O aumento das desigaldades em Portugal, um dos problemas mais graves que o país enfrenta, sendo causa de muitos outros problemas

Artigo de Eugénio Rosa.


A questão das desigualdades, como ponto de partida de análise dos problemas do país, permite ter um fio condutor que não só torna mais fácil a identificação dos principais problemas que enfrenta a sociedade portuguesa mas possibilita também detetar muitas das suas causas, assim como apresentar medidas adequadas para as eliminar ou reduzir e, na medida que se consegue, resolvem-se outros problemas que, à primeira vista, pareciam não ter qualquer relação com a questão das desigualdades. Neste artigo, devido à escassez de espaço, vamo-nos limitar a abordar apenas alguns aspetos.

O agravamento das desigualdades é um problema social grave, na medida que é causa do aumento da miséria sendo, por isso, também causa do aumento de instabilidade social e politica. E é também um problema económico, na medida que reduz o rendimento das classes mais numerosas e com maior propensão ao consumo e aumenta enormemente o rendimento das de menor propensão, criando assim obstáculos graves ao crescimento económico e ao desenvolvimento. Portanto, estudá-lo e compreendê-lo é, a nosso ver, um passo importante para resolver os problemas do país.

A PRIMEIRA CAUSA DAS DESIGUALDADES É A PROPRIEDADE

Contrariamente ao que muitos afirmam, ou pretendem fazer crer, a causa mais importante das graves desigualdades que existem numa sociedade é a propriedade e não o trabalho e as pensões. Muitos investigadores que se preocupam com o problema das  desigualdades, mesmo no nosso país, têm limitado o seu estudo às desigualdades no seio dos rendimentos do trabalho ou das pensões, acabando por gerar a falsa ideia de que as principais desigualdades são estas ou se resumem a estas. Isso não corresponde à realidade. Mesmo com os poucos dados que são disponibilizados em Portugal sobre esta questão rapidamente se conclui que é a propriedade a principal causa das grandes desigualdades que existem na sociedade portuguesa.

Assim, se utilizarmos os dados disponíveis divulgados pelo INE, que embora não sejam muito rigorosos mas que são os únicos existentes,  para analisar a repartição primária da riqueza criada em cada ano em Portugal entre o Trabalho e o Capital rapidamente se chega a essa conclusão.  Se analisarmos esses dados, que são os das Contas Nacionais divulgadas pelo INE referentes à evolução dos “Ordenados e salários” (valor afeto à remuneração do fator Trabalho) e ao Excedente Bruto de Exploração (valor afeto à remuneração do fator capital), concluímos que, entre 2007 (ano de inicio da crise) e 2014 (último ano em que existem dados disponíveis), se verificou a seguinte evolução:

Em 2007, a parte dos “ordenados e salários” no PIB correspondia a 36,2%, enquanto a do Excedente Bruto de Exploração representava já 40,9%. E entre 2007 e 2014, esta relação agravou-se ainda mais pois a parte do Trabalho diminuiu para 34,5%, enquanto a do Capital aumentou para 43,4%. Portanto, a desigualdade na repartição primária da riqueza no nosso país agravou-se com a crise. Mas esta desigualdade ainda se torna mais chocante quando, utilizando também dados também divulgados pelo INE sobre a população empregada, se conclui que, entre 2007 e 2015, a percentagem de “Patrões” diminuiu de 5,2% para apenas 4,7% da população empregada, ou seja, desapareceram 72.000 “patrões”, ou seja “trabalhadores por conta própria com pessoal ao serviço” para utilizar a definição do INE. Portanto, a crise contribuiu para acelerar a centralização da riqueza em Portugal, concentrando numa minoria cada vez mais reduzida a maior parte da riqueza criada no país  (a 77,9% da população empregada – trabalhadores por conta de outrem – cabia apenas 34,5% da riqueza criada, enquanto 4,7% – os patrões-  apropriava-se de 43,4%), o que contribui para um enorme agravamento das desigualdades.

Esta situação foi agravada por uma rápida financeirização da economia portuguesa já que, entre 1997 e 2014, segundo o INE, o valor dos ativos financeiros aumentou 117% (cresceu de 541.716 milhões € para 1.175.778 milhões €), enquanto o PIB, a preços correntes, aumentou apenas 70,5% (passou de 102.357 milhões € para 174.549 milhões €). Isto permitiu que o Capital Financeiro se apropriasse de uma parte da mais-valia criada em setores produtivos, contribuindo para a anemia de muitos deles.

A REPARTIÇÃO SECUNDÁRIA DO RENDIMENTO AGRAVOU AINDA MAIS AS DESIGUALDADES EM PORTUGAL

A repartição primária da riqueza criada anualmente é ainda agravada pela repartição secundária já que o rendimento disponível com que ficam as diferentes classes sociais não é o que resulta da primeira repartição. E um instrumento importante de agravamento é um sistema fiscal profundamente anti-democratico que, violando a própria Constituição da Republica (parte final do nº1 do artº 103), reparte de uma forma injusta a carga fiscal.

De acordo com os últimos dados divulgados pela Autoridade Tributária (Ministério das Finanças), que são de 2012, os rendimentos do trabalho e de pensões representavam 90,5% do total dos rendimentos declarados para efeitos de IRS, cabendo aos restantes rendimentos (capital, propriedades, mais-valias, etc.) apenas 9,5%. É evidente que a situação atual não é muito diferente. E entre 2012 e 2015, as receitas fiscais totais aumentaram 4.492 milhões €, tendo atingido,  as que têm como origem o IRS, 3.628 milhões €, ou seja, representaram 80,8% do aumento verificado. Em 2015, as receitas com origem no IRS já representam 33,9% das receitas fiscais totais, enquanto em 2012 correspondiam a 28,3%. É evidente que foram os rendimentos do trabalho e as pensões os mais atingidos pela politica de austeridade, o que contribuiu para agravar ainda mais as desigualdades.

O AGRAVAMENTO DAS DESIGUALDADES TOMOU AINDA OUTRAS FORMAS EM PORTUGAL

O problema do agravamento das desigualdades não se reduz à repartição primária da riqueza criada no país, nem apenas ao sistema fiscal. Ele tem também muitas outras dimensões – prestações sociais, educação saúde, etc. – que interessa estudar para se poder tiver uma ideia clara da sua dimensão.

Assim quando se congelam ou cortam pensões, incluindo as de valores extremamente baixos como se verificou desde 2010 (as pensões de valor superior a 260€ não têm qualquer aumento desde aquele ano); quando se cortam nas prestações sociais (subsidio de desemprego, rendimento social de inserção, complemento solidário de idoso, abono de família, etc.), impedindo o acesso a elas de portugueses que precisam de as receber para poderem sobreviver, e os empurram para o assistencialismo da “sopa dos pobres”; quando se corta na despesa pública com a educação e com o Serviço Nacional de Saúde; quando se reduz significativamente o numero de profissionais destes serviços, o que leva inevitavelmente à redução em quantidade e qualidade destes serviços essenciais prestados à população, tudo isto contribui também para o agravamento das desigualdades, já que passarão a ter acesso a eles fundamentalmente quem tenha dinheiro para os pagar, sendo excluído do seu acesso uma percentagem crescente da população de médios e baixos recursos. Foi isso precisamente isso o que tem sucedido.

O CORTE NAS PRESTAÇÕES SOCIAIS, NA SAÚDE E NA EDUCAÇÃO ATINGIU A POPULAÇÃO DE MENORES RECURSOS AGRAVANDO AS DESIGUALDADES

Entre Novembro de 2010 e Junho de 2015, o numero de beneficiários do rendimento social de inserção diminuiu de 234.883 para 208.974 (- 25.909); o número de crianças com direito a abono de família  reduziu-se de 1.392.096 para 1.140.988 (-251.108), numa altura em que o PSD/CDS fala tanto do apoio às famílias; o numero de  desempregados a receber subsidio de desemprego caiu de 308.915 para 266.907 (-42.008). Como consequência, segundo o INE, a população portuguesa em risco de pobreza ou de exclusão social aumentou, entre 2011 e 2014, de 24,4% para 27,5%; em valores absolutos passou de 2.560.000 para 2.887.000. Por outro lado, a taxa de risco de pobreza após as transferências sociais subiu, no mesmo período, de 18% para 19,5%, e a taxa de privação material severa passou de 8,3% para 10,6%. Os efeitos da politica de austeridade nas classes mais desfavorecidas da população portuguesa foram dramáticos, agravando ainda as desigualdades no país.

Esta situação foi ainda mais agravada pelos cortes significativos feitos pela “troika” e pelo governo PSD/CDS na despesa pública com a educação e saúde, tornando mais difícil o acesso a estes serviços essenciais para o bem-estar dos portugueses e para a redução das desigualdades no país. Assim, entre 2010 e 2015, as transferências do Orçamento do Estado para o Serviço Nacional de Saúde diminuíram, em valores nominais, de 8.849 milhões € para 7.883 milhões € (-966 milhões € a preços correntes, o que correspondeu a um corte de 1.516 milhões € em termos reais), determinando que a despesa corrente pública em saúde a preços correntes por habitante tenha diminuído de 1.109€ para 993€ (- 10,2%) segundo o INE ; no mesmo período, a  despesa pública com a educação  pré-escolar e com o ensino básico e secundário sofreu uma forte redução pois passou de 5.623,9 milhões € para 4.582,9 milhões € a preços correntes (-18,5%), e a despesa pública com a ciência e o ensino superior também sofreu um corte importante  pois diminuiu de 2.503,9 milhões € para 2.306,3 milhões € (-7,9% em valores nominais). Associado a tudo isto, verificou-se uma redução significativa do numero de professores no ensino (-23.553) e de bolsas de estudo atribuídas no ensino superior que passou, entre 2010 e 2014, de 72.022 para 45.321 (-37%), segundo o relatório de execução do Programa Operacional Potencial Humano de 2014, que as financiava, o que levou ao aumento da retenção e à exclusão e ao abandono do ensino superior por parte de muitos  estudantes de classes mais desfavorecidas, o que agravou as desigualdades.

A PROPOSTA DE PROGRAMA DO GOVERNO DO PS DE COMBATE ÀS DESIGUALDADES

No capitulo VII da proposta de programa de governo com titulo “Mais coesão, menos desigualdades” (pág. 117 e seguintes”) começa-se logo por afirmar que “O combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades impõem-se hoje como um desígnio nacional não somente por razões de equidade e de justiça social, mas também por razões de eficiência e de coesão social” , o que resulta do reconhecimento da gravidade atingida por esta situação em Portugal.  Dentro das medidas apontadas destacamos as seguintes:

  1. a) Convergência total do Regime Geral da Segurança Social e da CGA, uma medida cujos efeitos ainda não foram suficientemente estudados;
  2. b) Aumentar a progressividade do IRS, nomeadamente através dos aumento do numero de escalões, uma medida eventualmente positiva no combate às desigualdades;
  3. c) Melhoria das deduções à coleta para os baixos e médios rendimentos, medida eventualmente positiva;
  4. d) Criar um imposto sobre heranças de elevado valor, medida positiva:
  5. e) Introdução de uma cláusula de salvaguarda que limite a 75 euros/ano os aumentos de IMI em reavaliação do imóvel, de habitação própria permanente, de baixo valor, positiva;
  6. f) Conversão de benefícios fiscais contratuais em IRC em benefícios fiscais de funcionamento automático, uma medida eventualmente negativa;
  7. g) Reverter, no que toca à recente reforma do IRC, a “participation exemption” ( de 5% para o mínimo de 10% de participação social), e o prazo para reporte de prejuízos fiscais (reduzindo dos 12 para 5 anos), uma medida positiva já que esta alteração ao CIRC pelo governo PSD/CDS só tinha beneficiado os grupos económicos;
  8. h) Proibição das execuções fiscais sobre a casa de morada de família relativamente a dívidas de valor inferior ao valor do bem executado e suspensão da penhora da casa de morada de família nos restantes casos, uma medida positiva;
  9. i) Aumentar o abono de família,  o abono pré-natal e a majoração para as famílias monoparentais beneficiárias de abono de família e de abono pré-natal, positiva;
  10. j) Reformular as classes de rendimento de acesso ao abono de família para que as crianças em situação de pobreza, e em particular, em situação de pobreza extrema, tenham acesso a recursos suficientes para melhorar o seu nível de vida, positiva.

A maioria desta medidas, incluindo o descongelamento das pensões anunciado, são positivas ou eventualmente positivas, embora o seu real impacto só será avaliado quando se conhecer as leis com as medidas concretas. No entanto, elas ainda não se podem considerar um verdadeiro plano de combate eficaz às desigualdades porque não tocam nas raízes das desigualdades, procuram apenas reduzi-las,  mas não eliminá-las.