Saúde e Educação

Artigo de Manuela Silva e Nuno Serra


A degradação dos sistemas públicos de Saúde e Educação, ao longo dos últimos três anos, não traduz apenas os impactos resultantes da vigência do Memorando de Entendimento, assinado com a troika em Maio de 2011 e que impôs cortes orçamentais substantivos – agravados ao longo da implementação do programa de «ajustamento» – nestes dois domínios essenciais do Estado Social português. A contracção, fragilização e transformação progressiva dos sistemas públicos de Saúde e Educação reflecte também os efeitos da aplicação de uma agenda ideológica que foi fazendo, desde Junho de 2011, o seu caminho. A coberto, justamente, das supostas «imposições externas» e «inevitabilidades», que o próprio memorando comportaria.

Estas duas linhas de força – as restrições de natureza orçamental (os cortes propriamente ditos) e as medidas de natureza política e ideológica (orientadas para a descaracterização do Serviço Nacional de Saúde e da Escola Pública) – colocam em questão a capacidade de resposta efectiva destes dois domínios do Estado Social e têm desqualificado essas mesmas respostas enquanto instrumento de política social pública, de redistribuição e promoção da igualdade de oportunidades e de efectivação de direitos sociais, da cidadania e da coesão social.

No quadro dos constrangimentos que Portugal enfrenta, os desafios que se colocam a uma governação à esquerda, fundada em soluções políticas apostadas em responder com responsabilidade e determinação aos problemas do país, assumem pois uma dupla natureza. Por um lado, é urgente estancar e reverter os cortes orçamentais efectuados na Saúde e na Educação ao longo dos últimos três anos, que comprometem o contrato social estabelecido com os cidadãos nestes domínios. Por outro lado, é essencial devolver ao Serviço Nacional de Saúde e à Escola Pública os princípios matriciais de política social em que se fundaram e que foram sendo consecutivamente subvertidos, em nome de uma agenda liberalizante que aposta na sua residualização e desqualificação.

Sobretudo no que concerne a esta segunda vertente, a da restituição e recomposição da filosofia de actuação inerente às políticas públicas de Educação e Saúde, importa reafirmar e concretizar, entre outros, os princípios relativos: à igualdade e universalidade no acesso (o que pressupõe a existência de uma rede pública de estabelecimentos de ensino e de saúde, nos seus diferentes níveis, que responda às necessidades dos cidadãos); ao fomento da equidade e da igualdade de oportunidades (que pressupõe a não discriminação, designadamente por razões socioeconómicas, uma adequada organização dos serviços e a preservação e incremento da sua qualidade); à assumpção destes sistemas como verdadeiros sistemas, que se procuram adaptar às necessidades de cada contexto, contrariando assim a tendência recente de reforço das lógicas de concorrência e dualização, nefastas para o cumprimento dos direitos à Educação e à Saúde, consagrados na Constituição.

Uma governação à esquerda, no quadro das políticas públicas de Saúde e Educação, pressupõe ainda uma clarificação inequívoca do quadro de relações entre o Estado, os privados e o designado Terceiro Sector. A oferta pública deve potenciar os recursos instalados e o conceito de diferenciação e de supletividade da oferta privada deve regressar à agenda do debate político, à esquerda. Tal como devem ser profundamente repensadas e revistas as lógicas inerentes à constituição de parcerias público-privadas e as diversas formas de transferência de recursos orçamentais para privados. É fundamental que qualquer compromisso com outros agentes garanta a prestação de serviços de acordo com os princípios de política pública, não seja lesivo para o Estado e para as finanças públicas e seja escrutinado de forma eficaz e transparente. Impõe-se, nestes termos, a rejeição do modelo ideológico segundo o qual os sistemas de Educação e Saúde integram todo o tipo de agentes, independentemente da sua natureza jurídica. E, em matéria de entidades que integram o Terceiro Sector, por natureza um universo tão amplo e heterogéneo, uma governação à esquerda deve procurar estabelecer uma distinção clara entre os actores de uma economia social solidária e as organizações privadas que não comungam dos princípios inerentes às políticas sociais públicas.

Por fim, na agenda política de uma governação à esquerda, é necessário resgatar e reafirmar a ideia de que as políticas públicas de Educação e Saúde constituem instrumentos indissociáveis de uma agenda económica progressista e de modernização do país. Isto é, de um modelo de desenvolvimento que aposta na competitividade da economia portuguesa a partir da qualificação dos recursos humanos, do combate às desigualdades e do fomento do bem-estar e da coesão social. No esteio, aliás, da reflexão programática que o Congresso Democrático das Alternativas tem desenvolvido desde o seu congresso fundador.