Artigo de Eugénia Pires.
O problema da resolução do excesso de endividamento dos estados soberanos foi levado pela mão da Argentina, vítima dos “vampirescos” fundo abutre, à 68º Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 2014. Nessa altura foi deliberado criar um mecanismo multilateral no seio das Nações Unidas que conferisse o enquadramento legal e os meios técnicos capazes de assegurar a atempada e adequada restruturação de dívida pública[1].
Esse mecanismo ainda não foi criado dadas as pressões do sector financeiro sobre as autoridades dos países desenvolvidos e a conivência das autoridades desses países. Porém, no passado dia 10 de Setembro, a 69º Assembleia Geral das Nações Unidas votou a Resolução A/69/L.84 aprovando por substancial maioria (136 países favoráveis, 6 contra e 41 a absterem-se) os Princípios fundamentais a observar num processo de restruturação de dívida soberana[2].
A versão final tem o acesso vedado, porém de acordo com a versão da comissão Ah doc criada para este efeito restrito Os nove princípios são: – soberania, boa-fé, transparência, imparcialidade, tratamento equitativo, imunidade soberana, legitimidade, sustentabilidade e restruturação majoritária.
Portugal com uma dívida pública de 227 mil milhões de euros, equivalente a 128.9% do PIB[3], uma despesas em juros orçada em 7.4 mil milhões de euros, quase idêntica ao orçamento da saúde (8 mil milhões de euros), e o maior devedor ao FMI deveria ser o primeiro a alegrar-se com estas notícias, a participar activamente no comité ad hoc criada para o efeito, e a despoletar um processo de restruturação da dívida à luz destes princípios.
Na verdade, estes princípios representam a possibilidade de Portugal beneficiar de uma restruturação liderada pelo devedor que, em alternativa ao empobrecimento generalizado, fruto da abordagem austeritária que reduz os portugueses a meros registos contabilísticos, opusesse uma abordagem holística e humanista que leva em linha de conta a obrigação constitucional de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos portugueses, dando prioridade ao desenvolvimento económico sustentado, partilhando responsabilidades entre o povo português, e os credores privados e oficiais, porém protegendo os pequenos aforradores, e protegendo o estado português da actuação predatória de fundos abutres e da litigância perversa em tribunais estrangeiros.
Parece-lhe, portanto, que estes princípios e o mecanismo multilateral de resolução constituem um passo fundamental para a resolução do problema de dívida impagável de Portugal, certo? Porque foi então que as autoridades Portuguesas nunca falaram disto? Como foi que Portugal acompanhou e votou este processo?
Portugal absteve-se em Setembro de 2015, tal como havia feito em Setembro de 2014. Além disso, recusou-se a participar nas reuniões do comité ad hoc constituída para avaliar o problema e conceber o mecanismo de restruturação. Convém salientar duas coisas. Primeiro, referir que ao adoptar este comportamento Portugal viola a sua soberania para seguir a posição comum imposta pelo Conselho da União Europeia (UE), um órgão sem poder legislativo composto pelos chefes de estado dos estados-membros, o presidente da Comissão e o presidente da União Europeia, apesar desta ser contrária ao interesse da maioria da população. Segundo, que à luz do interesse público e dos princípios de solidariedade nacional não se compreende o boicote da UE a este projecto. Ela é tão trágica quanto o facto desta falta de apoio ter motivado o adiamento da criação do mecanismo, e de se ter optado, como passo intermédio, pela aprovação dos 9 princípios fundamentais.
À actuação concertada da UE não é estranho o facto da Alemanha fazer parte dos países representantes da comunidade financeira de credores que tem consolidado a sua participação global através do sistema financeiro, e que votaram contra a ambas a resoluções: EUA, Alemanha, Reino Unido, Japão, Canadá e Israel[4]. O que é assaz preocupante é que esta actuação desvirtua e empobrece a democracia pois transfere automaticamente para uma entidade supranacional não sujeita ao escrutínio democrático a tomada de decisões com implicações directas sobre a qualidade de vida dos seus cidadãos. No caso da Grécia a violação da democracia foi ainda mais longe. As autoridades gregas participaram na terceira reunião do comité ad hoc, em linha com o programa sujeito ao escrutínio democrático pelo qual foram eleitos, para posteriormente serem desautorizadas e obrigadas a votarem concertadamente, embora esta mesma tomada de posição não tenha sido imposto à Alemanha, que votou alinhada com os interesses do seu sector financeiro, continuamente resgatado pelos governos alemães e periféricos.
Por outro lado, embora a UE tente manter algum distanciamento ao impor a “abstenção” e não o voto contra, a sua recusa em participar nas negociações tem por base uma argumentação imbuída de forte défice democrático e de privilégio ao sector financeiro,[1] nomeadamente:
1) consideram que as NU não são o fórum adequado, remetendo para o FMI, onde existe maior poder de influência a UE, o tratamento desde debate, relegando para segundo plano o problema dos conflitos de interesse deste credor multilateral que leva a que as soluções por si preconizadas fiquem aquém das necessidades dos devedores, nomeadamente a preferência por uma abordagem contratual “amiga do mercado”, que limita a resolução do endividamento à dívida soberana transacionada em mercado secundário e convenientemente excluindo a partilha de responsabilidade entre os credores oficiais encarregues dos programas de estabilização macroeconómica.
2) os princípios impedem a intromissão externa: ‘todas as instituições e actores que participam na restruturação’ incluído o envolvimento de representantes de aglomerados regionais devem abster-se de influenciar o processo e os seus actores ou abster-se de participar em acções que possam dar origem a conflito de interesses. Ora acontece, como muito bem sabemos que as instituições europeias não-democráticas, têm conflito de interesses quando assumem o papel de autoridade macroeconómica responsável pelo desenho das políticas fiscais e monetárias em simultâneo com o papel de credor, não tendo, por isso, pejo em desvirtuar a democracia…especialmente invocando o poder regional, para assim proteger os seus interesses próprios.
3) os princípios não concedem tratamento privilegiado entre credores. Acontece que o FMI, o BCE e a CE querem preservar o seu estatuto de super-senioridade sobre os credores privados e os cidadãos de um país, apesar de tal implicar uma maior penalização sobre os últimos.
4) As decisões de restruturação obtidas por maioria não podem ser ameaçadas ou invalidadas por outros estados soberanos ou tribunais de jurisdições externas. Ora acontece que quando se emite dívida nos mercados de capitais internacionais esta tem
jurisdição habitualmente em Nova Iorque, Londres ou Luxemburgo e estes países não querem perder esta estatuto de jurisdição financeira amigável.
Por último, importa salientar que no âmbito das Nações Unidas, apenas as decisões do Conselho de Segurança têm poder vinculativo pelo que os princípios, ainda, não tem poder vinculativo. Uma insuficiência que o perito independente das NU para o impacto do endividamento externo e outras obrigações financeiras internacionais sobre os direitos humanos pretende ver corrigida em breve dada a sua pertinência para o cumprimento em pleno dos direitos económicos, sociais e culturais das populações.
Em suma, a atempada restruturação da dívida portuguesa, impagável em 2011 e em 2015, poderia ter impedido a transferência de empresas e serviços públicos lucrativos para o sector privado, o desinvestimento na educação, saúde e investigação, a saída de cerca de meio milhão de portugueses, a falência de milhares de empresas, o despedimento generalizados, a precarização das relações laborais e o empobrecimento dos portugueses. Apesar disto tudo, este problema financeiro ainda não está resolvido, ao contrário daquilo que o governo neoliberal quer fazer crer.
Assim, a aprovação dos 9 princípios para uma restruturação de dívida constitui um instrumento fundamental para a tardia, mas ainda necessária, resolução do excesso de endividamento público. Era bom que eles fossem utilizados para defesa do povo português e que não fossem desperdiçados, para assim proteger o interesse do sector financeiro internacional e dos credores oficiais. Estes princípios constituem, ainda assim, uma vitória, não obstante o desmesurado poder económico dos credores que, pouco a pouco, vão ficando mais sós… Pouco a pouco a igualdade entre povos triunfará!
(Artigo de opinião para a revista digital mediotejo.net, publicado a 29 setembro 2015)