Da inimputabilidade da banca e outras dúvidas

Artigo de Alexandre Abreu.


Mesmo no caso de um problema herdado, o novo governo tem a obrigação de usar de bastante mais clareza perante os portugueses

O caso BANIF caiu nas mãos do novo governo como uma bomba ao retardador deixada pelo governo anterior, provavelmente em condições tais que nenhuma solução possível seria uma boa solução. Mais uma vez, os portugueses são chamados a pagar uma factura pesada (que poderá aproximar-se dos quatro mil milhões de euros1 – perto de metade do orçamento público anual para a saúde) pelos desmandos de um sector que tem proporcionado avultados lucros privados mas que, quando é chegada a hora da verdade, joga segundo regras diferentes dos outros, conseguindo que o Estado acorra a garantir a socialização dos prejuízos.

Porém, o facto de ter recebido este caso como uma herança do anterior governo e de, chegados a este ponto, estar em causa optar pela menos má das soluções não isenta o governo actual da responsabilidade de explicar claramente aos portugueses porque é que a solução adoptada é a melhor ou menos má, o que implica dar resposta a algumas perplexidades óbvias e dúvidas legítimas. Receio que, até agora, essa resposta cabal ainda não tenha sido dada. O governo pede-nos que acreditemos que esta é a solução que melhor defende o interesse nacional, à luz dos critérios da salvaguarda do emprego, da preservação da confiança no sistema bancário e do custo para o erário público, mas não nos deu ainda os elementos para que julguemos por nós mesmos se assim é. E isto não vai lá só através da confiança.

A primeira das perplexidades é como é que possível que a solução adoptada se limite a reproduzir o modelo que tem causado o problema. A banca é privada quando toca a distribuir dividendos e dinamizar estratégias de diversificação e consolidação de grupos económicos, pública quando se trata de suportar perdas, e novamente privada uma vez absorvidas as “imparidades”, até à ronda seguinte de socialização das perdas. A banca goza de uma condição de excepção: é, basicamente, inimputável. Ora, se assim é – e se todos já percebemos e sentimos, do BPN ao BES ao BANIF, os custos disso mesmo – qual é a racionalidade de uma solução que, mediante a contrapartida de meros 150 milhões de Euros (menos de 1/20 da provável factura suportada pelo Estado), implica passar o BANIF para as mãos de outro grupo privado?

Aliás, a pergunta parece especialmente legítima tendo em conta as circunstâncias em que a transacção se realiza. Como, quando e por quem foi feita a avaliação do património agora transferido para o Santander? E até que ponto foi essa avaliação condicionada pela urgência da transacção, nomeadamente a urgência adicional decorrente da notícia convenientemente plantada

na comunicação social? O que os portugueses gostariam de ter, e o governo ainda não conseguiu dar, é a garantia de que, nesta passagem do BANIF para outro grupo privado com absorção pública dos prejuízos de permeio, não sucede nenhuma de duas coisas: que se venha a descobrir que o património agora vendido apressadamente foi grosseiramente sub-avaliado; ou que, à próxima curva do caminho, o Estado venha a ser novamente chamado a apagar o fogo. O risco de uma destas coisas suceder parece-me demasiado significativo para que a venda do BANIF ao Santander por 150 mihões de euros aparente ser a melhor das soluções. E se o é, pelo menos parece-me que isso está por demonstrar.

Tornou-se entretanto claro que a solução alternativa de capitalização e incorporação do BANIF na Caixa Geral de Depósitos contaria com a oposição da Comissão Europeia, que não deixaria de vetar

um tal plano por alegada desvirtuação da concorrência. A forma da Comissão Europeia aplicar selectivamente as regras conforme esteja em causa o apoio à consolidação de grupos financeiros, desta feita à escala continental, ou, em contrapartida, o reforço do controlo democrático nacional sobre sectores estratégicos é, em si mesma, muito significativa2 – e, na medida em que constrange decisivamente a margem de manobra do governo português, deveria ter sido mais claramente apontada. Mesmo que o governo opte pela conformidade contrafeita ao diktat de Bruxelas nesta matéria, tem a obrigação de contribuir para a consciencialização dos portugueses em relação aos contornos desse constrangimento. Mas além disso, deveria também demonstrar que a solução de capitalização e manutenção do BANIF na esfera pública, mesmo que não no seio da CGD, estava totalmente vedada – e porquê.

E outra dúvida legítima ainda tem a ver com a repartição da factura. Se, parece-me a mim, todos concordarão com a legitimidade moral (e obrigatoriedade legal) da salvaguarda dos pequenos depositantes, está muito longe de ser evidente que os depósitos acima de 100.000 Euros e os credores obrigacionistas do BANIF devam merecer uma protecção maior do que os contribuintes. Esta é uma escolha política, sobre quem paga uma factura que a alguém tem de caber. Pode até ser legítima, mas tem de ser explicada: quais foram os fundamentos dessa escolha?

Este é apenas mais um episódio numa longa saga que teve início com a liberalização da banca portuguesa na década de 1980, que passou pelo papel-pivô dessa mesma banca na estruturação dos centros de acumulação nacionais e que vive agora um penoso e arrastado desenlace com o colapso e resgate público de vários bancos e a gradual absorção do sector por grupos económicos estrangeiros. Mas é o primeiro tal episódio para um novo governo que, para muitos portugueses, é portador de uma nova esperança. Neste domínio particular, não defraudar essa esperança requer, pelo menos, que o governo use de bastante mais clareza.


Artigo publicado no Expresso online