta de crédito às empresas e às famílias não resulta apenas da banca não querer emprestar, ou de ter elevado crédito em risco ou com incumprimento bastando, como alguns pensam, fazer uma “limpeza” dos balanços, como defende o 1º ministro, para que o problema seja resolvido e “tudo volte à normalidade”. A falta de crédito resulta também da crise, e dos seus efeitos nas empresas e famílias, a maioria das quais estão profundamente endividadas, e numa situação debilitada, que não conseguem dar garantias mínimas aos bancos para que estes possam conceder crédito sem correr elevado risco, ou seja, com um mínimo de garantida que esse crédito será depois pago. Muitas das empresas que recorrem à banca, pedem crédito para substituir as vendas que não conseguem fazer, mas este problema não se resolve com credito mas sim com crescimento económico. E esta situação não se alterará enquanto o crescimento económico for anémico. O que governo deveria fazer não era criar um “banco mau” para limpar os bancos dos resultados da má gestão dos banqueiros, desresponsabilizando-os, mas sim criar fundos de garantia (os fundos de garantia mutua existentes são insuficientes e inadequados para a maioria das empresas), com fundos comunitários que apoiassem as empresas, e não os bancos, a obter crédito junto da banca dando a esta um mínimo de garantias, sem as quais o “spread” que as empresas terão de pagar, quando conseguem o credito, será muito elevado e a concessão de crédito, sem atender ao risco, poderia levar à implosão de mais bancos, com custos muito elevados para os contribuintes.