Artigo de Alexandre Abreu.
À medida que aumenta a probabilidade de que em breve tome posse um governo apoiado numa maioria parlamentar de esquerda, ganha também maior relevância a questão dos limites que se colocarão à acção deste governo em virtude das circunstâncias em que toma posse. É sabido que as regras orçamentais europeias, o serviço da dívida acumulada e a pertença à zona euro colocam constrangimentos profundos à margem de manobra de qualquer governo – e o futuro governo de esquerda não é excepção. E é também sabido que a forma como são encarados estes constrangimentos é um dos principais pontos de divergência entre os partidos que constituem a maioria em que assentará este futuro governo. Enquanto o Bloco de Esquerda e a CDU estão disponíveis para romper com estes constrangimentos e consideram que em última instância será necessário fazê-lo, o Partido Socialista tem recusado sempre tais posições de ruptura, apostando antes numa estratégia cooperativa que visa a obtenção gradual de espaço de manobra adicional e a modificação das estruturas europeias.
Dentro da nova maioria parlamentar, esta segunda posição é claramente maioritária – sendo aliás também claramente maioritária no seio da maioria social que lhe subjaz. Não é só a maioria da sociedade portuguesa que não está (ainda) disposta a assumir a necessidade de romper com estes constrangimentos – é também a maioria do eleitorado de esquerda. A meu ver isso reflecte essencialmente o grau de maturação actual da sociedade portuguesa face aos constrangimentos do euro, da dívida e das regras orçamentais europeias, o qual tenderá com certeza a evoluir no futuro – mas independentemente de assim ser, é essa a realidade política presente. Ora, assim sendo, é óbvio que o programa e a acção do futuro governo de esquerda têm de ser concebidos e executados a partir desta posição maioritária, dentro dos constrangimentos a que me tenho estado a referir. E isso corresponde exactamente às indicações que têm sido dadas por PS, BE e CDU.
Em face disto mesmo, a questão fundamental que se coloca é qual o espaço de manobra de um futuro governo de esquerda para, sem rasgar estes compromissos, implementar um programa de governo que dê corpo a uma verdadeira mudança de política e permita romper com a austeridade. É uma questão importante no plano económico, claro está, mas é-o também tanto ou mais do ponto de vista político – especialmente para a direita e para a esquerda à esquerda do PS.
Para a direita, como explicou o João Rodrigues nos Ladrões de Bicicletas, é da avaliação da maior ou menor eficácia destes constrangimentos enquanto espartilho das veleidades governativas da esquerda que depende a opção entre o “esperar para ver” assente numa expectativa de futilidade (“nada de relevante mudará”) ou, em alternativa, a passagem a uma ofensiva mais agressiva, sacrificando a máscara do liberalismo a bem da preservação das estruturas de privilégio e dominação. Para a esquerda à esquerda do PS, a mesma avaliação estratégica é igualmente importante, mas em sentido simétrico: a ser verdade que nada de relevante poderá mudar, o apoio a um governo em tais circunstâncias seria uma opção estratégica desastrosa, que não deixaria de implicar custos políticos significativos e duradouros.
Não penso ser esse o caso. Em diversos sentidos muito importantes, é possível romper de forma significativa com a austeridade mesmo dentro dos constrangimentos do euro, da dívida e das regras europeias. Os planos principais em que estes constrangimentos se fazem sentir são, por um lado, a pressão sobre o orçamento (directamente por via das regras e indirectamente por via do serviço da divida) e, por outro lado, o equilíbrio das contas externas (por causa da inexistência de autonomia cambial). E quer num plano quer no outro, é possível fazer diferente, e muito melhor, do que a direita.
No plano orçamental, vale a pena recordar que é possível alcançar o mesmo saldo com diferentes combinações de receita e despesa – sendo também conhecido, inclusivamente por via de análises empíricas do próprio FMI, que em contextos de forte subutilização da capacidade produtiva o multiplicador da despesa é muito maior do que o multiplicador da receita. Isto significa que o mesmo resultado orçamental será menos recessivo se alcançado através de aumentos de impostos do que de cortes da despesa – e mais expansivo se obtido mediante aumentos da despesa do que de cortes de impostos.
Sabendo-se entretanto que a carga fiscal é já extremamente elevada, sobretudo para a classe média, a forma socialmente mais justa e economicamente mais eficaz de fazê-lo será através do aumento da tributação sobre os mais ricos, não só em sede de IRS (que tributa o fluxo) como incidindo também sobre a riqueza (o stock). Para um mesmo saldo orçamental, conseguir-se-á assim não apenas mais justiça social, corrigindo a iníqua distribuição dos sacrificios que tanto agravou a pobreza e a desigualdade nos últimos quatro anos, como um melhor desempenho macroeconómico, dado o mais elevado multiplicador orçamental da despesa e e a maior propensão para o consumo dos grupos de menor rendimento. As medidas de redistribuição não se limitam a promover a justiça social; são também expansivas do ponto de vista macroeconómico.
Mas a esquerda pode também fazer melhor ao nível das contas externas, mesmo dentro dos constrangimentos conhecidos. Neste domínio, a estratégia da direita (a chamada desvalorização interna) consistiu em promover a desvalorização dos salários em toda a economia (tanto no sector exportador como não-exportador), de modo a alcançar ganhos de competitividade externa, a par da redução das importações por via da compressão do poder de compra. Esta estratégia revelou-se não só socialmente nefasta e injusta, prejudicando os trabalhadores, como também em larga medida contra-producente (pois acentua a recessão, na medida em que os salários são uma componente central da procura interna). Mesmo na ausência de instrumentos mais adequados (designadamente a moeda própria), a actuação da esquerda deve distinguir-se por ser muito mais direccionada para o sector exportador, através do apoio à inovação e à inserção internacional e através da redução dos custos não-laborais. Há muito que pode ser feito para promover o equilíbrio das contas externas sem por em causa os salários.
Mas acima de tudo, a esquerda pode e deve romper com a austeridade mesmo sem por em causa os compromissos internacionais porque, em última instância, a austeridade não é uma questão meramente macroeconómica, mas uma questão de justiça e injustiça social. Mais do que um qualquer saldo orçamental, austeridade significa ataque ao estado social, redução dos apoios sociais e corte dos salários e pensões. É outro nome para o aprofundamento da desigualdade em benefício dos interesses particulares das elites. E se o euro, a dívida e as regras europeias limitam os ganhos que podem ser alcançados a esse nível, não impedem que se detenha e comece a inverter o rumo de degradação a que temos sido sujeitos.
Artigo publicado no blogue &conomia à 4ª, no Expresso.