As contas da resolução do Banif

Artigo de Ricardo Cabral.


Resumo das conclusões da análise

Em posts anteriores critiquei a medida de resolução bancária aplicada ao Banif a 19 de Dezembro de 2015 defendendo que, não só não havia fundamentos porque o Banif cumpria os rácios de capital mínimo legalmente exigíveis, como a solução encontrada resultava em ajuda estatal aos compradores dos activos, em particular, ao Banco Santander Totta (Santander).

Da análise que aqui desenvolvo, resulta que:

– Se as contas do Banif estavam “limpinhas e direitinhas”, como defende o antigo presidente do banco, então, após a resolução, utilizando estimativas conservadoras, os capitais próprios do antigo Banif aumentariam para 3,6 mil milhões de euros e os rácios de capital CET1 para cerca de 40%, ou seja, 5 vezes os rácios mínimos legalmente obrigatórios – algo similar ocorre mesmo que existam imparidades adicionais significativas no balanço;

– O Santander compra um banco supercapitalizado pagando muito menos do que o valor contabilístico do banco – a intervenção parece ter sido desenhada para recapitalizar o Santander em alguns milhares de milhões de euros;

– A informação que foi tornada pública é, posto isto, insuficiente, porque oculta as razões e formas da intervenção e as suas consequências;

– É estranho que a DG-Comp da Comissão Europeia, após uma análise que necessariamente demorou menos de um dia[1] afirme que não existe ajuda estatal ao Santander e que, afinal, a ajuda estatal ao Banif, de 1100 milhões de euros, concedida em Janeiro de 2013, era legal, três dias depois de ter declarado que tinha dúvidas se essa ajuda teria sido legal.

Introdução

A medida de resolução bancária aplicada ao Banif pelo Banco de Portugal é mais complexa do que a aplicada ao BES. Divide o Banif em três partes. O Banif “mau”, que deverá ser liquidado, o Banif “intermédio”, que ficou para o Fundo de Resolução através de uma nova sociedade Naviget, e o Banif “bom”, que foi vendido ao Santander.

Existe uma enorme falta de transparência, o que dificulta o escrutínio detalhado da operação de resolução. Não foram publicados os balanços nem as contas da operação. Não se quantifica o balanço de activos e passivos vendidos ao Santander. Note-se que no caso do BES, pelo menos, existia um balanço e demonstração de resultados do 1º semestre de 2014 que motivou a aplicação da resolução bancária ao BES e o Banco de Portugal (BdP) publicou logo um balanço provisório pós-resolução do Novo Banco (posteriormente, várias vezes revisto), embora também não justificando as contas. No caso do Banif, a informação mais completa sobre os contornos da operação é publicada pela Comissão Europeia e não pelo BdP, mas existem inconsistências nos dados fornecidos pelas duas entidades.

Mas é possível preparar algumas estimativas dos efeitos da resolução recorrendo ao que é de conhecimento público:

– O montante e o tipo das injecções de capital no que era o antigo Banif;

– O balanço financeiro do antigo Banif no 3º trimestre de 2015.

Com base nesta informação, é possível estimar o novo balanço do Banif (se este não tivesse sido dividido em três partes) após as injecções de capital realizadas no âmbito da resolução e assim estimar quem ganhou o quê.

Parte I. Injecções de capital:

1. O Estado realiza um aumento de capital de 1766 milhões de euros ao Banif (na sequência da aprovação do OE rectificativo);

2. A Naviget (“Banif intermédio”) transfere 746 milhões de euros de obrigações garantidas pelo Fundo de Resolução e contra-garantidas pelo Estado para o “Banif bom” adquirido pelo Santander. Em resultado desta garantia pública, activos que antes eram ilíquidos passam a ser de elevada liquidez e, pelas regras de supervisão bancária, os rácios de capital do banco melhoram;

3. Assim, o montante de dinheiros públicos injectados directa ou indirectamente no que era antes o Banif é de 2512 (=1766+746) milhões de euros[2].

4. A Comissão Europeia indica que o total de ajudas públicas pode ir até cerca de 3 mil milhões de euros, incluindo uma garantia pública de 323 milhões de euros. Mas a garantia pública aprovada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal é de 746 milhões de euros, pelo que, na dúvida, nas estimativas aqui apresentadas optou-se por só considerar os montantes de ajudas públicas explicitamente referidos nas deliberações do Banco de Portugal. No pior cenário que não é considerado nesta análise, as ajudas públicas totalizariam 3423 milhões de euros – e não os 2512 milhões de euros assumidos nas estimativas aqui apresentadas – a que acresceriam benefícios fiscais públicos de perto de mil milhões de euros (de activos por impostos diferidos).

Parte II – O balanço financeiro do antigo Banif

O rácio de capital CET1 mínimo obrigatório é de 7%. O rácio de solvabilidade mínimo (que inclui outros instrumentos de capital) é de 8%. Em Setembro de 2015, o Banif declarava que possuía capital e reservas de 675 milhões de euros, rácio de capital CET1 de 8,5% e um rácio de solvabilidade de 9,5%, ou seja, os dois rácios de capital do Banif situavam-se claramente acima do mínimo legal exigível.

Entre 1 de Outubro e 19 de Dezembro de 2015 o Banif vendeu activos, reduziu o endividamento face ao Eurosistema em 630 milhões de euros, alterações que provavelmente resultaram numa melhoria dos rácios de capital do Banif. Porém, na sequência da corrida aos depósitos – a imprensa refere que o Banif se confrontou com levantamentos de depósitos de cerca de mil milhões de euros – deve ter resultado um aumento do endividamento face ao Eurosistema e ao BdP[3].

Contudo, o impacto dessas vendas de activos ainda não estava reflectido no balanço de 30 de Setembro de 2015 e não é conhecido. Por essa razão, nas estimativas aqui apresentadas parte-se desse balanço, diminui-se mil milhões de euros aos depósitos e aumenta-se em igual montante o endividamento do Banif aos bancos centrais. Desta forma, estima-se o efeito da resolução de forma conservadora (por defeito) pelo que a melhoria dos rácios de capital verificada deve ainda ter sido superior ao aqui estimado.

O balanço é apresentado de forma simplificada dividindo os activos em duas categorias e os passivos em quatro[4].

Esta classificação simplificada do balanço do Banif permite estimar o que ocorre, após a resolução bancária, ao rácio de alavancagem financeira (“leverage ratio”) e permite igualmente estimar, de forma aproximada mas conservadora (subestimando) o que ocorre ao rácio de capital CET1 do Banif (que designo Rácio de capital CET1 simplificado), que é o rácio relevante para regulação prudencial da banca.

fig1_rcbanif

A partir do Balanço de 30.9.2015 corrigido da fuga de depósitos, regista-se em primeiro lugar as imparidades adicionais de 2 512 mil milhões de euros nos “Empréstimos e outros activos” e que resultam em prejuízos nesse montante. Ao contrário do permitido pelas regras actuais, não são contabilizados nenhuns ganhos de activos por impostos diferidos. Em resultado, os “Empréstimos e outros activos” do antigo Banif caem para 6,9 mil milhões de euros e o banco passaria a ter capitais próprios negativos. Após (i) a injecção de 1766 milhões de euros em dinheiros públicos, (ii) a entrega de 746 milhões de euros de garantias públicas e ainda (iii) a imposição de perdas a accionistas e a credores subordinados, o balanço do antigo Banif passaria a ser:

fig2_rcbanif

Contudo este balanço seria ineficiente porque o banco disporia de demasiados activos de elevada liquidez podendo, por exemplo, amortizar a dívida ao Eurosistema e ao BdP, bem como a dívida a outros bancos. Com estas operações, o balanço optimizado do Banif passaria a ser:

fig3_rcbanif

Ou seja, o valor estimado para o rácio de capital do Banif – CET1 simplificado – passaria a ser cerca do dobro do valor estimado em 30.9.2015 que já estava acima do mínimo legal exigível.

Note-se que o antigo Banif, a 30.9.2015, já tinha constituído cerca de 1600 milhões de euros de imparidades nos seus activos. A injecção de capital, no cenário descrito acima (Figura 3), implica a constituição de imparidades adicionais no montante de 2512 milhões de euros.

Este nível de imparidades é inacreditável – 4,1 em 11,0 mil milhões de euros de activos brutos – só seria possível se o Banif estivesse a “cozinhar” os livros e os auditores “a olhar para o lado”!

Admita-se, por hipótese, que as contas do Banif estavam “limpinhas e direitinhas” como afirma o seu antigo presidente. Então o balanço optimizado do antigo Banif passaria a ser:

fig4_rcbanif

Se o presidente do antigo Banif tiver razão, então o Banif, após a resolução e a injecção de 2,5 mil milhões de euros de dinheiros públicos, passaria a ser um banco com rácio de capital CET1 que provavelmente estaria próximo dos 40% (quando o rácio de capital CET1 exigido ao Banif seria de 8%[5]) e teria capitais próprios de 3,6 mil milhões de euros[6]!

Mas mesmo que o Banif estivesse a empolar os seus activos, por exemplo em 1,5 mil milhões de euros, e que fosse necessário constituir imparidades adicionais nesse montante, após a resolução e injecção de capitais públicos ter-se-ia, como se evidencia no balanço seguinte: capitais próprios de cerca de 2,1 mil milhões de euros; e rácio de capital CET1 mais de 3 vezes superior ao rácio de capital mínimo legalmente exigível.

fig5_rcbanif

Conclusão

Na análise efectuada é feita uma estimativa global dos ganhos para quem adquire as partes boas do Banif em consequência da aplicação da medida de resolução do banco e das ajudas públicas concedidas para o efeito.

O valor contabilístico do antigo Banif pós-resolução, se as contas estiverem “limpinhas e direitinhas”, poderá atingir 3,6 mil milhões de euros, a que acrescem ainda quaisquer pagamentos adicionais que sejam feitos no futuro e benefícios fiscais que poderiam representar perto de mil milhões de euros.

Parte significativa dos ganhos desta resolução – que não é possível quantificar porque o BdP não disponibilizou até à data dados suficientes – vai para o Santander, que paga 150 milhões de euros[7] por um Banif “bom” com valor contabilístico muitas vezes superior.

Por conseguinte, afigura-se que o objectivo primeiro da medida de resolução aplicada ao Banif não foi o saneamento deste banco mas sim a recapitalização do Santander, recorrendo a injecções de capital público no Banif.

E se assim tiver sido, existem vias através das quais o Estado português pode procurar corrigir a situação e, no mínimo, reaver uma parte significativa dos dinheiros públicos “investidos no Banif”.


Artigo publicado no blogue Tudo Menos Economia


Notas:

[1] A resolução foi decidida a 19.12 às 18:00h. A 20.12 o Santander faz a oferta de compra e a 20.12 às 23:30h o Banco de Portugal aceita vender o Banif ao Santander e à Naviget do Fundo de Resolução. A 21.12 a Comissão afirma que a resolução bancária não constitui ajuda estatal ao Santander. Acresce ainda que nesta decisão a Comissão aceita como legal a ajuda estatal de 1100 milhões de euros concedida em Janeiro de 2013 ao Banif, que foi a causa directa de todo o processo de negociação com o Banif e do processo resolução bancária, quando a 18.12.2015 a Comissão indicava que tinha “dúvidas” se a ajuda seria legal, para efeitos de audiência prévia dos interessados.

[2] A terceira componente de capitais públicos ocorreria via “activos por impostos diferidos”. A medida de resolução não é suficientemente explícita sobre que entidades beneficiarão desses activos, que resultariam numa melhoria dos capitais próprios do que era antes o antigo Banif. Os activos por impostos diferidos podem representar um montante de perto de mil milhões de euros. A medida de resolução limita os activos por impostos diferidos a adquirir pelo Santander a 179 milhões de euros, uma fracção do montante potencial desse tipo de activos. Parece que esses activos ficarão na Naviget (Banif intermédio), propriedade do Fundo de Resolução. Contudo, porque este ponto não é clarificado nas deliberações do Banco de Portugal, não se inclui a injecção de capitais públicos via “activos por impostos diferidos” nestas estimativas. Numa futura versão desta análise, incluirei a estimativa de activos por impostos diferidos no balanço do antigo Banif para determinar o seu efeito (positivo) nos capitais próprios.

Existem igualmente outras componentes potenciais de injecção de capital pelo erário público que também não são incluídas nas estimativas aqui apresentadas, e.g., o Fundo de Resolução assume a responsabilidade pelos prejuízos do Banif o que poderá significar mais pagamentos do Fundo de Resolução para o Santander.

[3] De acordo com as actas da reunião do CA do BdP, o Banif recorreu à assistência de liquidez de emergência do BdP.

[4] Porque se assume que nenhum dos adquirentes irá beneficiar dos activos por impostos diferidos que resultam da operação de resolução, os Activos são classificados em duas categorias principais: “Activos de elevada liquidez” que quase não perdem valor em caso de liquidação e cujos requisitos de capital são de 0% de acordo com as regras prudenciais europeias (CRD IV) (e.g., dinheiro em caixa, depósitos noutros bancos, títulos de dívida pública); e “Outros Activos” que incluem todos os restantes activos, em particular, a carteira de crédito do banco, que tipicamente são ilíquidos, tendem a perder valor numa liquidação e com requisitos de capital elevados. Os Passivos são classificados em quatro categorias principais: Dívida face a bancos centrais (Eurosistema e “ELA” do BdP); Depósitos e outra dívida sénior; Dívida subordinada; e Capitais próprios. Com base nesta metodologia estimo o rácio CET1 simplificado do Banif.

[5] O rácio de capital CET1 mínimo é 7%, já incluindo uma reserva de conservação de fundos próprios que pode ser temporariamente violada (vide Caixa 4 deste Relatório). Contudo, como pós-resolução, o Banif só disporia de capital da mais elevada qualidade (acções), aplicar-se-ia o rácio mínimo de solvabilidade de 8%.

[6] Refira-se novamente que esta estimativa não inclui o efeito nos activos por impostos diferidos nem pagamentos adicionais que levariam a capitais próprios e rácios de capital ainda superiores.

[7] O comunicado do Banco de Portugal não especifica quem recebe os 150 milhões de euros que o Santander paga pelo Banif, mas depreende-se que esse montante é pago ao Fundo de Resolução e não ao Estado.