Preparar a renegociação da dívida

Artigo de José Maria Castro Caldas, Eugénia Pires e Paulo Coimbra.


Comunicação apresentada na Conferência Parlamentar sobre Dívida Pública, Assembleia da República, 16 de dezembro de 2014 (*)

A petição “Pobreza não paga a Dívida: Reestruturação Já!”, submetida à Assembleia da República a 30 de janeiro deste ano, instava o Parlamento a: (a) pronunciar-se a favor de um processo de renegociação da dívida pública; (b) promover a criação de uma Entidade para acompanhar a auditoria à dívida pública bem como preparar e acompanhar o seu processo de renegociação; (c) garantir que essa Entidade assegura isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação de todos os cidadãos e cidadãs.

A mensagem principal da petição era simples: o Estado português deve preparar-se para a renegociação da dívida pública. Passado quase um ano, esta mensagem, ou apelo, é ainda mais premente.

1 – A preparação da renegociação da dívida tornou-se ainda mais premente, em primeiro lugar, porque o processo de endividamento não foi revertido. Os stocks de dívida externa e privada deixaram de crescer, mas a dívida pública continua a aumentar (ver figura 1).

Entretanto, a capacidade privada e pública de servir essa dívida deteriorou-se. Entre 2010 e 2013, o Produto Interno Bruto perdeu 11 mil milhões de euros em termos reais, 400 mil empregos desapareceram, a população residente diminuiu em 200 mil pessoas, mais 85 mil portugueses passaram a viver abaixo da linha de pobreza e mais 180 mil passaram a viver em condições consideradas de privação material severa. A maioria das empresas continua descapitalizada e, tal como as famílias, endividada. O Estado está cada vez mais pressionado pelas restrições impostas pelo serviço da dívida.

Quatro anos de austeridade produziram como resultado a mesma dívida externa, uma dívida pública maior, um peso maior dos juros e menos rendimento público e privado. A troika e o memorando não resgataram Portugal do endividamento. Resgatados, na realidade foram, em primeiro lugar, os bancos portugueses. Os bancos eram em 2007 o sector institucional mais endividado no exterior. Hoje esse lugar é ocupado pelo Estado (administração pública e Banco de Portugal) (ver figura 2).

Foi precisamente porque os bancos viram o seu acesso ao crédito internacional cortado que a crise de endividamento externo se transformou, em Portugal e noutros países sujeitos a resgates, em crise da dívida soberana. Privados de acesso ao financiamento externo, os muito endividados bancos portugueses teriam falido em 2011. Mas o Estado português decidiu oferecer-se em garantia. A consequência, como não podia deixar de ser, foi a extensão do corte do acesso ao crédito internacional ao soberano tornado fiador.

Os bancos foram resgatados. O Estado português emitiu, desde 2009, garantias públicas que lhes permitiram emitir dívida. O BCE deu-lhes acesso a abundantes fundos em troca de ativos financeiros (colateral) de duvidosa qualidade. O resgate pôs à sua disposição 15% do total dos créditos do memorando.

Resgatados foram também os bancos internacionais mais expostos à dívida portuguesa, bancária e soberana (ver figura 3). Em dezembro de 2010, 64% da dívida pública era detida por credores externos privados, em dezembro 2013, a parte destes credores havia descido para 23%. Neste período credores externos libertaram-se de 55 mil milhões de euros de dívida soberana portuguesa que consideravam tóxica. Só as compras de dívida soberana pelo BCE permitiram à banca dos países do centro libertarem os seus balanços de ativos portugueses “indesejáveis” na ordem dos 23 mil milhões de euros. Entretanto os credores oficiais, isto é o FMI, os fundos da União Europeia e o BCE, passaram a deter 43% da dívida pública.

 

2 – A preparação da renegociação é agora ainda mais premente, em segundo lugar, porque as perspetivas de recuperação da economia europeia e portuguesa têm vindo a deteriorar-se. Mais do que o crescimento anémico, o problema agora, particularmente em Portugal, é a deflação. A aritmética mais simples mostra que mesmo com taxas de juro nominais moderadas (em torno de 4%), para taxas de crescimento nominais inferiores a 3%, garantir a sustentabilidade financeira da dívida, implicaria saldos orçamentais primários exorbitantes. Mais difícil ainda, na realidade impossível, seria obter os saldos orçamentais requeridos pelo Tratado Orçamental, de forma a reduzir em vinte anos a dívida pública a 60% do PIB.

A dinâmica da dívida, isto é a evolução do rácio dívida/PIB ao longo do tempo, tal como é normalmente analisada pelos economistas, depende das taxas de juro médias da dívida, da taxa de crescimento do PIB em termos nominais e do saldo orçamental primário em percentagem do PIB. A figura 4 representa com uma reta azul a fronteira que delimita o espaço das taxas de crescimento do PIB (nominal) e do saldo orçamental primário (em percentagem do PIB) que garantiriam a sustentabilidade financeira da dívida (isto é, o não crescimento do rácio PIB/dívida), assumindo que as taxas de juro se vão manter em 4%. À direita dessa reta está o “espaço de sustentabilidade” e à esquerda o de “insustentabilidade”. A reta vermelha representa o mesmo tipo de fronteira para as condições de cumprimento dos requisitos do Tratado Orçamental. Entre 2000 e 2013 há apenas dois anos em que o requisito de sustentabilidade se verificou (2000 e 2007) e nenhum em que se tenham cumprido as condições do Tratado.

Na zona euro a catorze, tomando as médias de 2000 a 2013, apenas três países (a Bélgica, a Finlândia e Luxemburgo), cumpriram os requisitos de sustentabilidade, e apenas um – o Luxemburgo – os do Tratado Orçamental, tal como se configuram para Portugal nos próximos anos (ver figura 5).

3 – Na aritmética simples das simulações de sustentabilidade obtêm-se os resultados pretendidos com facilidade, manipulando pressupostos acerca do crescimento e do saldo orçamental primário. Para obter números compatíveis com o Tratado Orçamental considera-se com o maior à vontade o pressuposto de um orçamento equilibrado em 2019. Num contexto de crescimento anémico e deflação, isto só é possível com a continuação de violentos cortes. Podemos ter uma noção da violência desse aperto se tivermos em conta que para obter um orçamento equilibrado em 2015 seriam necessários cortes na despesa ou incrementos da receita fiscal de cerca de 5 mil milhões de euros.

A perspetiva de prolongamento dos cortes orçamentais num contexto de crescimento anémico e deflação suscita a questão de outras sustentabilidades para além da financeira. O que efetivamente está em causa quando se antecipam cortes orçamentais ainda mais profundos e prolongados no tempo é saber se o serviço da dívida e os compromissos assumidos face aos credores devem ter precedência sobre todos os outros compromissos do Estado. O que está em causa, é uma escolha entre serviço da dívida e Direitos Humanos. O que está em causa é a sustentabilidade social da dívida e, em última análise, política.

É preciso por tudo isto que o Estado português desencadeie um processo de renegociação da dívida pública. Deve faze-lo antes que os próprios credores, face à manifesta insolvência do credor e o risco de perdas radicais, concluam que devem ser eles a tomar a iniciativa. Nessa altura será tarde.

Desejavelmente, a renegociação deveria decorrer no enquadramento institucional da União Europeia. É nesse enquadramento, em articulação com outros estados membros, que o governo português deveria tomar a iniciativa. No entanto, a reestruturação da dívida não pode ser prostergada indefinidamente. Em caso algum deverá qualquer governo hipotecar a prerrogativa soberana, reconhecida pelo direito internacional, de desencadear uma renegociação por iniciativa própria, caso o contexto internacional não seja favorável no futuro próximo a um processo multilateral.

Em qualquer caso, o Estado português deve preparar-se.


NOTA: É devida uma palavra de agradecimento na preparação desta intervenção a toda a equipa da IAC (http://auditoriacidada.info/) por três
anos de partilha de ideias e combates.