As desigualdades e o risco democrático

Artigo de Pedro Adão e Silva


Introdução

Em My Back Pages, uma canção de 1964 que antecipava a transição que se seguiria na sua carreira, Bob Dylan a certa altura refere “a voz de um professor autodidata/demasiado sério para piadas/declamou que liberdade/é apenas igualdade na escola/”igualdade”, eu disse a palavra/como um voto de casamento”. Páginas e páginas de exegese da lírica do bardo do Minnesota não concordam na interpretação fidedigna das suas palavras. Em todo o caso, entre o desdém pela voz da autoridade professoral que sublinha que “liberdade é apenas igualdade na escola” e um olhar cínico para a própria concretização material do princípio da igualdade, sugerida pelo jovem Dylan (que era “tão mais velho, então” e que agora se via, a si próprio, como “mais novo do que antes”), fica insinuada a ideia de que entre liberdade e igualdade há algum tipo de relação e que a primeira só é, de facto, garantida, com alguma dose da segunda, em particular nas sociedades democráticas. Resta saber quanta igualdade é necessária para assegurar a liberdade e, não menos importante, que tipo de igualdade deve ser promovida – material, no acesso à educação, simbólica, de oportunidades ou uma combinação de todas?

Neste como em muitos casos, a intuição genial de Dylan revelar-se-ia acertada. Sem deixar de reconhecer a importância, entre outros factores, do investimento nas qualificações, toda a evidência empírica prova que as desigualdades não são inevitáveis e a chave para a sua diminuição encontra-se, no essencial, no sistema fiscal e nas políticas redistributivas. Um relatório recente da OCDE (2012) mostrava que, na média dos países que compõe a organização, três quartos da redução das desigualdades era alcançada através de transferências de rendimentos, particularmente ao longo do ciclo de vida.

A questão é nevrálgica porque numa sociedade democrática não há um obstáculo tão significativo ao exercício da liberdade como a ausência de recursos materiais – pelo que o combate às desigualdades materiais é uma questão de escolhas e uma pré-condição para a promoção da liberdade.

Recentemente, na exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco sublinhava precisamente que “a necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais”.

A evolução das desigualdades

A publicação no ano passado do livro do economista francês Thomas Piketty, “O Capital – no século XXI”, trouxe a medição das desigualdades para o centro do debate público. O livro liderou tabelas de vendas um pouco por todo o mundo e gerou uma ampla discussão, bem para além das fronteiras do mundo académico. O sucesso editorial do livro não surpreende porque se trata de um sintoma de uma transformação social com lastro: nas últimas décadas, mesmo em sociedades afluentes e a enriquecer, as desigualdades na distribuição de rendimentos aumentaram. Esta transformação tem consequências económicas, sociais e políticas profundas.

Tradicionalmente, as desigualdades económicas costumam ser medidas numa escala de zero a um, conhecida como coeficiente de Gini. Esta medida, criada por um estatístico italiano no início do século XX, considera que se todo o rendimento estivesse concentrado num indivíduo, ao mesmo tempo que os restantes nada detinham, então o índice de Gini teria o valor 1; da mesma forma que se no mesmo grupo detivesse exatamente o mesmo rendimento, então o índice de Gini teria o valor 0. Sendo assim, quanto mais elevado é o valor deste índice, maior é a desigualdade na distribuição de rendimentos num determinado país. Ora não só em muitas democracias ocidentais do capitalismo avançado, o índice de Gini tem aumentado nos últimos anos, como Portugal, em particular, apresenta valores comparativamente elevados.

Gráfico 1 – Evolução do coeficiente de Gini em Portugal, na UE-15 e na UE-27 (1998-2012)

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O Gráfico 1 retrata a evolução do coeficiente de Gini em Portugal, comparando-a com a União Europeia (UE-15 e UE-27). Portugal apresenta valores sistematicamente mais elevados do que os dos seus parceiros europeus, tendo, contudo, entre 2003 e 2009, registado uma diminuição das desigualdades mais acelerada do que a média europeia. No entanto, desde 2010, assiste-se a uma inversão dessa tendência.

Se considerarmos um outro indicador, o S90/S10, isto é o rácio entre a proporção do rendimento total recebido pelos 10% da população com maiores rendimentos (decil 10) e a parte do rendimento auferido pelos 10% de menores rendimentos (decil 1), também aqui assistimos a uma tendência de concentração de rendimento nos 10% mais ricos nos últimos anos e, em Portugal, a uma trajetória particularmente nítida neste mesmo sentido.

Gráfico 2 – Evolução da desigualdade na distribuição do rendimento entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres em Portugal

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O gráfico 2 mostra a evolução da distribuição do rendimento entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres nos últimos anos e, como este indicador revela, Portugal voltou a tornar-se mais desigual entre 2010 e 2013 –  depois de um período longo de tendência de diminuição. Este indicador permite-nos afirmar, também, que, em 2013, os 10% portugueses mais ricos tinham um rendimento 11,1 vezes superior ao dos 10% mais pobres.

Exatamente por considerar que os indicadores estatísticos comummente utilizados para estimar a distribuição de rendimentos tendem a subvalorizar as desigualdades, Piketty usou os dados fiscais como fonte, calculando, assim, uma evolução do padrão de desigualdades nas sociedades avançadas mais negativo do que o sugerido por indicadores como o índice de Gini. De acordo com o economista francês, podemos identificar, grosso modo, três momentos distintos na evolução das desigualdades ao longo do último século. Um primeiro, correspondente à Belle Époque (isto é, o período entre o último quartel do século XIX e o início da Iª Grande Guerra), no qual a concentração de recursos nos 1% mais ricos era muito significativa, na ordem dos 20%; um segundo, que corresponde aos 30 anos gloriosos do pós-Guerra, onde expansão do Estado social, sistemas fiscais fortemente redistributivos e consolidação democrática andaram de braço dado, traduzindo-se numa distribuição mais equitativa dos rendimentos; finalmente, as últimas décadas, nas quais liberalização, desregulação e financiarização fizeram regressar uma dinâmica de concentração patrimonial, reaproximando os níveis de desigualdade de valores próximos dos da Belle Époque.

As desigualdades, o risco democrático e o seguro social

Saber quanta desigualdade suportam as sociedades democráticas e até que ponto não há um sério risco de demasiada desigualdade material se traduzir em fragmentação política, ameaçando os alicerces das democracias, são questões que têm acompanhado a experiência liberal desde o final do século XIX. A história, aliás, ensina-nos que as democracias são mais frágeis do que pensamos e só medram em contextos de alguma prosperidade material, de redistribuição de recursos e com classes médias protegidas e robustas.

Precisamos por isso de trazer de novo as desigualdades para o topo da agenda política, recuperando as preocupações que estiveram na mente dos reformistas sociais desde sempre. Falar das iniquidades, das injustiças de uma sociedade assente em clivagens demasiado profundas, que levam a que, em muitos casos, em lugar de uma única comunidade política, existam “dois países”: o dos ricos e o dos pobres. Como bem notou o Papa Francisco, “a desigualdade é a raiz dos males sociais” e traz consigo riscos políticos muito sérios.

Coloca-se, a este propósito, uma questão: saber se o principal risco político para as democracias são níveis muito elevados de pobreza ou um padrão de distribuição de recursos muito desigual.

Ao longo do século XX, as democracias ocidentais deram uma resposta clara a esta questão. Sem colocar em causa o investimento nas políticas de combate às formas mais severas de pobreza, a transformação de grande alcance que foi a formação do Estado social teve como prioridade, não tanto proteger os mais necessitados, mas diminuir a exposição ao risco das classes médias, integrando-as politicamente, também por força da existência de um conjunto de mecanismos (à cabeça, políticas assentes no seguro social) que funcionassem como cimento material desse processo.

Na sua génese, o Estado social não se formou e desenvolveu para proteger os mais necessitados. Foi, sim, uma inovação política porquanto garantiu a proteção para aqueles que possuíam algum rendimento, fruto do seu trabalho, protegendo-os de riscos futuros, seguindo o princípio contributivo, compensando os trabalhadores em função de descontos anteriores (aqueles que mais contribuíam eram também os que, mais tarde, mais beneficiariam) – incentivando, simultaneamente, uma maior formalização do mercado de trabalho pela associação de segurança e proteção ao emprego formal. Por isso mesmo, assentou na repartição, na solidariedade geracional e na distribuição social ao longo do ciclo de vida.

Esta opção tinha, aliás, objetivos políticos precisos – a formação de comunidades políticas de pertença, através da cooptação das classes trabalhadores, integrando-as em Estados-nação que emergiam, contribuindo para a legitimação política dos regimes. Não mais era possível a um Estado limitar-se a preservar a ordem e a garantir a segurança. Iniciava-se uma nova etapa do Estado moderno, onde o cumprimento da Lei passou a caminhar de braço dado com a garantia de bem-estar material, libertando os cidadãos da necessidade e do risco. O Estado social deve, como tal, ser interpretado como uma resposta política ao processo de modernização e às transformações sociais profundas que lhe estão associadas (a industrialização, a urbanização, o crescimento demográfico, a construção do Estado-nação moderno e, mais tarde, a democratização). O Estado social é uma entidade política que demonstra que as desigualdades não só não têm de ser vistas como naturais, como são mesmo passíveis de ser reconfiguradas politicamente.

Isto não quer dizer que o combate à pobreza e às formas extremas de privação material não faça parte dos objetivos do Estado social. Faz, mas a principal inovação associada ao Estado social não é tanto a promoção da redistribuição e de políticas solidárias, é, sim, a criação de prestações substitutivas do rendimento do trabalho, baseadas no seguro social e diferenciadas de acordo com os rendimentos e contribuições anteriores. Este conjunto de prestações veio possibilitar a redistribuição de recursos ao longo do ciclo de vida, a proteção contra quebras de rendimento, oferecendo, desta forma, uma sensação de segurança a todos os cidadãos e aos trabalhadores em particular. Esta ênfase na proteção das classes médias é fundamental, na medida em que nos permite, hoje, ter uma ideia precisa das consequências que podem decorrer de uma estratégia de reforma do Estado social que o devolva a um conjunto de políticas residuais, assentes, no essencial, numa rede de proteção de mínimos.

Se o núcleo duro do Estado social se organiza em torno do princípio contributivo – ou seja, aqueles que mais contribuem mais beneficiam – não só, como já vimos, a função primordial da despesa não é a redução da pobreza, mas, sim, garantir segurança de expectativas e estabilidade de rendimentos ao longo da vida, como o peso das despesas sociais tem de ser significativo em todos os escalões de rendimento. O gráfico 3 dá conta disso, ao revelar o peso das transferências sociais nos decis inferiores e superiores da distribuição de rendimentos, no caso, nos 30% mais ricos e nos 30% mais pobres.

Gráfico 3 – Percentagem média de transferências sociais recebidas pelos decis mais baixos e mais altos de rendimento, dados de 2010

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Fonte: OCDE

Este gráfico não apenas permite verificar que vários países canalizam, em termos relativos, poucos recursos para as famílias mais pobres, como o caso português se apresenta como excepcional no contexto dos países da OCDE – as transferências sociais recebidas pelas famílias de menores rendimentos (que ocupam a parte inferior da distribuição) correspondem a cerca de 71% da média das transferências recebidas pelo conjunto das famílias portuguesas. Por outro lado, as famílias com rendimentos mais elevados recebem um valor de transferências 52% superior do que a família média.

A tabela 1 permite analisar a realidade portuguesa em maior detalhe, decompondo a análise por tipo de prestação social para os vários quintis de rendimento. Os dados revelam que o Estado Social português mantém como núcleo central a lógica do seguro social obrigatório, com prestações proporcionais às contribuições efectuadas, estando longe de um modelo de cariz mais assistencialista.

Tabela 1: Impacto redistributivo das transferências sociais (2010)

Quintis do rendimento e

transferências sociais recebidas, líquidas de assistência social (%)

Q1

Q2

Q3

Q4

Q5

Protecção Social (total)

13.2

17.6

16.4

18.9

33.8

Segurança Social (total)

10.5

16.8

15.8

19.3

37.6

Velhice (bruto)

9.3

15.4

14.7

19.0

41.6

Doença (bruto)

20.0

26.1

17.5

27.8

8.6

Invalidez (bruto)

20.9

27.4

22.5

18.8

10.4

Sobrevivência

13.3

19.9

20.1

20.9

25.9

     Subsídios de desemprego (bruto)

17.5

25.6

25.3

19.7

11.9

Assistência Social

17.5

25.6

25.3

19.7

11.9

Fonte: Adaptado de Portugal: Rethinking the State—Selected Expenditure Reform Options, IMF Country Report No. 13/6, January 2013

Nota: A incidência de cada benefício equivale às transferências recebidas por cada grupo (por quintil de rendimento) em percentagem das transferências totais recebidas pela população.

Contudo, em simultâneo, o Estado social tem-se revelado eficaz na focalização de recursos nas famílias com menores rendimentos. O Gráfico 4 revela, precisamente, como os recursos dirigidos à redução da exclusão social têm sido fortemente concentrados no primeiro quintil de rendimento, ou seja, nos 20% de famílias com menores rendimentos. Este nível de focalização é significativamente superior à verificada na média dos países europeu.

Gráfico 4 – Precisão na atribuição de benefícios dirigidos à exclusão social, 2009

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Fonte: Adaptado de Portugal: Rethinking the State—Selected Expenditure Reform Options, IMF Country Report No. 13/6, January 2013

Considerações finais

A desigualdade tem um preço: níveis excessivos de iniquidade na distribuição de recursos representam um risco sistémico e são responsáveis por diversas formas de instabilidade política. Uma sociedade dividida funciona pior, também porque desigualdade material traduz-se necessariamente em desigualdade política. Por isso mesmo, nas nossas sociedades, os riscos associados às desigualdades materiais foram calibrados politicamente, através de mecanismos de socialização, de que a criação da proteção social, assente no seguro social público, é exemplo paradigmático. As políticas redistributivas são também uma forma de combater a ideia de que as desigualdades são inevitáveis e naturais: a forma como distribuímos os recursos numa determinada sociedade é, em larga medida, o resultado de acção política – do que decidimos coletivamente fazer ou não fazer.

A importância relativa dos mecanismos de redistribuição material como forma de contrariar as desigualdades criadas no mercado corresponde a um reconhecimento de que a distinção entre desigualdade de resultados e de rendimentos é, em importante medida, artificial – logo o enfoque excessivo na igualdade de oportunidades, alavancada pela educação pública, é desadequado. Como defende o economista britânico A. B. Atkinson, no seu livro mais recente, responder à desigualdade de resultados (ou de rendimentos) é a forma mais eficiente de responder à desigualdade de oportunidades (nomeadamente, porque garantir trabalho e/ou rendimentos suficientes aos adultos ajuda a quebrar a reprodução geracional da pobreza, libertando as crianças das famílias pobres). É, aliás, um erro histórico considerar que a promoção da igualdade de oportunidades, num contexto de recuo das políticas redistributivas do pós-Guerra, é suficiente para diminuir as desigualdades. O efeito será, aliás, o contrário.

Mas se a opção pela socialização do risco foi uma forma muito eficaz de consolidar as democracias liberais ao longo do século XX, designadamente ao cooptar politicamente as classes médias, através da proteção social ao longo do ciclo de vida, que funcionou, simultaneamente, como um estabilizador económico e um estabilizador político, o regresso à privatização do risco traz consigo riscos políticos significativos. Em particular, terá um preço a estratégia ensaiada durante a crise, assente na devolução das políticas públicas às funções de soberania e as responsabilidades sociais do Estado reduzidas às respostas aos mais pobres (isto é, às formas mais severas de pobreza), em lugar de ao conjunto das desigualdades.

Se há lição que devemos retirar da história política do século XX é que as democracias liberais têm de assentar na garantia dos direitos civis e políticos, mas, sem uma dose robusta de direitos sociais de cidadania, a sustentabilidade dos primeiros estará sempre ameaçada. A proteção material das classes médias é uma condição necessária à sustentabilidade política das democracias. As desigualdades excessivas são, de novo, um espectro a pairar sobre os regimes liberais.


Versão adaptada da publicada em http://ffms.pt/xxi-ter-opiniao/2015/5, O risco democrático


Referências

Anthony B. Atkinson (2015), Inequality. Cambridge: Harvard University Press

Bob Dylan (1964), ‘My Back Pages’ in Another Side of Bob Dylan

OECD (2012), Reducing income inequality while boosting economic growth: Can it be done?

Thomas Piketty (2014), O Capital no Século XXI. Lisboa: Temas e Debates