SNS: uma nova ambição para a saúde com um orçamento em 2016 que não é diferente do orçamento de 2015 e o perigo de uma privatização crescente da saúde

Artigo de Eugénio Rosa.


O programa do atual governo para a área da saúde está cheio de bons objetivos e de boas intenções que se fossem concretizadas representariam certamente uma melhoria dos serviços públicos de saúde prestados aos portugueses.

Efetivamente no documento que foi distribuído aos deputados pelo ministro da Saúde, aquando do debate do Orçamento do Estado para 2016, encontramos declarações esclarecedoras das intenções do governo para o combate às desigualdades no acesso ao bem saúde e para o bem-estar dos portugueses. Dessas declarações destacamos, pela sua importância, as seguintes: (1) “Reforçar a equidade no acesso e a qualidade dos serviços prestados pelo SNS”; (2) “Uma política de saúde de proximidade”; (3) “Assegurar os cuidados de saúde nas situações de toxidependência, doenças infeciosas e doenças do foro mental”; (4) “Garantir o acesso de toda a população a cuidados de saúde de qualidade”; (5) “Promover a saúde através de uma nova ambição para a Saúde Pública”; (6) “Reduzir as desigualdades no acesso à saúde”;(7) “Repor o equilíbrio na partilha do financiamento entre as famílias e o Estado, o que representa uma prioridade tendo em atenção os elevados custos a cargo das famílias”, o que significa naturalmente que uma parcela dos custos da saúde suportados agora pelas famílias, que em percentagem são já dos mais elevados em toda a União Europeia, passem a ser suportados pelo Estado; (8) “Eliminar as taxas moderadoras do acesso ao serviço de urgência sempre que o utente seja referenciado”; (9) “Redução global das taxas moderadoras”; (10) “Ampliar a capacidade de resposta do SNS, (11) Expandir e melhorar a capacidade da rede de cuidados primários”; (12) Reforçar os cuidados continuados prestados no domicilio e no ambulatório” ; (13) “Reforçar a rede nacional através do numero de vagas em cuidados continuados integrados”;(14) “Melhorar a resposta dos cuidados paliativos e implementar cuidados paliativos pediátricos”; etc., etc., etc., …

O ORÇAMENTO DO SNS PARA 2016 NÃO É DIFERENTE DO DE 2015

No entanto, quando comparamos as “ambições” deste governo na área da saúde com os meios disponibilizados no Orçamento do Estado para 2016 para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) concluímos que eles são praticamente coincidente com os de 2015, ano em que as restrições violentas, com efeitos graves na prestação dos serviços de saúde pública à população, tanto em termos quantitativos como qualitativos, são conhecidas.

O gráfico seguinte sobre a evolução da despesa do SNS, construído com dados fornecidos pelo ministro da Saúde aos deputados, aquando do debate do O.E.-2016, mostra que o orçamento do SNS para 2016 não é diferente do orçamento de 2015.

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Como mostra o gráfico, em 2015, a despesa total do Serviço Nacional de Saúde foi de 8.933 milhões € e a prevista para 2016 é de 8.933 milhões € segundo o Ministério da Saúde, ou seja, apenas mais 8 milhões €. E isto quando para fazer face apenas ao aumento de preços previstos pelo governo em 2016 (1,2%) seriam necessários mais 99,1 milhões €. Para além disso, há ainda o aumento automático da despesa com pessoal que resulta da reposição do corte dos salários em 2016 que governo prevê que atinja 139 milhões €, embora refira que este valor reflete “o impacto anual da reposição de salários e também os encargos com a, eventual, admissão de profissionais”.

É certo que o governo PS de António Costa prevê poupanças na politica do medicamento (90 milhões €), nas compras centralizadas (30 milhões €), no combate à fraude (30 milhões €) , resultantes do aumento da eficiência (81 milhões €), e um aumento das receitas próprias (65 milhões €), mas muitas destas poupanças não são certas correndo-se o risco de se ficar aquém dos objetivos fixados. Para além disso, os 8.933 milhões € a preços correntes de despesa prevista para 2016, se retirarmos o efeito do aumento de preços, correspondem apenas a  8.271 milhões € a preços de 2010 (em 2010, a despesa do SNS foi de 10.455 milhões €).

A AMBIÇÃO DESTE GOVERNO É REDUZIR O PESO DAS DESPESA DE SAÚDE DAS FAMÍLIAS, MAS O PESO DAS TRANSFERÊNCIAS DO O.E. NO SNS NÃO AUMENTA

Uma das ambições importantes declaradas pelo atual governo é diminuir o peso das despesas de saúde suportadas diretamente pelos portugueses, que nos últimos anos tem crescido muito, ultrapassando a média da União Europeia. No entanto, uma coisa é a intenção e outra é o que faz ou pode fazer. O quadro 1, mostra o peso da participação (transferências) do Orçamento do Estado na despesa do Serviço Nacional de Saúde.

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Como revelam os próprios dados do Ministério da Saúde, em 2016, a percentagem da despesa do SNS que é financiada pelo Orçamento do Estado (88,96%) é praticamente igual à de 2015 (88,28%). É evidente, que não é com este volume de transferências do Orçamento do Estado que se conseguirá reduzir a despesa de saúde suportada atualmente de uma forma direta pelas famílias. Portanto, uma coisa são intenções, e outra bem diferente é a realidade da linguagem objetiva dos números oficiais.

MEDIDAS DE RACIONALIZAÇÃO DE DESPESAS QUE CONTINUAM A NÃO SER TOMADAS

Uma análise fina do orçamento do SNS para 2016 entregue aos deputados permite identificar áreas onde se podiam racionalizar despesas e obter poupanças significativas já identificadas pelo Tribunal de Contas há muitos anos, mas que não mereceram por parte dos sucessivos governos qualquer atenção. De acordo com a conta previsional do SNS para 2016, apresentada pelo Ministério da Saúde, prevê-se que, em 2016,  o SNS gaste com “Fornecimentos e Serviços Externos” 3.569 milhões €, sendo 1.187 milhões € de produtos vendidos em farmácias, e 1.300 milhões de meios complementares de diagnóstico e terapêutico. Para além disso prevê-se que o SNS gaste, em 2016, com “Fornecimentos e serviços” também adquiridos a privados 633 milhões €, aumentando os custos das “Parcerias Públicos Privadas” existentes em alguns hospitais, entre 2015 e 2016, de 438 milhões € para 448 milhões €. São valores enormes despendidos pelo SNS, que alimentam os negócios e os lucros de entidades privadas, que interessaria analisar profundamente com o objetivo de saber o que podia ser feito internamente com uma melhor utilização dos recursos que dispõe o SNS. Para isso, era necessário fazer um levantamento exaustivo dos desperdícios, da subutilização de equipamentos e outros recursos, com o objetivo de tomar medidas fundamentadas de racionalização e melhor utilização dos recursos existentes em beneficio de todo o SNS e dos seus utentes. Era isso o que devia ter sido feito após a auditoria do Tribunal de Contas feita já há muitos anos que concluiu que, com os mesmos níveis de recursos financeiros, materiais e humanos, se podia prestar à população, como uma melhor e mais racional utilização, mais serviços de saúde correspondentes, na altura, já a 2.000 milhões €. O estudo e a identificação onde isso poderia ser feito, nunca foi realizado pelos sucessivos governos, que preferiram optar pelo corte cego a pretexto da consolidação orçamental. E o atual governo parece seguir o caminho dos anteriores, esquecendo que o caminho de uma utilização eficiente dos recursos é longo e leva tempo, face ao “estado atual da arte”.

OS JUROS PAGOS PELO ESTADO JÁ SÃO SUPERIORES ÀS TRANSFERÊNCIAS DO ORÇAMENTO DO ESTADO PARA O SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE

O gráfico 2 mostra de uma forma clara uma situação que não devia acontecer, que é a dos juros pagos pelo Estado português, aos seus credores que são fundamentalmente o FMI, a União Europeia, e grandes grupos financeiros ser já superior àquilo que o Estado gasta com a saúde dos portugueses

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Em 2010, as transferências do O.E. para o SNS foram superiores aos juros da divida publica pagos pelo Estado em 3.704 milhões €; em 2011 em 1.983 milhões € e, em 2012 em 1.523 milhões. Mas em 2013, as transferências para o SNS já foram inferiores em 26 milhões € aos juros pagos pelo Estado; em 2014 essa diferença aumentou para 706 milhões €; em 2015 foi de 576 milhões €; e, em 2016, o atual governo prevê que os juros a pagar pelo Estado sejam superiores às transferências do O.E. para o SNS em 542 milhões €. A saúde dos portugueses continua a ter menores recursos do Estado que os credores, uma situação que é inaceitável, o que exige uma reestruturação da divida pública, reduzindo nomeadamente os elevados juros que são pagos.

A ADSE COMO INSTRUMENTO DE FINANCIAMENTO DO SETOR PRIVADO DE SAÚDE E A NOMEAÇÃO DE UMA COMISSÃO VICIADA PELO MINISTRO DA SAÚDE JÁ QUE OS TRABALHADORES E OS APOSENTADOS FORAM MARGINALIZADOS

O quadro 2 permite rapidamente compreender o que tem acontecido na ADSE a nível do seu financiamento e o que ela representa de benefícios para o setor privado da saúde.

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Como revelam os dados divulgados pela própria ADSE, o Orçamento do Estado deixou totalmente de a financiar a partir de 2011 (a partir deste ano deixou de haver transferências da OE para a ADSE), e a partir também desse ano as entidades empregadoras, que são os serviços públicos, reduziram progressivamente a sua contribuição que deixou de existir a partir de 2014. Portanto, são só os descontos feitos nos salários dos trabalhadores da Função Pública e dos aposentados (3,5% sobre salários e pensões) que financiam atualmente a ADSE. E essas contribuições têm determinados elevados saldos anuais, o que significa que a taxa de desconto é excessiva, amputando sem justificação uma parcela dos já baixos rendimentos dos trabalhadores e aposentados que urge corrigir.

Por outro lado, se olharmos para os custos (aplicações das receitas obtidas) conclui-se que, em 2015 por ex., foram gastos com o chamado “regime convencionado (médicos privados, clinicas e hospitais privados) 317 milhões € e com “regime livre”, que são também privados, 130 milhões €. A ADSE está a alimentar/financiar o setor privado da saúde com mais de 400 milhões € por ano que aproveita também os meios financeiros obtidos desta forma para atrair e desnatar o SNS de muitos dos seus melhores profissionais pagando remunerações superiores às pagas pelo Estado, ainda por cima sujeitas a cortes.

É importante, portanto, não esquecer que neste contexto, a ADSE é um instrumento importante de financiamento do setor de saúde privada em Portugal, de concorrência e corrosão do SNS, e é por isso que os grandes grupos privados da saúde a defendem tanto, e consideram mesmo que o seu modelo devia ser alargado a todo o setor de saúde (é chamada liberdade de escolha na saúde financiada pelo Estado e pelos utentes de que tanto falam), procurando desta forma destruir (corroer) o Serviço Nacional de Saúde. Portanto, embora a ADSE seja considerado pela maioria dos trabalhadores da Função Pública um beneficio importante, que deve ser respeitado e não destruído, e embora seja um meio importante que tem evitado um ainda maior agravamento da situação do SNS (o SNS dificilmente suportaria mais 1.300.000 de utentes que são os beneficiários da ADSE), no entanto qualquer alargamento ou mudança no seu sistema de governação deverá ser pensado neste contexto, e não poderão ser esquecidas as suas consequências para o SNS, e em termos do serviço público de saúde no país e de promoção do setor privado.

É por isso que é extremamente preocupante a composição da comissão criada  recentemente pelo ministro da Saúde para reformar a ADSE, em que todos os seus membros ou quase todos são defensores da saúde privada, em que os representantes dos trabalhadores e aposentados (os únicos financiadores atuais da ADSE), foram totalmente marginalizados e afastados. É preciso mudar essa situação e com urgência já que as concussões serão apresentadas até junho/2016 e estão certamente viciadas à partida. É o alerta que fazemos e deixamos aqui aos partidos que apoiam este governo