COP-21: O acordo fúnebre

Artigo de João Camargo.


Desde o acordo de Paris, assinado a 12 de Dezembro, vários eventos icónicos ocorreram, que colocam em ainda maior evidência a contradição final da COP-21:

       Em Dezembro de 2015 o Pólo Norte atingiu a temperatura de 0,7ºC. São mais de 35ºC acima da temperatura expectável nesta altura do ano. Combinando alterações climáticas e El Niño, esta variação histórica colocou a temperatura do Ártico acima do descongelamento, facto de extrema gravidade quando se considera que foi em pleno inverno;

       Na noite de Natal em Nova Iorque, estavam 19,5ºC à 1h da manhã. Durante o dia 24 de Dezembro, as mínimas foram de 17,5ºC e as máximas de 23,5ºC. A temperatura média para esta época do ano em Nova Iorque é de 9ºC.

       Em Portugal, Dezembro de 2015 foi o segundo dezembro mais quente desde 1931.

       No final de Dezembro tornou-se público que desde Outubro há uma fuga massiva de metano de uma jazida subterrânea na Califórnia. Esta fuga, descontrolada, equivale à poluição emitida por 4,5 milhões de carros por dia. Além de mais de 2 mil famílias terem já sido evacuadas da zona, prevê-se que apenas em Março a empresa privada responsável pela exploração consiga controlar a fuga nesta exploração de gás natural – isto é, haverá mais de quatro meses de emissão massiva e descontrolada de um gás com efeito de estufa 25 vezes superior ao dióxido de carbono;

       Na China, apenas em Dezembro de 2015, foi accionado duas vezes o alerta vermelho de poluição na capital, Pequim, o que significa concretamente que a produção industrial na cidade e nos subúrbios foi parada ou severamente desacelerada, que metade dos veículos automóveis estão proibidos de circular (geralmente associado à matrícula par ou ímpar), que as escolas e infantários estão fechadas e que se aconselha todas as pessoas a ficar em casa. O nível de poluição atingido é histórico;

       Em 2015 a concentração de dióxido de carbono na atmosfera atingiu as 400 partes por milhão, isto é, a concentração mais elevada dos últimos 800 mil anos;

       2015 foi o segundo ano mais quente na Europa desde que há registos, depois de 2014 ter sido o mais quente;

       2015 foi o ano mais quente de sempre no planeta desde que há registos, tendo sido atingido em Outubro e Novembro 1ºC acima da temperatura pré-industrial. A velocidade deste aquecimento é inédita no último milhão de anos;

Na ressaca do Acordo de Paris da COP-21, e considerando este curto elencar de eventos ocorridos apenas nas semanas após a sua assinatura, analisá-lo sucintamente pode servir para olharmos como, muito antes de ser assinado, o mesmo já estava ultrapassado. Importa conhecer imediatamente as suas gigantes limitações para concluir da sua inutilidade e continuar imediatamente a procura de soluções credíveis e sólidas, longe da influência avassaladora dos interesses económicos e mercantis que, ignorando as alterações climáticas, selam o futuro da Humanidade na pobreza extrema e no caos climático.

Como refere a ATTAC França na sua avaliação do acordo: “Ao Estado de Urgência Climático, o acordo de Paris contrapõe um manta de retalhos constituída pela soma dos egoísmos nacionais, tanto em matéria de financiamentos como em objectivos de redução de emissões. Há que não esquecer o essencial: o acordo de Paris confirma um aquecimento climático superior a 3ºC, sem se dotar de mecanismos para voltar á trajectória de 1,5ºC ou mesmo 2ºC.”.

É no preâmbulo do acordo de Paris que se esgotam as boas propostas, as boas intenções e que se depositam, infelizmente, as fracas esperanças de tantos progressistas do planeta. A igualdade de género, num planeta em que as mulheres sofrem as principais consequências de cada opressão e das opressões acumuladas no trabalho, nos territórios, nos solos, em casa, na pobreza, está presente. O machado que pende sobre os países mais ameaçados, sobre as populações mais pobres nas zonas costeiras, a necessidade de respeitar os direitos humanos, também constam. Os direitos historicamente espezinhados dos povos indígenas e das comunidades locais, dos migrantes, estão lá também. E o logro principal: o novo número de 1,5ºC como objectivo principal para manter a temperatura controlada até 2100.

Começando pela temperatura, a soma das propostas individuais dos países perfaz um aumento de temperatura global entre os 2,7ºC e os 3,7ºC. Este é o aumento global. Hotspots de alterações climáticas, como o Mediterrâneo no qual vivemos, verão num tal cenário aumentos ainda superiores, na ordem dos 6ºC, associados à correspondente seca e redução da disponibilidade de água em até 70%. As temperatura extremas dos dias mais quentes podem ficar até 8ºC acima daquilo que são hoje.

A nível global, é de destacar que a esta temperatura a subida progressiva do nível médio do mar pode atingir 1m até 2100. Para os 600 milhões de pessoas que vivem hoje a menos de 10 metros do actual nível médio do mar, e que com um aumento na ordem daquele previsto, terão que abandonar as suas casas e a sua economia, os problemas são evidentes. Além disso, mais de 45% da população mundial vive em zonas costeiras, que sofrerão directa e indirectamente os efeitos da subida do nível médio do mar. Acrescem os efeitos do aumento dos fenómenos climáticos extremos como tempestades tropicais e marítimas, além do efeito que este aumento da temperatura e que este aumento do nível médio do mar terão sobre os glaciares, sobre a Gronelândia e sobre a Antártida.

É de destacar a incongruência da declaração do aumento de temperatura média em 1,5ºC até 2100, quando em 2015 se atingiu o aumento de 1ºC pela primeira vez. A margem de manobra é portanto de 0,5ºC para os próximos 85 anos. Apesar disso, a soma das propostas individuais dos países preconiza um aumento das emissões pelo menos até 2030. E é na expressão “neutralidade de carbono” que se encontra um dos maiores alçapões: ao evitar entrar nos cortes de emissões, deposita-se grande esperança do business as usual nas florestas industriais como o eucaliptal e na tecnologia do Carbon Capture and Storage (CCS). Esta Captura e Armazenamento de Carbono (CCS) é uma tecnologia rude aplicada às indústrias mais poluentes e que pretende a injecção directa do CO2 da queima dos combustíveis fósseis no subsolo a alta pressão, num processo estranhamente próximo do fracking hidráulico e muitas vezes considerado complementar ao mesmo. O exemplo da fuga descontrolada de metano na Califórnia é apenas mais uma demonstração da incapacidade da geoengenharia para resolver um problema que, muito mais que geológico, é biológico e social, e da sua tendência para agravar os problemas com soluções mecânicas violentas. Ainda em fase experimental com menos de 50 projectos-piloto a nível global, o CCS não tem qualquer resposta para as emissões do comércio internacional, dos transportes, da agricultura e pecuária ou da desflorestação. Além disso, garante que é possível continuar a extrair petróleo, carvão e gás natural do subsolo  e a queimá-lo. E é por isso que é apontado como uma “solução” interessante.

Em termos de justiça climática e qualquer correcção das injustiças históricas do colonialismo ou da globalização, este acordo fecha a porta à indemnização dos países mais impactados pelos efeitos das alterações climáticas pelos mais responsáveis. Tal como a distribuição da riqueza decorrente do saque colonial era unidirecional, também o serão os efeitos das alterações climáticas, e no mesmo sentido, sem qualquer provisão de que possam os atingidos exigir reparações aos responsáveis conscientes pela destruição da estabilidade do clima.

As soluções de mercado continuam a ser propaladas como soluções, quando provaram até agora que nunca o foram: o comércio de carbono, o mecanismo do desenvolvimento limpo, a Redução de Emissões pela Desflorestação e Degradação Florestal. Estão em vigor há anos e falharam em todos os objectivos propostos: não reduziram emissões, não incentivaram o desenvolvimento limpo, e não reduziram a desflorestação e a degradação florestal. Apenas garantiram especulação financeira, rendas e juros extraídos de actividades inúteis quando não prejudiciais.

A debilidade da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC) para conseguir produzir um acordo histórico que garantisse o futuro da Humanidade contrasta com a força de organizações sem base representativa como a Organização Mundial do Comércio, que prevê não só que não se possa limitar a competitividade entre os países e entre os negócios, como que tem de ser força de lei que os países não possam implementar medidas conducentes à redução das emissões de gases com efeito de estufa e adaptação às alterações climáticas, quando tal implique a redução de lucros esperados pelas empresas. Caso evidente disto é a também recente acção da multinacional TransCanada contra os Estados Unidos, depois da decisão de Barack Obama de travar o oleoduto Keystone XL, que traria petróleo das areias betuminosas do Canadá até Houston, atravessando 1900 km de território dos Estados Unidos. A TransCanada processará os EUA em 15 mil milhões de dólares ao abrigo do NAFTA (Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte), em mais um caso que demonstra como os acordos de comércio livre como o TTIP, em actual negociação entre os Estados Unidos e a União Europeia, prevêem a criação de tribunais privados para processar os Estados em nome das empresas privadas, sobrepondo-se às decisões democráticas.

A vitória de um acordo fraco, sem vinculação, de perigo histórico e sem qualquer indício de justiça, dá o sinal: não será no âmbito da negociação multilateral truncada pelos agentes da economia extractivista que haverá qualquer solução para as alterações climáticas ou para a adaptação às mesmas. A um acordo fúnebre cuja única certeza é abdicar de salvar milhares de milhões de vidas é preciso contrapor com as soluções concretas e as mais óbvias para começar: cortar emissões, proibir a extracção de combustíveis fósseis em ritmo acelerado, travar o investimento em combustíveis fósseis e desviá-lo directamente para energias renováveis, para transportes públicos colectivos e alternativos, para outra produção, outra distribuição e comércio, para outra agricultura e floresta. Manter o petróleo debaixo do solo. E controlar a economia, planificá-la. Sacudir a falácia do mercado livre e impedir que aqueles que planificam a economia contra a população humana, contra o planeta e contra o clima possam continuar a decidir, unilateralmente, quem vive e quem morre.