Artigo de Maria Eduarda Gonçalves.
1. Ao longo dos anos de crise que temos vivido, o tema dos direitos fundamentais (i.e. que se encontram consagrados na Constituição) e o papel do Tribunal Constitucional (TC) na proteção desses direitos têm granjeado uma notoriedade pública incomum. Por más e boas razões: más razões, pois isso ficou em grande medida a dever-se aos efeitos gravosos das políticas de austeridade sobre direitos fundamentais não apenas nos domínios do trabalho e das condições de emprego, mas também na saúde, na educação, na segurança social; boas razões, em certo sentido, uma vez que, nas circunstâncias, o TC travou ou limitou algumas das medidas de austeridade por as considerar inconstitucionais. Foi o que aconteceu com as propostas dos orçamentos do governo para os anos de 2012, 2013 e 2014. Declarações recentes do novo governo garantindo a vontade de repor a “normalidade constitucional” só podem por isso ser acolhidas favoravelmente.
O pleno sentido e a força dos direitos fundamentais, bem como os modos de os defender ou promover escapam, porém, julgamos, a uma parte dos cidadãos. Também a jurisprudência constitucional não é facilmente apreensível, o que não surpreende pois ela apoia-se em interpretações e ponderações complexas exprimindo-se em acórdãos em regra geral extensos e de difícil leitura.
Quem pode suscitar questões de constitucionalidade junto do TC, perguntar-se-á? Em que medida a violação de direitos fundamentais tem servido de argumento às declarações de inconstitucionalidade? Como decide o TC, em obediência a que princípios e critérios?
Compete, antes de mais, ao Presidente da República quer a título preventivo, quer sucessivo, requerer ao TC a verificação e declaração “com força obrigatória geral” da inconstitucionalidade de leis, decretos-lei e convenções internacionais (arts. 134.º e 281.º da Constituição da República Portuguesa – CRP). Podem também requerer, a posteriori, essa verificação e declaração o Primeiro Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República, um décimo dos deputados à Assembleia da República, os representantes da República nas Assembleias legislativas das regiões autónomas e, em certos casos, os órgãos destas regiões.
É sabido que com frequência as decisões do TC não são adoptadas por unanimidade. Normalmente, são acompanhadas por declarações de voto de alguns dos seus juízes que dessa forma justificam os seus votos “contra” a decisão maioritária. Daí a dúvida que pode surgir sobre os critérios que presidem às suas decisões.
2. Tomemos um exemplo. Em 2013, dois grupos de deputados à Assembleia da República, do Partido Socialista, por um lado, do PCP, BE e PEV, por outro, e o Provedor de Justiça pediram a apreciação e declaração da inconstitucionalidade de normas da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que aprovara o Orçamento do Estado (LOE) para 2014. Uma dessas normas mantinha para 2014 a redução, inaugurada em 2011, das remunerações dos funcionários públicos, não só ampliando o universo de sujeitos abrangidos pela medida (alargando a base de incidência a partir dos € 675 mensais, quando anteriormente essa base se situava nos € 1500), mas também elevando os coeficientes médio e máximo de redução (atingindo os 12% a partir dos € 2000). Apesar de no relatório que acompanhou a proposta de lei do orçamento se reafirmar o “caráter transitório” das reduções remuneratórias em causa, essa afirmação foi tida por “puramente retórica” pelo TC.
Na sua decisão sobre esta matéria (Acórdão n.º 413/2014), o TC deu em larga medida razão aos requerentes julgando que a LOE violava direitos e princípios constitucionais, nomeadamente, o direito à retribuição (art.º 59.º, n.º 1, a)), os princípios da igualdade (art.º 13.º, n.º 1), da proporcionalidade e da proteção da confiança, elementos centrais do Estado de Direito (art.º 2.º). Importa recordar que em 2011 e em 2013 (Acórdãos n.ºs 396/11 e 187/13) o TC decidira não declarar a inconstitucionalidade das normas das leis orçamentais para esses anos estabelecendo reduções remuneratórias entre 3,5% e 10% para os trabalhadores do sector público que auferissem remunerações base superiores a € 1.500.00, tendo reafirmado essa jurisprudência, ainda que implicitamente (Acórdão n.º 353/12), em relação a norma de idêntico teor da lei do orçamento para 2012. O TC entendeu então aceitar essa medida, apesar de reconhecer que implicava um tratamento desigual entre trabalhadores do sector público e do sector privado, argumentando que as excecionais circunstâncias económico-financeiras do país o justificavam e assim mais rápida e eficazmente se diminuiria o défice público. A redução, considerou o TC, continha-se então dentro dos “limites do sacrifício que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardavam.”
Esses limites seriam ultrapassados pelas normas da LOE de 2014, na medida em que se pretendia alargar o universo dos trabalhadores do sector público afetados pela medida de redução salarial, atingindo retribuições superiores a € 675, intensificando além disso o sacrifício em virtude da fixação em 2,5% e 12%, respetivamente, dos limites mínimo e máximo do coeficiente de redução aplicável a partir daquele valor. Assim se imporia aos funcionários públicos com salários superiores a € 1.500 um agravamento, pelo quarto ano consecutivo, da remuneração base mensal. Segundo o TC, a medida discriminante já não podia por isso justificar-se, como inicialmente, pela sua “eficácia” em confronto com reformas que pudessem requerer mais tempo. Ponderando o peso do impacto destas reduções no grupo afetado, em comparação com os grupos não remunerados através de verbas públicas, o TC concluiu pela violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Deste brevíssimo sumário se infere que mesmo direitos e princípios fundamentais como o direito à retribuição pelo trabalho ou o princípio da igualdade não são absolutos, podendo ceder perante o interesse público. No entanto, dada a sua relevância para a defesa de valores humanos fundamentais, qualquer restrição a esses direitos ou princípios requer necessariamente a demonstração da sua necessidade, ou seja, da inexistência de alternativas menos gravosas susceptíveis de alcançar os mesmos objectivos de interesse público, e da sua proporcionalidade relativamente a esses objetivos. O próprio legislador tornara evidente que havia alternativas igualmente eficientes para promover a redução do défice ao promover o aliviar do esforço fiscal doutros contribuintes; e o sacrifício imposto não seria justificado pela obtenção de ganhos de consolidação orçamental, manifestamente escassos.
O TC considerou ainda que, nas circunstâncias, a eventual violação do princípio da proteção da confiança devia ser apreciada segundo um crivo mais apertado do que em anteriores apreciações. As reduções remuneratórias exclusivamente sobre os trabalhadores em funções públicas sempre haviam sido perspetivadas como transitórias. Na medida em que fora essa a justificação da sua não invalidação inicial pelo TC, o Estado teria criado nos cidadãos a convicção de que a normalidade remuneratória seria reposta no fim do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro – PAEF, o que não se verificava.
3. No exemplo referido, estava em causa, designadamente, um direito dos trabalhadores (empregados, naturalmente), o direito à retribuição salarial. Estes direitos fazem parte de uma das duas grandes categorias de direitos fundamentais consagrados pela CRP: os direitos, liberdades e garantias. Estes direitos, que incluem, a par dos referidos, as liberdades cívicas e a propriedade privada, entre outros ainda, são direta e imediatamente aplicáveis, podendo ser mobilizados junto dos tribunais; como aconteceu no caso considerado.
Já a segunda categoria de direitos fundamentais, os direitos económicos, sociais e culturais — como o direito ao trabalho (a obter um emprego), à saúde, à educação, à habitação ou ao ambiente — são geralmente entendidos como de aplicação diferida. Dependem da existência de condições económicas e financeiras e, tão ou mais importante do que isso, das opções políticas de quem nos governa. A sua não concretização não atribui aos cidadãos o poder de obrigar o Estado ou terceiros a agir. A teoria dos direitos fundamentais tem efetivamente invocado o carácter programático desta categoria de direitos a fim de justificar, inclusive, o abrandamento da sua realização em tempos de crise e de dificuldades financeiras. Daí que não tenhamos visto o TC a condenar por inconstitucionais os cortes no sistema nacional de saúde ou nas universidades…
A jurisprudência do TC tem, de facto, concedido uma ampla margem de decisão ao legislador ordinário na conformação dos direitos económicos, sociais e culturais. Mas terá de ser assim necessariamente?
Pensamos que não. É que compete ao Estado a obrigação não só de respeitar os direitos fundamentais, todos eles, mas também de promover a sua realização. Decorre isso do próprio texto constitucional e das referências específicas que nele se contêm às responsabilidades do Estado de promover políticas adequadas à realização dos diversos direitos económicos, sociais e culturais. O que falta, no atual quadro constitucional, é a exposição do Estado não apenas politicamente, mas inclusive juridicamente, ao controlo judicial pelo eventual não-cumprimento das suas obrigações nestas matérias.
Países há, no entanto, como a África do Sul (Constituição de 1976) e a Finlândia (Constituição de 1999), que reconhecem já aos tribunais a autoridade para avaliarem a razoabilidade das medidas de ação públicas à luz de critérios que vão das disponibilidades existentes nos planos humano, tecnológico, financeiro, à aceitabilidade ética e social. Uma novidade da moderna teoria dos direitos fundamentais reside precisamente na configuração dos direitos económicos, sociais e culturais como padrões de referência da produção político-legislativa.
São certamente orientações interessantes, que valerá a pena considerar. Elas permitem perspectivar um papel vigilante do TC que transcenda o controlo da constitucionalidade das leis quando estão em causa direitos fundamentais direta e especificamente ameaçados por políticas e medidas restritivas, como aconteceu nos últimos anos em Portugal; e envolva um espectro mais alargado de políticas e ações públicas determinantes para a realização de direitos fundamentais em esferas como a da saúde, da educação ou da segurança social. Como assinalou J. J. Canotilho, no ordenamento jurídico-constitucional português não há excesso de “estatalidade social”; pelo contrário, há défice. “Se por estatalidade social se entender o grau de intervenção estatal na esfera do bem-estar das populações, então o que pode dizer-se é que o Estado de direito social só será Estado de direito se for social.”